Ponto por ponto

Os reflexos da cabeça e do cérebro encontram-se nas polpas dos dedos grandes, desde a ponta, por baixo da unha, até ao osso metatársico (o ponto nº 1) pelo que considero de duvidoso efeito a reincidência na pressão sobre o ponto nº 44 (como solução para editar no blogger, claro e apenas, o que se pode comprovar pelo facto de me ser possível fazê-lo).

{ am }
Impotências: ponto da situação

Estou há largos minutos a carregar no ponto nº 44 mas nada de significativo acontece, a não ser vir-me parar às mãos esta frase: ‘se ensinas aos ignorantes uma sabedoria nova eles não dizem que és sábio, dizem que és inútil’. Será de algum erudito de turno? Não, não é.

{antónio}

neste momento só se consegue editar neste blog pelo seu lado feminino. Sinceramente não sei que ilações deva tirar disto. Nunca pensei que as repercussões chegassem a este ponto.
O bazar

(Ou o chão que se pisa)

Ao contrário da Alexandra e do Alexandre o que me vejo a trazer da Feira do Livro não são manuais práticos mas livros de esoterismo senso lato. Confesso o apelo: ele são os nomes com vagas (a bem dizer às vezes são apenas ondas ou nem isso) reminiscências científicas, os desenhos de fadas etéreas enredadas em borboletas polícromas e a ânsia e o cuidado postos na intenção de me ajudarem a cuidar de mim o que me fascina. À momentos, quando procurava inutilmente um desgraçado manual em que devia ter um esquema estapafúrdio sobre uma série de reacções metabólicas e respectiva localização anatómica com que me arrisco a provocar síncopes nos pobres corações de uns tantos humanos quando tentar que me respondam ao que quer que seja sobre aquilo, encontrei um livro decente, em cuja folha de rosto se podia ver ter sido comprado em 1999 e de seu nome "Reflexologia". Abri-o ao acaso e a epifania aconteceu bem mais com a imagem que se segue do que com este fascinante ensaio do António sobre a teoria da sexualidade de Jesus. É que, por volta dos quarenta, afinal está tudo, mas mesmo tudinho, nos pés.


É por todos sabido que Jesus (pelo menos aparentemente) nada escreveu, que aquilo que vem escrito nos evangelhos canónicos foi o que alguns acharam por bem relatar por escrito, (e outros conservar e difundir) num grego arredondado, pelos mais diversos motivos, (excluindo-se aqui talvez a publicação em rubricas de frases da semana e as canções do Roberto Leal) , incluindo o nobre de cativar, que os textos definitivos foram sendo fixados ao longo dos primeiros tempos com as previsíveis hesitações, mas certamente com oração, sobriedade e um cestinho das boas intenções que por vezes até enchem um local que não vem aqui ao caso.

A vida e a figura de Jesus não são algo de definitivo ou fechado, sem que isto queira dizer forçosamente problemático ou controverso, mas antes algo que se coaduna com o simples facto d’Ele ser Deus, e inesperadamente, tão Deus quanto homem - coisa que nem Homero sacou da imaginação entre duas drunfadas à beira mar - e vir dizer para amarmos como Ele nos amou (algo que só sabemos por aproximação) e para ser perfeitos como o Pai Celestial. Se eu ainda pudesse dizer aqui palavrões, diria que isto era uma grande foda, assim digo só que estamos prejudicados por causa da falta de informação. Perfeito homem, sim, esta atravessa agora a ironia de muito boa gente que busca ‘intercourses’ (gostou assim, mme?) e suores e descargas hormonais afins em todas as entrelinhas bíblicas; e, acrescento agora: com a sua sexualidade bem vincada, tendo ido para o deserto mas não querendo lá ficar, e deixando os seus discípulos sem reacção quando, quase no princípio da sua vida pública, falou a sós com a samaritana; sim, um judeu não dirigia palavra a uma mulher sozinha e até esta se espantou com o atrevimento.

Verificaremos então agora alguns dos reais, constitutivos e distintivos elementos da sexualidade masculina, sem o patrocínio de nenhum after-shave, nem de nenhuma marca de produtos para a queda do cabelo, mas retidos da vida de Jesus. Igualmente sem malabarismos, nem analogias demasiado alucinadas, mas sem receio das generalizações abusivas a pedir o ‘vê se te enxergas, meu’, nas entradas do dicionário não ilustrado nºs 1179 a 1186, e ainda sem saber ao certo qual o preço que vou pagar por isto.


(A figura da) mãe – Mesmo antes de Freud ter avisado as hostes, os filhos varões sempre colocaram as mães num pedestral desligado de tudo o resto. Uma mãe pode até ‘ter de ser posta no lugar’, contrariada, enfrentada, quando está em jogo o crescimento e a liberdade, pode chagar-nos o juízo numa qualquer boda de Canã, pode oferecer-nos uma camisola que já nem se usa no Sri Lanka, mas o ‘masculino’ revela-se definitivamente quando uma Mãe, mais que referência, representa para ele uma presença constante, desejada e quase inexplicável na alma, mesmo sem édipos à perna.

(A gestão da) virilidade – O chamado ‘acto viril’ é um conceito ambíguo e perigoso por estar sempre em contacto com as suas deturpações ou com a demasiada abertura das suas expectativas. O que é realmente constitutivo da sexualidade masculina é a noção de que a fragilidade deve ser evitada à exposição pública, e de que para um homem sexualmente convicto (belo conceito) os assuntos estão todos sob controlo. Sejam eles a Redenção de toda a humanidade, seja a porra dos focos de halogéneo no tecto falso.

(O comportamento face ao) ‘pecado feminino’ – A verdadeira sexualidade masculina leva a que qualquer mulher que lhe desabafe um 'pecado da carne' passa logo a ser como uma irmã mais nova que deve ser protegida. O uso do corpo como moeda de troca será sempre visto pelo homem – que não tenha interesses no negócio, claro - como uma oportunidade de demonstrar ao mundo que para ele nem tudo é sexo, nem para o bem nem para o mal. Só o homem relativiza o sexo verdadeiramente, deve ser por também ter pêlos no peito.

(O gosto em ser) acarinhado pelas mulheres – Este é um constituinte clássico da sexualidade masculina; as cenas em Betânia com Maria e Marta ilustram definitivamente o fenómeno: uma gajita gasta o subsídio de natal todinho num frasco de perfume caro e com os seus cabelos faz o que nem Cleópatra com… ó meu Deus eu agora tenho mas é de fazer uma pausa para respirar fundo. Penso que esta passagem dos evangelhos até deve ter levantado alguma celeuma entre as feministas das catacumbas, mas venceu a versão pré Kim Bassinger, até porque depois em Hollywood poderia chegar a não haver verbas para mais efeitos especiais em milagres, e o Ben-Hur já andar a cansar um bocadinho.

(A necessidade de actos de alguma) ‘violência’ – Pode custar a entender, mas a violência, a necessidade de actos bem expressivos e peri-agressivos, como Transfigurações, Ressuscitações, expulsões de demónios, é própria duma afirmação intrinsecamente masculina. Não pretendo descortinar simbolismos eróticos no fenómeno, mas a haver hormona na coisa é a testosterona. Para gerir esta situação e sobreviver, a mulher corrente inventou a água na fervura, o beicinho e as amigas vagamente confidentes, mas a Igreja, esposa mística de Cristo, mais liturgicamente manietada, teve de se render à água benta, ao incenso e às velinhas, tudo elementos de afrodidisismo periclitante, como sabemos.

(O uso da) sedução em parábola – A ideia de que a masculinidade se revela numa natureza mais básica, frontal e directa é uma falácia inventada pelas marcas de anti-celulíticos, implantes mamários e a Inês Pedrosa. O homem é um caçador que rodeia sempre a presa em movimentos pouco óbvios, ameaça que quer uma gazela esguia e acaba por arrefinfar numa zebra rechonchuda, faz-se parecer interessado numa lebre fugidia mas afinal apenas queria passar um bom bocado com uma esquila de pêlo suave. A formulação parabólica da mensagem é a afirmação duma desinibição retórica e está apenas ao alcance do sexo masculino, e é obviamente transferível para todas as suas atitudes, sejam elas mais ou menos físicas. A mulher seduz antes numa ululância de ventre, ou em elipses decorativas diversas, ou com a banda desenhada da Maitena, ou directamente com as pernas à mostra.

(A natureza da) camaradagem masculina – O homem é um ser sexualmente segregativo e discriminativo por natureza: ele há coisas para gajos e há coisas para gajas. Uma comezaina, seja para falar de bola, seja para combinar uma caçada, seja para contar anedotas porcas, seja para decidir uma traição ou uma paixão, para ser uma coisa bem feita, não pode meter gajas. Elas iriam logo bufar tudo às amigas. Jesus jamais faria a última Ceia com mulherio por perto, ia dar merda certinho, e depois lá tinha de começar tudo outra vez com o Moisés a vir de charter pró Egipto, e o Salomão a aguentar mais umas gajas aos berros. Quanto muito trataria, como tratou, de que elas estivessem por perto no momento de mudar o penso ou desinfectar as feridas, pois, lá está, os homens nessa altura teriam bazado todos. De cagaço, claro.

(A gestão do) contacto físico – Fala-se de vez em quando muito de que Jesus tocava e deixava-se tocar; no âmbito seu ministério, nos seus milagres e no etecetera. Ora, definitivamente, só o instinto sexual masculino sabe medir o tempo, a forma e a intensidade do contacto físico; se for apenas para um carinho desinteressado é duma maneira, se for para combinar algo para depois é doutra, e se for o caso de tratar do assunto logo ali será doutra diferente. Jesus estava sempre em cima dessa fronteira do gesto no ponto certo, fosse com a pecadora, fosse com a viúva a quem tinha morrido o filho, fosse junto do ceguinho ou do leproso: juntava o charme à eficiência. Uma mulher, por exemplo, se fizesse um milagre, mais ou menos orgásmico, entusiasmava-se logo e aquilo ainda podia correr o risco de voltar tudo para trás. Já, há atrasado, vi acontecer isto num bacalhau à Zé do Pipo.
Mais alternativas
(inside blogging dirigido ao sempre renovado gineceu residente)

Para além das óbvias idas ao cabeleireiro, ao ginecologista, e às lojas de chanatas , mas já muito testadas pelas mais diversas paragens femininas, recomendaria ( mas sem qualquer traço coercivo, entenda-se) o afastamento de temas demasiado eruditos como a lima de unhas, o papel dos sais de fruto no ego masculino e as paixões à primeira vista. A entrada pela política séria e responsável, pela ópera bufa ou não, pela nova prosa americana, e pelos problemas com a canalização do gás, dando a tal visão feminina (sempre bafejada daquela intuição proverbial fornecida certamente por hormonas em êxtase calórico) será sempre bem vinda, e poderá ser assim deixado ao meu cuidado todo o universo religioso que, como se sabe, é de fundação e natureza falocêntrica, sem prejuízo das igrejas estarem é cheias de gajas.
O calor, os mosquitos, as águas com sabores, os gatos...

Ainda não sei bem sobre o que é que vou escrever.

Tenho um bom repertório de conversas com taxistas. Um melhor ainda de conversas que ouço (quase) sem querer nos cafés.

Mas ainda não sei bem.
smsantologia

"Desisti agora todos da guerra, ó homens de Ítaca,
para que sem derrame de sangue vos separeis!"

Homero, "Odisseia" (531-532)
A questão religiosa
( com uns pozinhos pessoais}

{1} Independentemente da fantochada que possa significar este folclore danbrowniano, o que é uma facto é que a Igreja e a fé-crença cristã-católica foram apanhadas algo ‘desprevenidas’ (vou tentar não abusar da cobardia das aspas) nesta esquina do tempo céptico-mediático-pseudo-informado.

{2} A Igreja na sua conhecida guerra contra os deficientes subjectivismos e relativismos procurou fomentar nos seus fiéis – e bem, e muito bem- o espírito de caridade, o respeito pela vida e pelo próximo, pela verdade Revelada, e a participação dos sacramentos, mas foi deixando desvalorizar – fora dos circuitos mais especialistas e ‘eruditos’ – o real e abrangente aprofundamento sistemático das bases históricas da sua religião.

{3} Preparada para as dúvidas pascalianas, preparada para os reformismos bíblicos, preparada para alguns anticlericalismos bacocos, preparada para os racionalismos e para as teologias mais libertárias, preparada para os desafios da ciência e dos espiritismos mais ou menos gnósticos, mais ou menos preparada para a indiferença religiosa, não carregou convenientemente as espingardas para o momento em que atacasse (novamente) em massa, e em várias frentes, a dúvida: ’então isto poderá estar tudo assente num chorrilho de embustes históricos’, e ainda para mais com um aparato simultaneamente hollywoodesco, subliminar e viscoso.

{3} A Igreja foi deixando cair paulatinamente (mas aqui não tem a ver com S. Paulo), se calhar pelo seu inexorável mergulho nos tempos, a importância desta necessidade de fazer com que os crentes fossem tendencialmente cultos, cientes dalguns vazios de fundamentação histórica aqui e acolá, e deixou de lhes ir garantindo a cobertura arqueológica a par da apologética, fiando-se no êxtase pictórico das capelas sistinas da fé.

{3 A} Sempre estive persuadido e senti que o mais importante da fé era a gestão da presença de Deus em nós, mas sempre considerei que um dos grandes desafios desta religião era o apelo a conhecer as suas raízes e a aprofundar serenamente os seus dilemas, as suas ‘razões’ e os seus ‘dados’. Apesar dos raiares do fascínio duma ‘fé mística’ sempre me senti muito mais próximo duma ‘fé teologal’ e o meu coração balançará entre uma ‘Summa Teologica’ e um terço na Capelinha das Aparições. Não precisei de Stº Agostinho para saber que era um pecador, nem da Madre Teresa para saber que era junto dos ‘deixados pelo mundo’ que se encontrava Cristo no seu esplendor. Se calhar a moral acompanhar-me-á sempre como um Ás de copas na manga dum batoteiro a quem um jogo nem está a correr mal, e que até tenta fazer por isso, mas lembro-me sempre que Cristo veio também mostrar que queria uma fé fundamentada na experiência humana e não tanto em Toras a viverem nos alçapões da consciência.

{4} A Igreja, entre muitas coisas, é um legado de Jesus, e por isso também descerá do norte das Galileias até ao sul das Judeias se for preciso dar conta dos vendilhões, mas eu cá, pelo sim pelo não, ainda punha mas era no prego algumas esculturas do Miguel Angelo do Museu do Vaticano, e comprava por atacado a National Geographic, a CNN e o Canal Panda para recuperar algum tempo perdido.
Vidas à la carte

Nunca consegui ter um sacana dum amor platónico. Passei anos a fio a preparar-me para ele, fiz investigações de carácter filosófico, estudei a estrutura das hormonas que nem um jardineiro, reli a cena da caverna dezenas de vezes, acompanhada de massagens, de música erudita, de gambas al ajillo, procurei analogias com os mais diversos mitos literários incluindo príncipes encantados, arrisquei a desenhar ninfas de cócoras com lápis nº3, fiz com que me contassem histórias reais de amores obsessivos e doentios, de traições violentas motivadas pela luxúria da desgovernada posse carnal, treinei sonhos e batimentos de coração, afastei-me criteriosamente da leitura de revistas pornográficas, fiz de tudo para que quando chegasse o momento eu estivesse convenientemente preparado para esse amor, e não o comprometesse com afãs desmedidos de fornicação, ou estabelecimento de laços logistico-familiares ou mesmo de idas ao cinema. Mas o cabrão (palavra d’honra que é o ultimo palavrão) desse malvado desse amor nunca apareceu.
E eu digo-vos, eu estava mesmo preparado para aquilo; parecia já talhado para amar uma sombra, para perder o olhar numa ténue idealização, para construir torres de marfim erotizadas, até um ou outro fado soube de cor – mas confesso que isso foi já numa fase terminal e praticamente era já o mecanismo do religioso, não sei se conhecem, a funcionar – e cheguei ao ponto de conseguir sentir a pele duma mulher mesmo que separados pela blindagem dum cofre forte de indiferenças e rejeições.
Mas a verdade é esta: nunca tive essa oportunidade. Inventei, talvez já já numa fase pré-decadente e desesperada, algumas mulheres imaginárias, escrevi textos que nem terapias de menopausa conseguem alcançar, aprendi palavras e caligrafias que poriam guttenberg a babar-se, treinei suspiros abafados, cheguei a levar sereias a almoçar ali ao mercado do peixe para ver se lhes ficava com o grito da alma, mas nada, em nenhuma esquina me calhava um amor platónico, tudo muito explícito e nada de lanterna, nada de sombra, tudo real, nada sublimado, nada idealizado, nada que me fizesse voltar para casa com o coração ao pé do baço, nem sequer um daqueles fechar d’olhos, com as narinas a alargar e a deixar a cabecinha cair para trás eu consegui alcançar.
E eu estava preparado, pá, se havia gajo que estivesse preparado era eu, e ninguém ia sofrer nada, ia ser uma coisa limpinha, não seriam necessárias aquelas maçadoras morais à façon, o sonho comandaria a vida, andaria com a pedra filosofal a fazer de fivela do cinto, pariria versos que teriam feito desistir da estiva literária metade dos poetas que para aí andam, cheguei a dar explicações a escritoras de fim de semana mas enervava-me tanto sucesso alheio, olhem, acho que foi uma perda, mas agora também já não há nada a fazer, afeiçoei-me demasiado a uma ou outra apalpadela mais atrevida e já apanho torcicolos com a dificuldade em acompanhar o passo a divas metonimizadas. E claro, deixei-me consumir pelo voragem do paleio.
Assuesce unus esse but Delectat varietas
side by side


smsantologia

"Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses. Porque mais importante que os deuses existirem é acreditarmos neles."

Natália Correia, "Exórdio" - I, in O Armistício (1985)
Ponto de ordem à mesa. O regresso à política pura.

Somos governados por um 1º ministro banal mas esforçado, irritante apenas quanto baste mas sem chegar a pingar do nariz, previsível mas sem cansar demasiado (tirando as gravatas, claro) e que lá vai gerindo como pode e sabe o equilíbrio difícil entre a demagogia, os chamados tempos difíceis e o Lacão no governo; temos um presidente banal mas de primeira dama discreta com os netinhos, umas forças armadas banais mas com as fardas limpinhas e os bigodes aparados, o trotskismo está confinado apenas a algumas almoçaradas, mantivemos uma colónia atrevida ( madeira) e uma outra deliciosamente ruminante (açores), já temos os nossos casos públicos de pedofilia, corrupção, violência doméstica, e um ou outro escândalo sexual, com um ou outro pormenor picante, que já não nos envergonham perante ninguém, o estado é oficial e protocolarmente laico, apesar de N. Srª de Fátima ainda manter um estatuto ligeiramente superior ao da padeira de Aljubarrota, as exportações ora sobem mais ora sobem menos, consoante o sentido do vento, as empresas ora fecham ora abrem, consoante as tonalidade das nuvens, mantemo-nos portanto um país de tendência eminentemente bucólica e agrícola, conservamo-nos igualmente ligeirinhos a produzir legislação à tripa forra, um bocadinho mais duros a percebê-la e a fazê-la cumprir, mas também já nada que nos diminua especialmente perante a unicef ou a amnistia internacional ou o greenpeace, está inclusivamente quase a decretar-se que é de mau tom dizermos ‘eu’ quando nos estamos a referir a nós próprios e a aparecermos na capa dos nossos próprios livros, já se faz uma campanha do pirilampo mágico sem muitas piadas e os gatos fedorentos já estão a gerir-se pela bitola dos malucos do riso e da alexandra solnado; há alguns temas de consenso nacional como o amor a Rangel e Carrilho, os corporativismos estão com o seu lugar ao sol mas com um bronze que já não ofende demasiado, o liberalismo selvagem mas esclarecido e fundamentado continua comparticipado se for aviado com receita, o socialismo já é muito bem aceite como genérico da vaselina e a direita começou a vender benzinho em marca branca (apesar de estar cada vez mais próxima da secção de puericultura). Claro que vamos sentir falta de Soares, como já sentimos da Rainha Sta Isabel e do Bartolomeu Dias, claro que seremos sempre aquela nação valente e imortal que pariu durão barroso, mas basicamente joaquim de almeida mantém-se bem longe e ainda ninguém profanou o soldado desconhecido nem transformaram a torre de belém em barriga de aluguer. Isto ainda vai lá, parecemos parados mas não criamos varizes.
Monólogos sem vaqueiro

Leio que a responsabilidade pessoal é um conceito pretensioso, lembro-me duma gaja que me quis levar para outros caminhos em Seul, dói-me uma zona entre o umbigo e o apêndice, penso numa mentira que nunca cheguei a dizer, rio-me com algumas atitudes de Anna K. e do próprio Tolstoi, falo ao telefone com a minha filha, remoo coisas que me disseram, ponho-me na cabeça dos outros por breves instantes, mas irei repeti-lo, claro, está-me no sangue, que expressão gira, semeio alguma dúvida a quem me faz uma pergunta, inesperadamente passa-me a imagem duma mulher deitada, ali de raspão algures por entre o inconsciente e a zona onde actuam alguns analgésicos, hesito em telefonar-lhe, ela está longe e pode-me querer vir visitar, e ela estará numa fase menos atraente, inesperadamente, agora, agorinha mesmo, estou sem decisões difíceis para tomar, não me lembro de nenhuma pintura em particular, seria mesmo incapaz de escolher uma cor preferida neste momento, nem sinto o intestino a chamar por mim como que se me quisesse dizer um segredo, ai nem gazes, credo, vêm-me apenas à cabeça algumas curiosidades biográficas de napoleão, chego a rezar uma ou duas orações em latim, ah sim agora vejo a barba ruiva de van gogh ao lado duma loiraça do Lichtenstein, nada de mondrians, nada de paneleirices, nada de música, a música torna-me até demasiado criativo, tal como os charutos, não posso abusar, vou-me limitar a olhar para uma zona perdida entre a sólida perspectiva e a vertigem, neste momento é a máxima aventura a que me posso dar ao luxo, mas, vendo bem, posso voltar a ler a cartilha maternal, até o puto já passou o uvxz, estou a ficar um bocado parlanchin, talvez seja o momento de acabar, mas, não sem antes vos dizer, que chego a ser um gajo introvertido se me servem uma meia de leite mal espumada. Não há nada como um gajo sensível com as pequenas coisinhas do dia a dia. E muito mais pretensioso que a responsabilidade pessoal é coçar os tomates, tirando recitar de cor sonetos do shakespeare, óbvio. Bem, que se foda, vou-lhe ligar.
Conto das fadas descalças

Sempre que se descalçavam, os feitiços saíam-lhes mais rápidos e perfeitos, mesmo que depois corressem o risco de perder o controlo à dimensão dos efeitos. Eram fadas de imprevisto, tinham bom jogo de pernas, benziam com a planta dos pés, punham os joãos a sentirem-se que nem josés, faziam desenhos no céu com as varinhas entrelaçadas nas falangetas, punham os anjos a gritar olés e os centauros a tocar cornetas, e saltavam ao eixo com homens de peito feito transformados em anões a preceito. Gostavam de caminhar por cima da serrilha medular dos seus melhores enfeitiçados, brincavam aos pêlos eriçados, rodopiavam com o calcanhar naquela zona em que as epidurais entram ao serviço, faziam as concorrentes tailandesas parecerem-se com varinas de pregão lamuriado, e, sendo preciso, casavam princesas em qualquer lado. Mas cada nova magia era diferente como da noite para o dia. Dispensavam os cheirinhos, bastava-lhes aquele suave pisar, dispensavam música ambiente, bastava-lhes aquele balançado olhar e punham-nos o corpo dormente; ora nos faziam sentir deuses, ora nos faziam sentir gente. Foi assim um dia, que, de repente, apareceram, e com o feitiço ainda quente, voaram, descalças e leves, e um coração levaram para que se derretessem as neves.
Dos princípios empírico-categorizáveis

Tal como a certeza, assim deve ser tratada a dúvida existencial masculina, sendo que da cuidada, sensível e inteligente abordagem feminina derivam a tranquilidade e o progresso da humanidade. Jamais aflorando sequer Lisistrata, o método é simples e o mesmo aplicável a todos quantos crêem que "quem cala consente": uma simples exegese equidistante.
Um dos mais prosaicos e simultaneamente misteriosos enunciados da nossa sofisticada condição é o: ‘cá se fazem cá se pagam’. É um conceito de certa forma vazio de moralidade mas prenhe dum equilíbrio ontológico ( e até de síntese fenomenologico-existencialista pelo mesmo preço) e ao certo não sabemos bem a sua origem, apresentando-se repleto duma transversalidade que arrepia: passa pelo amor, pelos negócios, pela família e pelos mais diversos vícios de boca e espinha, e restantes binómios de corpo & alma.
Hoje teremos a companhia da engenharia financeira básica ao serviço da alta mística no regresso do dicionário não ilustrado, a dedicar-se às diversas 'moradas da alma' que, no fundo, vive sitiada num ser em eterno e inexorável pagamento. A blogosfera já tinha direito a este tratado de mística renovadora e alternativa nas entradas 1173 a 1178 , que vão fazer parecer aquela outra excursão do Ulisses uma promoção da Halcon viagens em regime de meia pensão.

(Alma em) dívida – Este conceito está bastante ligado às circunstâncias fundadoras da espécie mas acaba por não ser um tema tão clássico como o incesto, o extermínio de amantes, ou o apalpanço de ninfas. Revela-nos essencialmente o nosso estatuto de animais menos auto-suficientes do universo ( daí a existência duma camufladora racionalidade e da cena da arca de Noé) e só quem não alcança que toda a vida é devida é porque se julga parido por dois fiadores atrás do balcão duma casa de penhores. É um estado da alma iniciático, e dalguma forma recorrente, mas tão imprescindível para a vida interior como a Autoridade da Concorrência será para analisar a potencial OPA da Lusomundo aos campos de milho de Samora Correia.

(Alma em) período de carência – A nossa natureza ficou avessa a despachar os assuntos às primeiras quando se apercebeu que o próprio processo criativo demorou 7 dias e que nem o género feminino saiu na fornada inicial de costelas. Toda a alma precisa dum aquecimento antes de começar a bombar o cashflow purgante e precisa igualmente de ir preparando as suas várias camadas de desgaste, tomando consciência que é no palimpsesto que está a sua sobrevivência e a sua potencialidade. Constatemos neste contexto que mais grave que Édipo ter casado com a mãe seria se, por exemplo, ele não tivesse limpo primeiro o sebo ao pai daquela maneira, preparando o caminho para um regime de prestações adequadamente trágicas. É um estado da alma absolutamente crucial, e pode ser tão determinante para a sua pujança e liberdade como seria para a República a colocação do busto do Afonso Costa ( em gesso marmoreado) como 3º figura do protocolo de Estado ( todo ele também muito carente como se sabe)

(Alma em ) prazo de pagamento – A nossa natureza (aquela mistura mais ou menos explosiva de sistemas nervosos e urinários) vive, como sabemos, duma ilusão de continuidade e duma ansiedade de recomeços ( ou vice-versa conforme o lado para onde tenhamos dormido). Um dos equilíbrios possíveis ao dispor encontra-se na costumeira divisão do tempo. Reparemos a este titulo que a invenção da roda não nos trouxe a descoberta do movimento mas sim a da circularidade. E foi assim que depois do ‘Tirésias’ veio o ‘Mickey’, depois veio o ‘Senhor dos Anéis’, depois veio o ‘Priorado do Sião’, depois virá o romance entre a Morgadinha dos Canaviais e o Apóstolo S. Tiago, e depois Steiner ainda descobrirá que Paulo Coelho afinal era duma linhagem canónica de grandes contadores de fábulas a par de Borges e da astróloga Maia numa sequência inscrita indelevelmente no nosso código genético ( e no da pescadinha de rabo-na-boca). Uma alma nesta fase tem de estar concentrada em todos os sinais exteriores e não pode desperdiçar energias a sonhar com amores impossíveis, ou com massagens esfoliantes e reflexologias diversas, ou com a ansiedade de saber se Freitas do Amaral anda a tomar os comprimidos a horas. No entanto, deverá aproveitar muitos dos mecanismos de escape com que se depare; e convenhamos que, por exemplo, antes uma histeria de registo alienante com o mundial de futebol, do que com uma marca de vaselina.

(Alma com) plafond esgotado – Nenhuma alma vem fornecida com a corda toda. Isso poderia dar azo a situações da família metafórica da erecção permanente e o Criador achou por bem pôr-nos uma rédea controlada. É pois bastante frequente a alma sentir que já deu o que tinha a dar e que o melhor então seria entregar-se ao alzheimer moral, uma espécie de ‘que se foda daqui a pouco já nem me lembro do nome dos sacramentos’. Mas Deus é essencialmente um negociador e jamais deixa uma alma cair na esparrela do desespero se ela se demonstrar ainda com alguma vontade para o negócio ( vidé exemplos como Ribeiro e Castro, Europa em geral, e Penélopes em período fértil). A relação com o divino é também uma gestão de expectativas, com a pequena nuance de que quem fornece a amostra para brincarmos é também o dono do universo. Nesta fase, a alma, refém da estatística do seu comportamento e da sua margem de manobra, o melhor que tem a fazer é treinar as piruetas e rezar para a rede esteja no sítio certo e que lhe achem graça: só assim voltará a ter corda. Depois só tem de lhe dar o uso certo.

(Alma em) mora – A entrada nesta fase por parte da alma pode parecer mais periclitante do que é efectivamente. A alma é inesperadamente um órgão muito bem talhado para a multa, para a coima, para a contra-ordenação, e até para o próprio emolumento. A alma foi pensada para ter de se estar sempre a justificar, para meter os pés pelas mãos de vez em quando, ela é mesmo um órgão político por excelência. No entanto, a alma – e especialmente nesta fase – gosta de se medir insolentemente com os Deuses, fazendo lembrar Agamémnon saído duma telenovela Esquiloniana depois de ter levado uma abada ao sete e meio da Cassandra. A alma tem o gene do atrevimento e é este o momento em que o deve levar a jogo, fazendo ver ao Altíssimo Credor: isto paga-se, mas calminha, que eu também tenho uma palavra a dizer, uma ropinha a secar, um bacalhau a acabar de demolhar, e o Tipo que ressuscitou o Lázaro também fazia as coisinhas lá muito à maneira dele e até chegou a dizer: ‘ainda não chegou a minha hora’. ( mas não chegou foi a dizer ‘eu vou andar por aí’... ora tu queres ver que o Santana...adiante)

(Alma em) valor residual – Sendo o desgaste uma evidência da nossa condição, e face a não sabermos ao certo como é que se nos aplica a fórmula da ‘renda perpétua’, o melhor que podemos garantir a título de consolo estratégico é que a nossa alma poderá valer mais que a mera avaliação decorrente da percepção dos especialistas do mercado. Mas uma alma quando chega à fase em que está obcecada com o seu ‘valor residual’ é porque afinal passou mas foi ao lado duma grande carreira no ‘aluguer operacional’ ( estou a começar a preocupar-me porque se calhar vocês não estão a acompanhar bem isto). Só uma alma de aluguer é que está totalmente dependente do seu valor no final do contrato; a alma que foi um investimento toda a vida chega ao fim mirradinha que nem um Benard da Costa a atribuir prémios de carreira ao Tom Cruise, parecendo que ainda pode dar mais duas voltas ao carrocel sem que tenham de lhe meter moedas e terá sempre uma corte de Antígonas Sofoclianas a lutarem por lhe dar uma sepultura digna.
Isto agora já só lá vai com um panegírico encharcado nas trombas

Julgo estar a chegar atrasado à coisa; mas.
Eu gosto do Carrilho. Estou quase a sentir-me como uma minoria étnica, mas tenho de admitir: eu aprecio a figura. Não consigo distinguir por entre as brumas do inconsciente qual será o motivo, se será a sua vitoriana popa, se será o sorriso de contornos sacanóides, se será o maravilhoso tique de ombros, se será aquele seu bucólico amor à verdade verdadinha, não consigo descortinar, mas na realidade há ali algo que me faz aderir quase incondicionalmente (a meio caminho entre o efeito epidural e a massagem do couro cabeludo). Mas julgo que será até algo de objectivo, de índole racional, elaborado mesmo, arriscaria.
Avancemos em formato avulso mas sem maçar com a exaustividade; o vídeo. Não vejo como é possível não se admirar alguém que conseguiu pôr o filho a dizer para a televisão sem se babar que adoraria ter o papá como presidente da câmara; pessoal! eu acho isto o máximo; por exemplo no meu triste caso particular treinei durante dois anos o meu filho mais novo (também são os piores, parecem touros que vão para a lide já toureados antes) para dizer que gostava de mim para as mais diversificadas e sofisticadas plateias, mas o sacana em mais de 90% das vezes preferia o Nestum com mel com Bayblades, isto sim é um facasso; quanto à famosa cena do aperto de mão, ora gaita, qual será o português que não sonha com aquele dia em que, quando um presidente da câmara qualquer lhe tentasse apertar a mão, ele o mandasse mas era para a bicha. Isto é definitivamente a melhor encarnação do portuguesismo profundo, e Carrilho (como poucos a usar a subtileza da ausência) soube condensar de forma exemplar. Depois reparem, o nosso Carrilho diz sempre que a culpa é dos outros e, isto sim, é que é corajoso nos dias de hoje; assumir as culpas é uma banalidade, ter a coragem de dizer que os outros todos é que são uma grande merda, e crápulas e incompetentes, isso é que é verdadeiramente distintivo e estruturante numa personalidade que valha a pena. Não há como o capote que tem a água bem sacudida para fazer pirraça aos impermeáveis de ocasião. E temos ainda aquela genuína pureza da ausência de metáforas. Carrilho não precisa de muletas de bafio naftalinizado, de pântanos, de cabalas, de tabus, Carrilho diz simplesmente que alguém o esteve a foder no serviço do quarto poder (aqui não tive verba para um trocadilho com room service) e acha que tem de deixar este testemunho às gerações vindouras (já se sabe que, tendo de ser geração, a melhor opção é ser da vindoura). Mais nobre intuito nos dias que correm, só estou a ver a lei das rendas, ou as estatísticas do Eurostat, ou os clisteres opacos.
Por detrás daquela popa em erecção controlada, por detrás daquele amor balsâmico (salada não incluída) por Bárbara, por detrás do apuramento de raça que é aquele seu nariz, está um homem que consegue escrever Nitsxe e Vitgenstein assim de repente e em corrido com menos erros de que o JPP a relatar o bolor nas lombadas de uma livraria no Bangladesh e, revelo-vos agora em primeira mão: só um ligeiramente obsessivo complexo de perseguição consolida uma personagem de eleição.
É pois na esteira daquele que muitos tentam boçalmente diminuir, de quem muitos escarnecem com maledicências de subúrbio em déficit de acessibilidades, daquele que muitos invejam a lata de ser politicamente pedante (a palavra arrogante como sabemos foi comprada em leilão por Mourinho a troco do elástico das cuecas que vestia quando foi campeão europeu), dos que sabem expor os seus complexos como se fossem as suas virtudes, é na senda destes homens que se formam as urbes independentes e livres de leviathans hayekenizados (ligeiramente diferente de lexotans viagrinizados). Carrilho usa a pose como paramento, enquanto outros fazem dela o próprio cálice. Saber perder é coisa para parvos.
Faltam-nos é mais Carrilhos e sobejam-nos badalos, concentramos esforços a criticar provincianamente Carrilhos para depois sermos complacentes com Armandos Varas, ou como alguém diria, com tenores que só miam. Portugal, que já foi o país da inveja, sim já terá sido, agora é o da brotoeja.
Uma das coisas que a Bíblia também pode mostrar é que depois da lavagem de mãos de Pilatos a verdade nunca mais se recompôs.
"Spellbound" (*)

Ou variações em torno de dívidas e afins:




Notas de pé-de-página: 1) o kitsch nublado é brinde; 2) os juros de mora acordar-se-ão a prazo.

(*) Título de um poema de Emily Brontë
smsantologia [hors-série]

Já uma volta déramos aos montes
E em seu caminho o sol andara mais
Do que julgara minha mente absorta.

No meio do nosso caminho aceso
Outra gente ao encontro desta vinha
E suspenso pus nela meu olhar.

Ali vi apressar-se dos dois lados
Cada sombra e beijarem-se uma a uma
Alegres, sem parar, na breve festa.

Assim nas filas negras as formigas
Uma com a outra juntam os focinhos
Talvez pra perguntar qual o caminho.

"Ó minha força, porque assim te afastas?"
Comigo disse, pois eu já sentia
A potência das pernas pedir tréguas.

Nós estávamos onde não subia
Mais a escada, estávamos parados
Como uma nave quando chega à praia.

Depois, quando essas sombras se afastaram
Tanto de nós, que já não se avistavam,
Surgiu dentro de mim novo pensar,

Do qual outros diversos derivaram,
E tanto entre uns e outros divaguei
Que os olhos de tão vagos se fecharam

E os pensamentos sonhos se tornaram.

Dante, A. (1981). "Purgatório". In A divina comédia. Lisboa: Círculo de Leitores. Tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen et al.
Perdão?!?!



Fonte: www.perles.tv
Arejando, à falta de problemas com celulite, casca de laranja e excessivo arredondamento de formas

Um dos grandes contributos da teologia é ensinar-nos que é preferível andar com as calças na mão do que com o diabo à perna. A nossa condição comporta efectivamente alguns riscos, desde o mais óbvio de podermos chegar a não distinguir a existência de Deus no intervalo dos pingos da chuva, até ao limite de sermos levados ao encanto lírico-intelectual com alguma parvoeira que alguém tenha escrito em ‘letra botada em carreirinha’. Aliás, a literatura (nos seus mais variados e decadentes sortidos) tem-se comportado como uma evidência da degradação da espécie, senão vejamos como meros exemplos: enquanto aquela xaropada da Odisseia andava apenas de boca em boca ninguém desgastava o aparelho digestivo a elevar a mito os problemas hormonais da Penélope, e até antes dos evangelhos passarem a escrito, os primeiros cristãos ora eram comidos pelos leões, ora crucificados, ora feitos em churrasquinho, ora se borravam de medo nas catacumbas entre duas jogatanas de king, mas jamais perdiam tempo a descortinar figuras de estilo nos sermões da montanha, e isto para já não falar de que bastou os índios deixarem de ter verbas para os sinais de fumo que o pessoal teve de ir logo a correr inventar o verso livre. Um triste espectáculo. Se civilização é isto, vou ali e já venho. No fundo, escrever é praticamente a mesma coisa que mexer na lingerie de mulher mas sem a mulher, e é de facto uma pena verificar que até há gente de bom coração, gente até com a mais refinada estatura moral e conveniente doutrina, e mesmo com as capacidades procriativas e estimulativas teoricamente intactas, gente que chega a entender a espaços as idiosincrasias do sexo oposto, mas que acaba por desperdiçar os seus neurónios enleados na futilidade da escrita. Ora é nesta decorrência que a Teologia moderna deveria deixar para segundo plano a resolução de problemas como os bichos de estimação dos casais de paneleiros, pôr de lado o estudo do potencial erótico do umbigo das adolescentes, e deveria fazer marcação cerrada a pessoal que escreva coisas sem nexo e que ainda por cima nem rimem. Retomo o fio à meada: uma coisa é andarmos com as calças na mão a fugir das tentações, outra é deixarmos que o diabo nos morda pensando nós que era um bicho-da-seda com cio. Se podemos decorar a vida com o mármore da ilusão (mais ou menos freudiana) porquê contentarmo-nos com fórmica do paleio (mais ou menos proustiano ou joyciano) , esta é a grande questão do nosso tempo; e se podemos ter uma consciência em estilo manuelino porquê contentarmo-nos com um inconsciente colectivo folheado a mogno com incrustações de Manuel Pinho. Mas ter consciência é realmente ter de assumir alguns riscos, e por isso, a Teologia deveria era preparar o mundo para combinar Deus e a mini-saia, o Espírito Santo e as calças justas, os Sacramentos e o decote de geometria variavel, e preparar-nos para definitivamente não ficar deliciados com a bela escrita, que nem judeus aos risinhos nervosos porque viram fazer um milagre ao sábado. E a exegese (ora mais folclórica, ora mais teológica) em vez de metonimizar sodomas e gomorras nos novos anúncios da sloggy, deveria era procurar afastar as almas dos Blooms, dos Botons e dos novos reader digests do liberalismo anglo-cacofónico e fazê-los compreender que o único cânone que vale a pena é o das bodas de caná: no final isto há-de acabar tudo com uma grande piela, mas só vomitarão os que tiverem dado serventia à literatura marada. E agora volto para dentro e vou ali a Badajoz pedir para que me repitam a amniocintese.
Teleonomias

A arte do óbvio ululante (*): insistir sem saber, sempre.

(*) Nelson Rodrigues (1968)