Deus é quem menos cumpre as nossas expectativas. Tal como
quem amamos acaba por ser quem mais nos falha, Deus está frequentemente a jeito
para que lhe apontemos o dedo - mais ou menos piedoso - da desilusão. Em geral
exigimos-lhe que seja mestre no campeonato das grandes contradições: esteja
perto sem nos chatear, seja previsível mas surpreendendo-nos, esteja longe mas
fazendo companhia, nos dê o possível na medida do impossível e nos dê o
impossível na medida do possível, em suma, também já estará habituado a que ter
de ser só nosso mesmo sendo de todos. Quem já se sentiu abandonado por quem ama (e quem nunca
sentiu isso não sabe o que perde) entenderá facilmente que não há maior
desilusão que uma ausência incompreensível. A religião permite apenas uma
ligação imperfeita, o Deus que nos foi concedido não passa da clássica sombra
projectada no fundo da Caverna, e a sua graça pouco mais efeito dá que uma
terminação de lotaria. Sendo que a espiritualidade é uma técnica de gestão da desilusão,
tal como uma palavra não passa de um beijo que não foi possível, (nenhuma
declaração por mais solene que se apresente substitui um carinho por mais fugaz
que seja), Deus só é compatível com uma profunda tristeza de nunca sabermos por
que age Ele assim, por que faz Ele assado ou cozido. As chamadas virtudes
teologais são de certa maneira panaceias de quem sabe que não terá talentos
para viver mano-a-mano com um Deus que está sempre Além mas que é sentido como
estando sempre Aquém. Como alguém que está sempre com medo que o seu coração
falhe por não aguentar um amor que não é correspondido, a maior força de um
crente é saber desiludir-se com uma resistência de maratonista, que sonha ter
depois de cada curva um posto de abastecimento , ou um aceno com sorriso. É
mesmo aconselhável que Deus seja pai e seja Perfeito, pois para nos
aproximarmos de Deus temos de saber viver desiludidos com Ele.
Teologia da Abstracção
Por regra, no excêntrico universo da análise moral,
consideramo-nos pecadores em abstracto mas boas pessoas em concreto. Com
facilidade assumimos uma contrição quase estética sobre uma tendência genérica
para a imperfeição (não confundir com a maldade) mas confrontados com um
contacto objectivo com ela somos facilmente levados a descartá-la, ou a
camuflá-la sob capas do psicoloden, quando não a veementemente negá-la. A
experiência da culpa definida e circunscrita é muito mais penosa que a falha
assumida como uma tendência imanente de malandragem, ora literária, ou mesmo
cómica. Por outro lado todos temos pecados de currículo, pecados que nos ficam
bem, como adereços de moda ou relações de conveniência. Ou seja, a imoralidade-como-composição
é uma das boas invenções do espírito humano no intuito de se proteger desse
peso esmagador que é a existência duma lei moral omnipresente. Assim, a batalha
essencial da alma malabarista é conseguir transferir do concreto para o
abstracto a sua ligação à imperfeição, à culpa, ao pecado. A experiência
amorosa costuma ser boa e didáctica companheira neste processo pois nela
geralmente encontramos bons exemplos de grandes amores abstractos que se
transformam sem grande esforço em indiferenças, quando não mesmo negligências ,
objectivas e concretas quando o suposto-amado está ali disponível para ser pau
para toda a colher. O fenómeno da diluição da experiência por força da
capacidade de criação do eu-de-referência permitirá ao homem apresentar-se
perante o Criador com uma limpeza que seria imprevisível face aquilo que hoje
se chama de vidas complicadas. No
entanto, o contacto com o eu-de-experiência também não será totalmente
descabido uma vez por outra, até como molho agridoce duma existência que tudo tem para ser enfadonha, mas a grande aventura
humana é mesmo elevarmo-nos a seres de ficção, avatizáveis, imunes a essa
contaminação de catecismo a que se chama a culpa concreta. Filhos da grande Mãe
Inocência e apenas amamentados por uma Eva de Percalço, estamos talhados para
ser santos, o pecador é um tipo que se distraiu com os detalhes.
Etiquetas:
teologias alternativas
Liga da Solidariedade
Resultados da 1ª jornada
Sport Lisboa e Bem-fazer - 1 / Companhia Portuguesa da Caridade - 0
Depois de uma primeira parte muito equilibrada, o S.L.B.
soube aproveitar muito bem uma falha da C.P.C. numa distribuição de fanecas
fritas com arroz de tomate demasiado apurado e depois segurou a vantagem até ao
fim, tendo até desperdiçado uma ocasião soberana de aumentar a vantagem com uma
entrega de leite magro no banco alimentar de Elvas mas que acabou por ser
substituída à ultima hora por duas toneladas de lingueirão de conserva que não
foram aceites por pacheco pereira devido à sua origem religiosa das reservas da
quermesse de páscoa da paróquia de benavente.
Desportivo das Sopas - 2 / Cobertores Sport Club - 2
Foi um jogo bastante bem disputado com incerteza constante
no resultado. Se o C.S.C. com a sua primeira distribuição de edredons com
enchimento de poliester conseguiu adiantar-se no marcador, rapidamente o D.dS.
não enjeitou a possibilidade de empatar com uma deliciosa sopa juliana
distribuída em tigelas com a imagem de kate middleton em top less no fundo. No arranque da
segunda parte, quando parecia até que o DdS. se iria impor sem dificuldades com
o seu famoso Creme de Cáritas, o C.S.C surpreende com uma fantástica remessa de
cobertores num padrão igual à gravata de lobo xavier. No entanto, já ao cair do
pano, uma rodada de caldo verde nas avenidas novas repõe justiça no resultado,
já não dando tempo para nenhuma reacção de pacheco pereira que esbracejava
junto ao Saldanha apontando para um crucifixo no pescoço do massagista da D.dS . Ainda saltaram do banco umas trouxas com mantas em imitação da burberis mas pouco mais fizeram que justificar o duche, ou melhor, a centrifugação a baixa temperatura.
Racing do Cesto Cheio - 5 / Lokomotiv de Enlatados - 0
Uma verdadeira demonstração de classe por parte do R.dC.C.
Desde cedo se percebeu que não iriam facilitar e depois duma primeira cabazada
de pêssegos em calda seguida de um fornecimento de shortcake, deixaram o L.dE.
praticamente sem reacção palpável. Ainda esboçaram uma situação de perigo
quando Pacheco Pereira apareceu com uma palete de sardinha com a inscrição
'este óleo vegetal não serve para utilização em unguentos sacramentais' mas foi
sol de pouca dura face ao rolo compressor do R.dC.C. que não desperdiçou
nenhuma oportunidade. Mais perdulários se mostrariam na parte final do
encontro, quando perdoaram a meia dúzia, num falhanço incrível à boca dum lar
de reformados do parlamento em que antónio costa acenava desesperadamente
trajando à sans culottes.
Etiquetas:
La vie au Rachat
Dívida Metódica
Subsídios para uma reestruturação
Primeiro pega-se numa dívida e analisa-se o credor; antes de
nos pormos a verificar para que teríamos precisado nós do dinheiro, haverá que
escalpelizar porque teria precisado o credor de nos emprestar.
Em segundo lugar haverá que dividir a dívida em várias
parcelas: nunca o dinheiro serve para apenas uma coisa, a dívida é como a dor
de rins: 1/3 é má postura, 1/3 é deficiente movimento de fluidos e 1/3 é a
presença de cálculos agressivos. Por isso, quando nos pedem que paguemos algo,
comecemos primeiro por alterar apenas a postura. É péssimo fazer reembolsos de
cócoras.
Terceiramente (é o adverbio de modo de estar em terceiro) devemos
considerar que antes de chegarmos ao milhão temos de passar pela dezena, depois
pela centena, de seguida para o milhar e por aí adiante, e apenas se der tempo
analisaremos os seguintes, pois ninguém percebe decentemente o valor de um milhão
se não tiver derretido antes uma boa centena de milhar. Ou seja, antes de pagar
uma centena que seja devemos pagar primeiro uma ou duas dezenas para ver a
reacção. Credor que não saiba valorizar o pouco não é digno de receber o muito.
Por quarto e último, como fez o nosso descartes, a dívida
deve ser revista. Uma dívida com o tempo vai-se alterando e quando chega à sua
maturidade pode perfeitamente já não estar em perfeitas condições e o credor
terá obrigação de nos dar uma nova. Ou seja, a renovação da dívida é uma
obrigação do credor, tal como é o senhorio que tem de garantir que a casa está
em boas condições de uso para o inquilino.
Etiquetas:
La vie au Rachat
Porta 9B
Encontraram-se num restaurante que ocupava o espaço ao lado
da galeria. Era um restaurante popular, com uma clientela fixa e onde nem
Arménio nem Áurea, curiosamente, alguma vez tivessem entrado. Não seria o local
mais aconselhado para uma conversa de reatamento, ou balanço, ou até de
reconciliação, mas foi o que ela escolheu, e mais uma vez ele,
inexplicavelmente, se mostrou incapaz de a contrariar. O prato do dia era
cozido, um grupo de padres e seminaristas ria-se numa mesa próxima, como que
querendo demonstrar que sob determinadas condições afinal a carne vale, por
mais fraca que possa ser. Seria a carne algo que os unia ou os separava, pensou
Arménio enquanto observava o excesso de formalismo de Áurea. Ainda ele não se tinha refeito de uma certa estranheza
em relação ao seu comportamento, quando ela o convidou a sair e a darem uma
volta pela rua. Passaram por uma loja de sofás e entraram, ela queria renovar a
decoração do seu escritório e pretendia comprar uns sofás para o seu gabinete -
para alguns clientes especiais se sentirem mais à vontade, estás a ver? Ele
estava a ver tudo. Lembrou-se do dia em que a vira pela primeira vez,
lembrou-se do primeiro dia em que ela lhe embrulhara o primeiro não, lembrou-se
do primeiro beijo que lhe deu a medo, lembrou-se dos repetidos calculismos dela,
lembrou-se das aguarelas que ela lhe devolveu, lembrou-se das certezas que
tinham trocado, lembrou-se daqueles momentos longínquos em que todas as dúvidas
pareciam estar dissipadas. Ela subiu para o escritório e ele continuou a descer a rua, passando para o
lado dos números pares. Poderia ser que ela ainda lhe viesse acenar à janela. Não
veio.
Ela telefonou-lhe passado uma semana, disse-lhe que naquele
dia quisera perceber se estava preparada para o receber outra vez no
escritório, de voltar a trabalhar com o portfólio dele, e tinha ficado contente
por concluir que ainda sentia o mesmo por ele. Achara-o distante, mas queria
saber se ele estaria disposto a pintar uma nova série de aguarelas a ilustrar
uns poemas que ela escolheria. Pintar só para ela - como nos velhos tempos.
Fazê-la rir - como nos velhos tempos. Ele nem sabe bem o que respondeu. No dia seguinte Arménio dirigiu-se ao
restaurante do 9B. O prato do dia era cozido outra vez mas os padres tinham ido
pregar para outra freguesia. Enquanto se encostava no balcão viu passar um sofá
novinho em folha para o escritório de Áurea e pensou que tinha guardado uma
aguarela que calharia bem na parede que recebesse aquele couro em tons de terra
barrenta. E foi nesse preciso segundo que descobriu que não passava de um
parvo. E que merece um parvo?
Etiquetas:
contos
Porta 9A
Enquanto Arménio subia era assaltado pelos pensamentos mais
vulcânicos que jamais tinha experimentado. Ainda estava a meio das escadas
quando ouve a voz de Áurea, vinda dum patamar mais acima, pedindo-lhe para ir
andando para a loja que ela já lá iria ter. Que saudades ele tinha daquela voz
que já lhe revolvera todas as glândulas num passado não muito distante. Desceu
de forma automática - sempre lhe tinha obedecido, como que movido por uma força
inexplicável - sem sequer ter pensado no que significava a tal loja na qual ele
nunca tinha reparado, nem sequer sabido da existência. Mas lá estava, era uma
galeria de arte novinha em folha, aberta certamente havia poucos dias e onde se
podiam ver, entre outros quadros, algumas das suas aguarelas.
Mal sabia Arménio que nunca mais subiria ao escritório de
Áurea. Os seus clientes tradicionais tinham-lhe feito ver que ela não poderia
prestar tanta atenção ao portfólio de Arménio e que isso a estaria a dispersar,
desperdiçando eficiência e fiabilidade. Estava ele com o seu olhar vago e opaco
quando ela entrou na loja. Os seus olhos expressavam uma tristeza ainda sem
lágrima e uma revolta revestida de expectativa. Não perdeu tempo a perguntar:
Porque andou a expor noutras galerias? Ele ficou espantado, não esperava a
pergunta, ou melhor, a pergunta parecia-lhe despropositada, fora ela que o
tinha abandonado por razões que eram apenas dela. E ele não tinha feito
exposição alguma, tratavam-se de informações deturpadas a que Áurea tinha dado
ouvidos. Criou-se um momento de violência silenciosa, como que tudo o que fosse
dito só servisse para se agredirem, e os deuses promoveram a paz do consenso
possivel. De todo o modo se houvesse algo a perdoar imediatamente ficou perdoado.
Corroído pela memória, sufocado pelas frustrações reprimidas, Arménio naquele
momento via a sua revolta ser totalmente diluída pela presença de Áurea.
Naquele período de ausência algo se teria perdido e algo se teria ganho, mas
naquele momento ele não tinha capacidade para grande saltos analíticos. Deveria
ter sido claro para ele que Áurea o tinha marcado com o ferro do abandono e lhe
quisera transmitir a real posição dele na vida dela: era apenas um cliente
diferente, diversificava-lhe o risco, mas não estava no seu cuore business. Mas ele não percebeu, os
seus sentimentos despidos de calculismo impediam-no de ver tão distintamente.
Todos os dias ia passando pela rua, como habitualmente, sempre
à espera que ela o convidasse outra vez a entrar na loja, mas o mais que dela
foi tendo notícias era pelos convites para inaugurações de exposições alheias.
A suas aguarelas tinham passado à história , mesmo que ela se esforçasse por
lhe fazer chegar aos ouvidos que não havia ilustrações como as dele. A sua
ingenuidade foi-lhe alimentado uma ilusão crescente até que um dia ela o
convidou para se encontrarem, em terreno neutro. Ele foi.
Etiquetas:
contos
Porta 9
Arménio Jasmim subia aquela rua íngreme como o começara a
fazer regularmente desde o início do ano. Por regra não assumida escolhia o lado da
numeração par, mas naquele dia frio e seco preferiu o sol que se apresentava
acolhedor do outro lado. As portas não lhe eram tão familiares, as caras dentro
das lojas também não, uma ou outra talvez, do café ou da papelaria onde entrara
três ou quatro vezes, se tanto. Ia observando com alguma atenção mas sem aquela
curiosidade que produz verdadeiras descobertas. Foi assim com um ar meio
displicente que deu de caras com uma tabuleta no número 9 que anunciava 'Drª
Áurea Martins - Solicitadora'. Poderia ser mais um escritório entre muitos, mas
um impulso sem explicação perceptível fê-lo entrar. Uma solicitadora poderia
ser aquilo que ele precisava ou mesmo ansiava inconscientemente. Mas uma dúvida tinha-se-lhe instalado logo nos
primeiros lances de escada: seria alguém que faria o que ele solicitasse, ou
alguém que solicitasse por ele, ou que o representasse em actos oficiais, ou apenas uma pessoa formalmente solícita que se
disponibilizava a ajudar os clientes em geral naquilo que eles precisassem.
Iria descobrir. Mas convém dizer que de facto Arménio nada procurava em especial,
parecia apenas movido por uma simples mas determinada intuição de que ali estava algo - alguém, mais propriamente -
que lhe iria mudar o rumo da vida.
Quando entrou, Áurea estava num corredor amplo, em forma de meia-lua, uma espécie
de recepção, e tinha um vestido preto que lhe dava um ar simultaneamente sensual
e competente, aquilo que se poderia considerar uma combinação ideal, e que ele nem
suspeitava, mas rapidamente mais que suspeitou, lhe iria dar a volta à cabeça, sendo a cabeça apenas um tudo por representação. Teve de arranjar um motivo para a
visita e perguntou-lhe se estava disposta a representá-lo junto de uma galeria
célebre onde ele queria expor um conjunto de aguarelas que ilustravam de forma inovadora sem inovar, foi essa a expressão que usou, algumas cenas de
'Os Maias' de Eça de Queirós. Apesar de ser a primeira vez que lhe aparecia
alguém com um pedido daqueles, claramente fora da sua actividade normal junto de entidades oficiais, não estava na sua marca genética nem comercial
desdenhar qualquer cliente que fosse e aquele até lhe parecia um trabalho curioso
e original, à noite sonhou-o até como raro e luminoso, mesmo que apresentado por um potencial cliente sem especiais atractivos de qualquer espécie ou jeito.
Iniciaram a colaboração e a porta 9 tornou-se um destino
comum para Arménio. Com o tempo Áurea começou a gostar do seu cliente e não foi
de estranhar que acabassem por criar uma relação de grande intimidade, não
tanto física, mas física porque na pele e no olhar começa o corpo, numa enorme cumplicidade, termo que por aqueles tempos se tornava corrente ler nas revistas da
especialidade sentimental. Áurea sempre conseguiu manter uma postura fria e
distante - devia colocar um iceberg na sua tabuleta, dizia-lhe ele de vez em quando - com Arménio e este não a queria forçar a dar nenhum passo do qual não
estivesse seguro da vontade dela, numa mistura de ingénuo, tímido e cerebral, se não lhe quisermos destruir já o carácter antes de acabar o terceiro parágrafo.
Se algo a definia a ela era um superioridade assumida, um ascendente emocional próprio de quem gere a dúvida e a insegurança alheia. E assim, ou mesmo assim,
de impasse em impasse, foram construindo uma ligação forte, inequívoca e
singular, praticamente um erosmilhões para quem observasse de fora; mas ninguém observava de fora. Romântica, como qualquer ligação que desafie as regras da causalidade
amorosa, Esforçada, como qualquer relação que não tem um suporte logístico a
justificá-la, e Livre, como qualquer relação em que nenhuma parte tem
compromissos com a outra que não a lealdade. Com o tempo o enredo estava marcado pela intensidade e pela extraordinária união de afectos, mais aguarela
menos aguarela. Também com o tempo vieram as previsíveis primeiras frustrações dele, que não
sentia provocar a mínima atracção em Áurea que não aquela que resultasse da
curiosidade intelectual ou da mera companhia agradável. Nenhum homem gosta de
concorrer na liga dos caniches, chegou a dizer-lhe naqueles momentos de balanço
que aparecem sempre no meio duma onda mais atrevida que prenuncia uma
tempestade.
Num inevitável-evitável dia deu-se um solavanco que os afastou. Ele continuou a subir a rua mas ela já não tinha tabuleta afixada no nº9, tinha-se mudado para outro escritório, nem muito longe dali, tinha escolhido uma clientela mais certa, achava que Arménio não lhe garantia estabilidade, era errático nas suas aguarelas e nos textos que ilustravam, ora um dia comédias, noutros dramas, tragédia e sátira demasiado juntas. Ele sentiu aquele abandono duma forma cruel, sim cruel não é excessivo, mas se abandonado estava, morto não estava, era um evidência, o que me lixa são as evidências, haveria ele de repetir muitas vezes para si próprio.
Quando ela lhe fez chegar um conjunto de aguarelas ele destruiu-as de imediato, uma saudade não correspondida é um sofrimento sem cruz. O tempo foi passando como um nada sem fundo. Um dia, Arménio descia a rua pelo lado dos números pares e viu luz num dos andares da porta 9. Áurea estava à janela e acenou-lhe, tímida, mas resoluta, aliás, mais resoluta que tímida, pois tinha a certeza que ele subiria. Ele subiu.
[continua]
Num inevitável-evitável dia deu-se um solavanco que os afastou. Ele continuou a subir a rua mas ela já não tinha tabuleta afixada no nº9, tinha-se mudado para outro escritório, nem muito longe dali, tinha escolhido uma clientela mais certa, achava que Arménio não lhe garantia estabilidade, era errático nas suas aguarelas e nos textos que ilustravam, ora um dia comédias, noutros dramas, tragédia e sátira demasiado juntas. Ele sentiu aquele abandono duma forma cruel, sim cruel não é excessivo, mas se abandonado estava, morto não estava, era um evidência, o que me lixa são as evidências, haveria ele de repetir muitas vezes para si próprio.
Quando ela lhe fez chegar um conjunto de aguarelas ele destruiu-as de imediato, uma saudade não correspondida é um sofrimento sem cruz. O tempo foi passando como um nada sem fundo. Um dia, Arménio descia a rua pelo lado dos números pares e viu luz num dos andares da porta 9. Áurea estava à janela e acenou-lhe, tímida, mas resoluta, aliás, mais resoluta que tímida, pois tinha a certeza que ele subiria. Ele subiu.
[continua]
Etiquetas:
contos
úlcera no duodécimo
Desde que o homem decidiu que os astros lhe comandariam a
vida que dividimos o tempo em anos e os anos em meses. Daí até duodecimarmos a
existência foi um pulinho mais curto que aquele que leva a gosma da faringe ao
céu da boca. Assim, confrontados com uma marcação de passo que era
imposta pela posição da nossa lua face ao nosso sol, quisemos libertar-nos desse
espartilho astrológico através daquelas delicatessens
cronológicas chamadas décimo terceiro mês e subsídio de férias. Foram épocas em
que o homem se pensou um mago do tempo, um esticador de horas, um novo deus do
calendário. Foram décadas bonitas, em que espatifávamos uma bastilha em cada
seis meses, mesmo sem ser preciso ver a praia debaixo das pedrinhas da calçada.
Mas vamos agora voltar ao mísero ano-de-doze-meses, ficando novamente reféns da
ditadura da traslação e teremos de pôr a imaginação outra vez a trabalhar para driblarmos
o inexorável. Como se não bastasse termos perdido a companhia desses dois
duodécimos suplementares, aos quais inclusivamente já tínhamos o próprio corpinho
habituado, verificamos que os restantes ficam mais vulneráveis à fiscaloscopia e observamos então que nos enfiarão pelo duodécimo adentro, qual fanáticos da biopsia
e do folículo, um tubinho frenético e curioso que não vai descansar enquanto o
ano não ficar com onze meses.
Etiquetas:
La vie au Rachat
ano karenine
(...) já tinha notado há muito que quando as pessoas se
sentem incomodadas pela sua excessiva docilidade e submissão, muito depressa se
tornam insuportáveis por uma excessiva exigência e susceptibilidade
Início do cap. XXXII
Teologia da Hibernação
Com um deus distante e uma fé invernosa escolheu o seu
deserto interior para refúgio maldito. Mau conselheiro de si próprio mas
desconfiado do conselho de alheio, entregou-se a memórias vagas e recalcamentos
persistentes, desatou os nós que trazia no estômago e esperou pela pancada.
Veio ao terceiro dia, como uma ressurreição pagã, disfarçada de dor de
garganta, pois tudo que vale a pena precisa da dor para ter dignidade. Agarrado
pelas entranhas superiores perdeu-se em divagações sobre a culpa e o destino, a
sorte e a má sorte, o reconhecimento e a incompreensão. Estava no consolo que
toda a ingratidão propicia quando um Espírito Santo sem orelha lhe sussurrou
duas verdades de demonstração inacessível para o seu grau de sofisticação no
momento. Forçado a crer como alternativa viável, aconchegou-se naquele prazer
demoníaco que é todo o desprezo pelo que nos rodeia e soltou a língua em forma
de avé-maria sem graça. Recolhido na oração dos simples, deixou o coração
divagar pelos pecados que nunca tinha cometido, mas que lhe tinham sido
prometidos pela imaginação em estado de flor, e ruminou uma contrição de
circunstância abrilhantada por dois toques em solavanco por um peito ainda em
posição de pós insuflação arrítmica. Caçado pelo cruel predador que é a solidão
imposta, um felino que nem sequer mija por onde passa, deixou-lhe as feridas
para lamber, qual retalhista de almas para chulos montados em estofos de pele. Com o
arrependimento a aproximar-se em pezinhos de lã, deu duas voltas à goela
embebida em conhaque e suspirou como só um grande falso incompreendido sabe
fazer. Coladas as bem-aventuranças com cuspo, citado o filho pródigo como quem
limpa o rabo a meninos, e enfiadas duas bojardas evangélicas ao ritmo de quem
cose uma gengiva, ei-lo com o espelho da alma bem espetado nos cornos, verdadeiros talentos à espera de parábola. Nem pestanejou. Abriu os olhos com
a rapidez e a precisão duma vítima furtiva e pôs-se na mira do anjo da guarda.
O grande mar vermelho abriu-se outra vez para a sua passagem e quando chegou ao
outro lado abraçou um novo verão de promissórias várias, montado numa cavalgadura
de tentações de fazer chorar qualquer menino jesus devidamente recenseado. Cada Estio deve ter direito à sua caverna invernosa.
Etiquetas:
teologias alternativas
Subscrever:
Mensagens (Atom)