Crónicas do deserto

O danado do eslavo-catalão que me emprestou o palmtop ainda agora deve estar a convalescer, pelo menos psicologicamente, da queda do grande camelo, por acaso uma fêmea irritadiça com um muito vago ar reflexivo projectando um sombra de remoto interesse sobre a franja. Não por falta de avisos, todos lhe tínhamos dito que meter-se no whisky canadiano, mesmo com o nome ínclito de Old Overholt (e em letras pequeninas, por baixo, um nada tranquilizador 'straight rye'), não daria bom resultado ainda que em passeio à trela pela espessura das dunas. Que nada, que ali na areia a perder de vista, e a torrar ao sol, é um álcool assim vegetarianizado e superficial a única coisa que não faria mal beber. Que o 'cereal' não lhe fez bem é um facto e as oscilações deviam ajudar a pô-lo zonzo porque lá ia sarrazinando meio mundo com a história da invenção das bebidas destiladas pelos alquimistas islâmicos, etc etc. Um perfeito disparate, como é evidente, português algum iria acreditar naquela treta! Voltámos a pensar o pior quando, na descida abrupta de uma pequena lunar, começou a discorrer sobre o equilíbrio da anatomia das figuras humanas dos frescos de uma capela italiana quando toda a gente sabe que confusões há muitas (e se não sabe pode consultar a internet e fica a parecer que sabe, basta atirar com a ignorância para trás das costas largas do Google porque, em alguns países, se se considerasse o exibicionismo provinciano matéria colectável rapidamente haveria recursos para reforçar o orçamento de estado, por exemplo na educação). Ondeou na sela quando se meteu no conceito de 'máquina' de Guattari: afinal só teria sido criado porque era necessário explicar o direito que todos temos a discordar, ainda que de Kant, a propósito do conceito de originalidade em arte - não se pode pedir a um eslavo que compreenda de imediato, mesmo adaptando-o às especificidades locais, o aforismo português 'a camelo dado não se olha o dente' mas para um catalão era claro que quando se paga por um camelo com defeito se adquire não apenas o direito mas também o dever de questionar o valor do animal. E foi quando (agora não sei precisar se por causa ou efeito, estes problemas da metonímia dão-me cabo do tempo para estas coisas e ainda tenho de aproveitar o tempo de gprs para actualizar o meu blog) desatou a perorar sobre a persistência e a perniciosidade da busca da originalidade enquanto legado incontornável, a um tempo ideológico e metodológico, do modernismo, que ocorreu o tombo. Para encerrar ainda sussurrou qualquer coisa que soou a cultura pop e efeito social da arte mas já tinha a boca cheia de areia e, como é normal acontecer nas crónicas modernas e presumidamente originais, não se percebeu nada.

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