Giacomo Piolini sentia-se, e consequentemente, no caso, considerava-se, um artista. Contudo, não apresentava talentos para render na vasta amálgama das designadas artes consagradas (uma espécie de estados religiosos aplicados à arte), daquelas em que não era preciso apresentar resultados explícitos para um artista se sentir realizado ('sentir-se realizado' é a 5ª essência da natureza humana, e a 1ª essência da natureza artística a par do Kunstschaffende Gedanke, já se sabe). Ora se é do acordo comum que um bom escritor não precisa de ser lido, um bom realizador não precisa de ver os seus filmes todos apipocados nas salas de cinema, um bom escultor não precisa de ver as suas obras a servirem de pisa-papéis, um bom pintor não precisa de vender os seus quadros ao Berardo, um bom actor de teatro não precisa de trepar às paredes como a beatriz batarda, and so on, and so on, Giacomo descobriu então que: se também se assumisse como um artista-do-negócio, poderia perfeitamente realizar-se sem que da sua arte tivesse de resultar qualquer mínimo vestígio de lucro, que, como é do conhecimento geral, e nalguns casos particular, se estabeleceu como a regra de oiro, mesmo com estatuto de condição sine qua non, para definir a bondade do negócio-que-não-é-arte-mas-apenas-negócio.
Doctor Piolini dedicou-se assim a conceber, planear e executar projectos de índole empresarial, nos quais realizasse a sua Kunstwollen sem o imperativo categórico (perdoem-me a deKantação terminológica) do cash-flow, ombreando assim sem vergonha com pintores da nova figuração, romancistas de diálogos do eu, bailarinos contorcionistas do expressionismo e cineastas do deserto da intimidade. Claro que teria sempre de ficar claro que jamais se trataria duma mera actividade-sem-fim-lucrativo, (como lavar o cuzinho a velhos indigentes ou distribuir sopas a benfiquistas) Não! mas outrossim algo que, de facto, estava rigorosamente pensado para dar lucro, mas pura e simplesmente dele não necessitava como raison de satisfation, tal como um pai-nosso se reza para nos dar força d'alma mas basta sabermos que nos pode salvar das chamas do inferno para aguentarmos a angústia da existência por mais uns 30 ou 40 e picos anos.
A sua primeira instalação - designação emprestada pelo sempre inovador e generoso mundo das artes mais ou menos plásticas - de negócio-arte concretizou-se numa empresa de polimento de minerais para incrustação em pontas de bengalas, pingalim's e bastões diversos. Tratava-se dum nicho dentro dum nicho, mas que cruzava várias linhas de força dentro do cluster dos body-suplements: 1) uma necessidade óbvia ( de coxos e demais aleijados) com 2) um adereço estético clássico (são vários os exemplos), acrescentando-lhe 3) uma nova singularidade estética com espasmos de propagação (leia-se: moda) e 4) uma nova forma de distinção (agora que se torna, meus Deus, cada vez mais difícil distinguir quem é quem na sociedade).
À estrutura da empresa foi decidido enquadrá-la num clássico funcional, uma espécie de chanel dos organigramas, sendo que alguma transversalidade também era admitida face à segmentação de negócios: linha coxo tradicional, linha paneleirote, linha aristocrática e linha gadjetada. Cada área tinha objectivos traçados anualmente, conta de resultados autonomizada e, obviamente, planos de investimentos, marketing e desenvolvimento que, dalguma forma, competiam internamente entre si, tornaram-se inclusivamente famosas as rivalidades entre o designer chefe da paneleirote division e o seu homólogo da baronete division. As reuniões eram periódicas, as agendas conhecidas com a antecedência necessária, e a inovação (não se pense que era um produto maduro) era incentivada a par dum enorme, mas equilibrado, sentido corporativo, sem excessos iconográficos. Informalidade & Rigor era o lema que todos levavam para casa ao fim do dia mas com o qual retornavam diariamente, e sempre remoçado. Uma empresa, um negócio, um projecto que era uma peça de arte.
No primeiro ano foram adquiridas pela 'La Cannelona, SA' 2 toneladas das mais diversas madeiras e bambus (a empresa não admitia materiais que não fossem fornecidos directamente pela mãe natureza) e 1 ton dos mais diversos minérios. Foi devidamente subcontratado (a beleza incontornável do outsourcing, lá está) o serviço mais grosseiro de tratamento de madeiras e minerais e às instalações da empresa já só chegavam paus e roliças pedras.
A promoção e vendas estava suportada num catálogo que se tornou rapidamente uma obra de referência, e a distribuição realizava-se através de lojas seleccionadas, sendo que cada bengala era, obviamente, uma peça única, que cada cliente haveria de sentir que tinha sido pensada especialmente para ele. Nesse primeiro ano de presença no mercado foram vendidas 1253 bengalas (155 para coxos tradicionais, 328 para baronetes, 422 para uma gay parade em Leixões e as restantes para uma promoção do desodorizante em stick roll on da Old Spice, sendo que 2 delas ainda assumiram um estatuto mais elevado, pois uma ficou exposta no museu de marqueterie de Rennes, e uma outra no salão nobre da Câmara Municipal de Gdansk).
Esta combinação de organização exemplar, (com altos níveis de motivação do pessoal, a que não é alheio a obtenção em 3 anos consecutivos do prémio da melhor sandes de presunto em snack de refeitório ) a inovação crescente de produtos, (o melhor gadjet-cócó do ano em 2016 pela sua bengala com anti-fungos e corta unhas para pés), e o grande reconhecimento pelos fornecedores (eleita empresa-transformadora do ano por mais de uma vez pela União das Pedreiras do Piamonte) fizeram de La Cannelona SA uma empresa que se tornaria com o tempo uma obra de arte requisitada pelas mais reputadas galerias internacionais de empresas modelo, das Kunstwollen corporations. Não foi pois de estranhar que em 2022 tenha ganho o Prémio Camões, pelos relevantíssimos serviços prestados à difusão da cultura nacional das empresas-arte, batendo concorrentes fortíssimos como o conjunto de receitas para bolo mármore de Medina Carreira , o moscatel de Henrique granadeiro, ou os preservativos de renda de Joana Vasconcelos. Em 2019 uma colecção especial das suas bengalas foi escolhida por Fidel Castro para celebrar o 1º regadio em Havana e em 2027 passou a ser elemento de uso obrigatório nas tomadas de posse do governo da região da Madeira.
Giacomo Piolini foi agraciado com a grã ordem de mérito artistico-industrial e em 2023 uma bengala com incrustações a pedra lunar da colecção primavera la paneleirota de 'La Canellona, SA' foi colocada no museu Pompidou junto ao urinol de Duchamp, com este verso de Valery por perto: « e cem anos depois qualquer coxo poderá sacudir sem cair». Giacomo tinha conseguido. A sua empresa era uma obra de arte reconhecida em todo o mundo. Em mais de 30 anos nunca dera lucro, a sua divida bancária subira gradualmente ao ritmo do custo duma barriga de aluguer de Ronaldo por ano, chegando à fantástica soma de 150 EBITDA's na celebração das suas Bodas de Prata. Apesar de nunca ter distribuído dividendos, o seu valor em bolsa subira mais de 20 vezes e para qualquer banco era um orgulho ter aí parte da sua dívida estacionada, chegando as empresas de rating a apelidar de crédito-cannelona a este tipo de dívida artística, que se caracterizava por pouco interessar se algum dia seria paga ou não mas que qualquer banco se esforçava por apresentar no balanço, dizia-se no meio que se revestia de leverage artístico, a Kunsthebel. Giacomo Piolini chegou ao ponto de não aceitar que qualquer banco emprestasse à 'La Cannelona, SA'. O desenho do 1º organograma (baseado num vestido de casamento de Armani) foi leiloado pela Sothebys por 3 milhões de euros, o 1º recibo de ordenado (da telefonista-recepcionista-polidora-de-morganites, D. Cibele Sousa) foi comprado pela biblioteca do congresso da guiné equatorial por 200.000 dólares, e a 1ª factura ( de uma bengala da 1ª colecção baronete adquirida por um Aorta e Tosta para o casamento de uma sobrinha com o descendente do inventor do bico de Bunsen) foi resgatada pelo museu da cera de Londres por 100.000 libras para acompanhar a estátua de Tony Blair. Amen.