Em pleno arranque de Quaresma temos o povo da nação a falar sobre conas ao léu. Chama-se a isto pegar a abstinência pelos cornos. A conferência episcopal hesitará agora certamente entre uma carta apostólica sobre a celulite ou uma pastoral de emergência sobre os preliminares, enquanto a CGD aproveitará a onda lançando a ‘Conta Perna Aberta’ destinada a investidores em cimenteiras; a nova administração do Banco Privado, entretanto, já garantiu para a sua campanha de recolha de fundos uma tanguinha de Soraia Chaves beijada por Salazar. No cocktail quaresmal teremos pois o sexo e a banca de mão dada, e nunca a expressão ‘cinturinha apertada’ foi tão polissémica. Neste momento, nem a propósito, Marta Crawford entrou-me pela televisão adentro a falar sobre o 'orgasmo clitoriano'. Soa bem, parece o nome duma legião romana especializada em perseguir catecúmenos intumescidos num Domingo de Ramos. Penso até que se os certificados de aforro se começassem a chamar ‘Fundo de Intumescimento Crescente’ desapareceria o problema da liquidez nos mercados. Parece «uma ervilha com uns dentes por trás» foi a última expressão que ouvi. Louvado seja Deus.
fado menor, maior (*)
Revejo tudo e redigo / Meu amor de toda a hora
Minha amante, minha amiga / Amanhã, ontem, agora
Revejo tudo e consigo / Um amor quase perfeito
Eu já nem sei se é comigo / Se é contigo que me deito
No linho deste meu corpo / Todo bordado d’espanto
Um coração quase morto / Bate nos fados que canto
Fado longe, fado perto / Fado distância de mim
Que às vezes, é um deserto / Outras vezes um jardim
Entre todos os meus fados / Só este fado de amor
Nos junta, quando afastados / Sendo menor é maior
(*) letra de Ary dos Santos; repertório de Carlos do Carmo
Minha amante, minha amiga / Amanhã, ontem, agora
Revejo tudo e consigo / Um amor quase perfeito
Eu já nem sei se é comigo / Se é contigo que me deito
No linho deste meu corpo / Todo bordado d’espanto
Um coração quase morto / Bate nos fados que canto
Fado longe, fado perto / Fado distância de mim
Que às vezes, é um deserto / Outras vezes um jardim
Entre todos os meus fados / Só este fado de amor
Nos junta, quando afastados / Sendo menor é maior
(*) letra de Ary dos Santos; repertório de Carlos do Carmo
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e o que gosto de apimbalhar este blog?
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Camões
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Luna Park
Ausentes são os deuses mas presidem.
Nós habitamos nessa
Transparência ambígua,
Seu pensamento emerge quando tudo
De súbito se torna
Solenemente exacto.
O seu olhar ensina o nosso olhar:
Nossa atenção ao mundo
É o culto que pedem.
Sophia de Mello Breyner, in Homenagem a Ricardo Reis
Nós habitamos nessa
Transparência ambígua,
Seu pensamento emerge quando tudo
De súbito se torna
Solenemente exacto.
O seu olhar ensina o nosso olhar:
Nossa atenção ao mundo
É o culto que pedem.
Sophia de Mello Breyner, in Homenagem a Ricardo Reis
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Na cama com o Estado
[1] A libertinização do casamento civil está para a organização da sociedade como a desregulamentação dos fundos de investimento esteve para os mercados financeiros: falta apenas saber quem irá fazer de madoff, de subprime e de colateral. Desde que fora da alçada da supérflua supervisão do Banco de Portugal, julgo que o casamento civil deveria passar para a vigilância duma alta autoridade reguladora dos costumes e boas práticas antropológicas, (juntamente com o uso dos galheteiros e a protecção da arriba fóssil, por exemplo) para se evitar uma futura nacionalização apressada, da qual resultaria, nefastamente, um dia todos ficarmos casados com o Estado, num grande e pangâmico casamento comum.
[2] A sociedade precisa de mais tabus. Só o tabu nos consegue focar em coisas que podem realmente absorver – aliviando - energias negativas. O tabu é em bastantes casos preferível à paranóia, em primeiro lugar porque não dá tanto cabo do estômago, e depois porque dá azo ao desenvolvimento da ilusão e do mistério, que são, como sabemos, a par do teorema de Pitágoras e do hemorroidal a sangrar, os grandes motores do desenvolvimento humano. O clássico casamento heterossexual julgo que poderia perfeitamente ficar como um dos nossos tabus oficiais de estimação.
[3] Também aprecio bastante o chamado ‘poder do simbólico’. Julgo que deveríamos mesmo incluir nos contratos esse tipo de pagamento: em singelo, em espécie, ou em simbólico. Eu, por exemplo, preferiria pagar sempre em simbólico porque me dá mais jeito. Melhor que o simbólico vejo apenas o recalcado ainda em banho-maria. Proponho pois que haja legislação específica para a delimitação jurídica dos conceitos de ‘simbólico’, ‘recalcado’, ‘complexo’, ‘inclinação’, ‘orientação’ e ‘paneleirice’, a fim de evitar o aparecimento de isabeles moreiras sem qualquer regulamentação.
[4] A melhor técnica de manipulação de conceitos é a jurídica. Geralmente não lhes estraga o sabor e confere-lhes uma textura agradável. O seu grande pecado é a determinada altura não se conseguir descortinar onde acaba a carne e onde começa o molho. Por exemplo, no caso do eventual casamento entre homossexuais, não se entenderia onde acaba o contrato e onde começa a paneleirice.
[5] Detesto a moral mas adoro a moralização, o enquadramento moral; (isto é típico dos gajos com tendência simultânea para a tibieza e os escrúpulos). O Estado é a entidade do enquadramento moral por excelência a par dos taxistas do aeroporto. (as igrejas estão no patamar do azucrinamento e não do enquadramento). O Estado sem moral de Estado é uma espécie de código da estrada só com amarelo intermitente. Uma pitada de moralismo estético nunca fez mal a ninguém. Sem moralismo nem sequer há tolerância, que, como já se sabe, agora é obrigatória. Tudo o que queira um fundamento precisa duma moral; até o queijo de cabra.
[6] A organização social assenta no conceito de privação. Estarmos privados é estarmos organizados. A liberdade é apenas uma metafísica de existência, ou, como diria a nova filósofa do direito Isabel Moreira, nós somos livres mas não estamos livres. Ora o Estado deve ser o garante de que, neste e noutros domínios, o ser e o estar convivam o mais bem relacionados possível; a igualdade revela-se assim uma clássica técnica do Estado pós jacobino para manter os cidadãos com uma agradável sensação de seres com direitos. Todos sabemos que o estômago precisa de alimentos para subsistir, mas quando eles lá chegam todos dengosos e esperançosos, ele chama-lhes um figo e manda-lhes com ácido para cima. É a lei da digestão e uma das leis da sociedade leviatanica.
(sim, também vi o prózicontrash)
[2] A sociedade precisa de mais tabus. Só o tabu nos consegue focar em coisas que podem realmente absorver – aliviando - energias negativas. O tabu é em bastantes casos preferível à paranóia, em primeiro lugar porque não dá tanto cabo do estômago, e depois porque dá azo ao desenvolvimento da ilusão e do mistério, que são, como sabemos, a par do teorema de Pitágoras e do hemorroidal a sangrar, os grandes motores do desenvolvimento humano. O clássico casamento heterossexual julgo que poderia perfeitamente ficar como um dos nossos tabus oficiais de estimação.
[3] Também aprecio bastante o chamado ‘poder do simbólico’. Julgo que deveríamos mesmo incluir nos contratos esse tipo de pagamento: em singelo, em espécie, ou em simbólico. Eu, por exemplo, preferiria pagar sempre em simbólico porque me dá mais jeito. Melhor que o simbólico vejo apenas o recalcado ainda em banho-maria. Proponho pois que haja legislação específica para a delimitação jurídica dos conceitos de ‘simbólico’, ‘recalcado’, ‘complexo’, ‘inclinação’, ‘orientação’ e ‘paneleirice’, a fim de evitar o aparecimento de isabeles moreiras sem qualquer regulamentação.
[4] A melhor técnica de manipulação de conceitos é a jurídica. Geralmente não lhes estraga o sabor e confere-lhes uma textura agradável. O seu grande pecado é a determinada altura não se conseguir descortinar onde acaba a carne e onde começa o molho. Por exemplo, no caso do eventual casamento entre homossexuais, não se entenderia onde acaba o contrato e onde começa a paneleirice.
[5] Detesto a moral mas adoro a moralização, o enquadramento moral; (isto é típico dos gajos com tendência simultânea para a tibieza e os escrúpulos). O Estado é a entidade do enquadramento moral por excelência a par dos taxistas do aeroporto. (as igrejas estão no patamar do azucrinamento e não do enquadramento). O Estado sem moral de Estado é uma espécie de código da estrada só com amarelo intermitente. Uma pitada de moralismo estético nunca fez mal a ninguém. Sem moralismo nem sequer há tolerância, que, como já se sabe, agora é obrigatória. Tudo o que queira um fundamento precisa duma moral; até o queijo de cabra.
[6] A organização social assenta no conceito de privação. Estarmos privados é estarmos organizados. A liberdade é apenas uma metafísica de existência, ou, como diria a nova filósofa do direito Isabel Moreira, nós somos livres mas não estamos livres. Ora o Estado deve ser o garante de que, neste e noutros domínios, o ser e o estar convivam o mais bem relacionados possível; a igualdade revela-se assim uma clássica técnica do Estado pós jacobino para manter os cidadãos com uma agradável sensação de seres com direitos. Todos sabemos que o estômago precisa de alimentos para subsistir, mas quando eles lá chegam todos dengosos e esperançosos, ele chama-lhes um figo e manda-lhes com ácido para cima. É a lei da digestão e uma das leis da sociedade leviatanica.
(sim, também vi o prózicontrash)
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Selecção on the rocks
Carlos Giveganho passou por ser um apanhador de bivalves algarvio que viveu há mais de duzentos anos na zona de Cabanas de Tavira, e que dedicou a sua vida entre a taxinomização de conchas e o aperfeiçoamento da técnica do mexilhão em vinagrete
Não fora os apontamentos que escreveu num caderno comprado numa papelaria da Manta Rota, e ainda hoje seria impossível ter acesso à sua revolucionária teoria da Selecção da Rocha pelo Mexilhão.
Aproveitando quase todas as marés vazias durante dois anos, Giveganho percorreu a costa algarvia no seu bote ‘Tabémabelha’ mais de quatrocentas vezes, estudando a forma como o mexilhão ia aperfeiçoando a maneira de se agarrar e ir fazendo dieta junto à rocha, sem se deixar lixar pela força ignóbil da ondulação, e dando a entender aos veraneantes que seria mais vantajoso irem comprar conquilhas na lota de Tavira.
Aparentemente condenado à mera decoração de pratos de salada de gambas, ou ao preenchimento de meias doses aldrabadas de arroz de marisco, Carlos Giveganho descobriu que o mexilhão teve de conquistar o seu lugar na hierarquia das espécies que ilustram metaforicamente o quão fodidos podemos estar, fosse à base de alguma fealdade exterior, ou mesmo duma inequívoca emissão de mensagens de enfartamento e azia. A este processo, meticulosamente anotado no seu caderninho, denominou de ‘movimento perpétuo’, designação que posteriormente foi utilizada por diversos artistas, inclusivé por Carlos Paredes quando começou a ficar com uns calos nas mãos parecidos com amêijoas.
Foi então no dia dos namorados de 1809, quando punha a sua sensível e experimentada mão por debaixo do saiote de Luisa Maria, sob o pretexto de retirar dois búzios que se preparavam para lhe arranhar a vértebra número treze, que reparou na existência duma curiosa rocha que não vira a maré cheia desde o tempo dos dinossauros, pois exalava um cheiro a mijo só comparável ao duma esquadra da polícia de Portimão onde já tinha passado uma noite por causa dumas redes de pesca demasiado apertadas.
Tendo observado cuidadosamnete todas os exemplares de mexilhão que habitavam essa preservada rocha, pode assim recuar no tempo e concluir que o mexilhão, sem estar sob a ameaça da caprichosa força das marés, desenvolvia um sabor intenso entre o salmão fumado e o tamboril assado em folha de alumínio, e fora até conhecido nos tempos neanderthálicos como a trufa da gruta, como posteriormente provaram dois fósseis de colón inchado de São Brás de Alportel.
Graças à sua minuciosa organização documental e a uma paciência escolástica que tinha herdado do seu avô materno que era sacristão em Monchique, Carlos Giveganho desenvolveu a sua teoria revolucionária em que explicaria a razão da coeva exaltação do lavagante e do percebe, entre outros petiscos, na gastronomia moderna. Ora o mexilhão, que se tinha preparado para viver em recônditos lugares apenas destinados a recolher e filtrar os sofisticados alívios de bexiga de outras espécies, viu-se, com a subida das águas, confrontado com o inóspito mar aberto, e teve de se concentrar nas suas técnicas de defesa e sobrevivência na rocha, e o melhor que conseguiu foi arredar desse habitat de eleição para os aguarelistas, as estrelinhas e os cavalinhos do mar, - que se viram destinados para os coloridos baldes de plástico - mas acabou no entanto por pagar um elevado preço ao vir a precisar de muito condimento para se poder aguentar numa receita, mesmo na concorrência apenas da simples amêijoa ou do lingueirão. O mar muito batido fortalecera-lhe as qualidades de resistência e camuflagem da concha, mas relegara o sabor e delicadeza do seu resguardado coração para um segundo plano.
Descoberto o caderninho de Giveganho foi dado um enorme salto na compreensão da evolução das espécies em geral, designadamente daquelas que, bem preparadas para viver na aconchegada merdalenga, se apanharam inesperadamente em liberdade; e agarrados à rocha.
Não fora os apontamentos que escreveu num caderno comprado numa papelaria da Manta Rota, e ainda hoje seria impossível ter acesso à sua revolucionária teoria da Selecção da Rocha pelo Mexilhão.
Aproveitando quase todas as marés vazias durante dois anos, Giveganho percorreu a costa algarvia no seu bote ‘Tabémabelha’ mais de quatrocentas vezes, estudando a forma como o mexilhão ia aperfeiçoando a maneira de se agarrar e ir fazendo dieta junto à rocha, sem se deixar lixar pela força ignóbil da ondulação, e dando a entender aos veraneantes que seria mais vantajoso irem comprar conquilhas na lota de Tavira.
Aparentemente condenado à mera decoração de pratos de salada de gambas, ou ao preenchimento de meias doses aldrabadas de arroz de marisco, Carlos Giveganho descobriu que o mexilhão teve de conquistar o seu lugar na hierarquia das espécies que ilustram metaforicamente o quão fodidos podemos estar, fosse à base de alguma fealdade exterior, ou mesmo duma inequívoca emissão de mensagens de enfartamento e azia. A este processo, meticulosamente anotado no seu caderninho, denominou de ‘movimento perpétuo’, designação que posteriormente foi utilizada por diversos artistas, inclusivé por Carlos Paredes quando começou a ficar com uns calos nas mãos parecidos com amêijoas.
Foi então no dia dos namorados de 1809, quando punha a sua sensível e experimentada mão por debaixo do saiote de Luisa Maria, sob o pretexto de retirar dois búzios que se preparavam para lhe arranhar a vértebra número treze, que reparou na existência duma curiosa rocha que não vira a maré cheia desde o tempo dos dinossauros, pois exalava um cheiro a mijo só comparável ao duma esquadra da polícia de Portimão onde já tinha passado uma noite por causa dumas redes de pesca demasiado apertadas.
Tendo observado cuidadosamnete todas os exemplares de mexilhão que habitavam essa preservada rocha, pode assim recuar no tempo e concluir que o mexilhão, sem estar sob a ameaça da caprichosa força das marés, desenvolvia um sabor intenso entre o salmão fumado e o tamboril assado em folha de alumínio, e fora até conhecido nos tempos neanderthálicos como a trufa da gruta, como posteriormente provaram dois fósseis de colón inchado de São Brás de Alportel.
Graças à sua minuciosa organização documental e a uma paciência escolástica que tinha herdado do seu avô materno que era sacristão em Monchique, Carlos Giveganho desenvolveu a sua teoria revolucionária em que explicaria a razão da coeva exaltação do lavagante e do percebe, entre outros petiscos, na gastronomia moderna. Ora o mexilhão, que se tinha preparado para viver em recônditos lugares apenas destinados a recolher e filtrar os sofisticados alívios de bexiga de outras espécies, viu-se, com a subida das águas, confrontado com o inóspito mar aberto, e teve de se concentrar nas suas técnicas de defesa e sobrevivência na rocha, e o melhor que conseguiu foi arredar desse habitat de eleição para os aguarelistas, as estrelinhas e os cavalinhos do mar, - que se viram destinados para os coloridos baldes de plástico - mas acabou no entanto por pagar um elevado preço ao vir a precisar de muito condimento para se poder aguentar numa receita, mesmo na concorrência apenas da simples amêijoa ou do lingueirão. O mar muito batido fortalecera-lhe as qualidades de resistência e camuflagem da concha, mas relegara o sabor e delicadeza do seu resguardado coração para um segundo plano.
Descoberto o caderninho de Giveganho foi dado um enorme salto na compreensão da evolução das espécies em geral, designadamente daquelas que, bem preparadas para viver na aconchegada merdalenga, se apanharam inesperadamente em liberdade; e agarrados à rocha.
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Tão
Em cada esquina te vais
Em cada esquina te vejo
(...)
Tão perto de mim tão longe
(...)
Tão dentro de mim tão que
(...)
Tão longe de mim tão perto
Ninguém assim por ninguém
Manuel Alegre, in Balada de Lisboa
Em cada esquina te vejo
(...)
Tão perto de mim tão longe
(...)
Tão dentro de mim tão que
(...)
Tão longe de mim tão perto
Ninguém assim por ninguém
Manuel Alegre, in Balada de Lisboa
Já só tenho meia garrafa de Bourbon em casa.
Se bem que ninguém me tenha perguntado, o vasto auditório ficou certamente curioso em relação aos métodos de Garibaldi Soveral. E eu, evidentemente, não tinha contado tudo o que sabia. Por vezes temos de mastigar bem a informação para não nos engasgarmos
Soveral ficara marcado, e até mesmo fascinado, por uma descoberta: certas pessoas tornavam-se mesmo boas pessoas só por pensar que eram boas pessoas. Numa primeira fase julgou tratar-se apenas duma ramificação do mecanismo da dissonância cognitiva, mas rapidamente percebeu que as auto-avaliações morais tinham um potencial altamente ficcionável e, surpreendentemente, encaixavam sempre nos perfis de personalidade e de socialização que nem uma luva. Garibaldi sentiu-se como um espeleologista perdido que de repente tinha descoberto uma frecha de luz. (esta imagem é dele, apenas a replico sem quaisquer intenções de apropriação) A mente humana – lato senso – era afinal essencialmente uma história. Mas uma história com exigências de sentido e significado. Ele seria El gran Significador.
O seu primeiro paciente, perdão cliente, - Garibaldi sempre quis deixar claro que vendia uma solução psico-moral e não uma terapia - padecia dum clássico problema de egoísmo patológico não evolucionista. (existe um egoísmo próprio da preservação da espécie, género: antes fodermos que mijarem-nos em cima, etc). Começou por definir-lhe sequências de comportamentos de autodefesa, depois elevou-os à categoria de histórias responsáveis de sobrevivência, depois deu-lhes um toque daquele heroísmo que há afinal em cada acção humana que, como se sabe, está impregnada e vocacionada para alguma queda existencialista, e fechou com um simples episódio de delicadeza de circunstância que, em minutos, transformou num momento de total e desinteressada entrega ao próximo. Foi tão, tão, fácil que no dia seguinte o seu cliente andava pela rua como um Francisco Xavier a raspar calos de tuberculosos nas margens do Ganges. Estava criado o método.
Garibaldi nunca mais parou. Desfazia mitos entranhados de ruindade quase paranóica em duas sessões de mero reenquadramento moral de uma ou outra lágrima que quase se tivesse extravasado do saco. A metacatabolização (o termo é dele, desculpem) de sentimentos tornou-se a técnica mais importante e segura da sua assessoria. ‘Dá-me um sentimento jeitoso e eu faço de ti uma tábua da lei com pernas’ chegou a ter inscrito à entrada do seu escritório, no início da sua carreira de Arquimedes da moral. O Soveral.
Nunca teve uma reclamação. Nunca teve um serviço que se arrastasse. Nunca teve uma recaída. A elasticidade moral da alma humana é um relógio.
Soveral ficara marcado, e até mesmo fascinado, por uma descoberta: certas pessoas tornavam-se mesmo boas pessoas só por pensar que eram boas pessoas. Numa primeira fase julgou tratar-se apenas duma ramificação do mecanismo da dissonância cognitiva, mas rapidamente percebeu que as auto-avaliações morais tinham um potencial altamente ficcionável e, surpreendentemente, encaixavam sempre nos perfis de personalidade e de socialização que nem uma luva. Garibaldi sentiu-se como um espeleologista perdido que de repente tinha descoberto uma frecha de luz. (esta imagem é dele, apenas a replico sem quaisquer intenções de apropriação) A mente humana – lato senso – era afinal essencialmente uma história. Mas uma história com exigências de sentido e significado. Ele seria El gran Significador.
O seu primeiro paciente, perdão cliente, - Garibaldi sempre quis deixar claro que vendia uma solução psico-moral e não uma terapia - padecia dum clássico problema de egoísmo patológico não evolucionista. (existe um egoísmo próprio da preservação da espécie, género: antes fodermos que mijarem-nos em cima, etc). Começou por definir-lhe sequências de comportamentos de autodefesa, depois elevou-os à categoria de histórias responsáveis de sobrevivência, depois deu-lhes um toque daquele heroísmo que há afinal em cada acção humana que, como se sabe, está impregnada e vocacionada para alguma queda existencialista, e fechou com um simples episódio de delicadeza de circunstância que, em minutos, transformou num momento de total e desinteressada entrega ao próximo. Foi tão, tão, fácil que no dia seguinte o seu cliente andava pela rua como um Francisco Xavier a raspar calos de tuberculosos nas margens do Ganges. Estava criado o método.
Garibaldi nunca mais parou. Desfazia mitos entranhados de ruindade quase paranóica em duas sessões de mero reenquadramento moral de uma ou outra lágrima que quase se tivesse extravasado do saco. A metacatabolização (o termo é dele, desculpem) de sentimentos tornou-se a técnica mais importante e segura da sua assessoria. ‘Dá-me um sentimento jeitoso e eu faço de ti uma tábua da lei com pernas’ chegou a ter inscrito à entrada do seu escritório, no início da sua carreira de Arquimedes da moral. O Soveral.
Nunca teve uma reclamação. Nunca teve um serviço que se arrastasse. Nunca teve uma recaída. A elasticidade moral da alma humana é um relógio.
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«Delegava as fadigas de governar em seis ou sete adeptos. Era estudioso da meditação e da paz: um harém de cento e catorze mulheres cegas tratava de aplacar as necessidades do seu corpo divino»
Jorge Luis Borges, in ‘História Universal da Infâmia’
Jorge Luis Borges, in ‘História Universal da Infâmia’
História universal da insânia
Garibaldi Soveral vendia enriquecimentos biográfico-morais. Não se tratava de identidades falsas, nem álibis, nem sequer historietas de engate e muito menos currículos ou passados de aluguer. Garibaldi pura e simplesmente convencia as pessoas suas clientes de que eram boas pessoas. Fazia de vícios virtudes e de maçadoras debilidades autênticas fortalezas de carácter, e tudo sem recurso a químicos, nem manipulações hipnóticas da consciência, nem a varrimentos arqueológicos da infância. Apesar das suas fartas habilitações académicas foi expulso de todas as ordens profissionais que certificavam poderes sobre a psique, e impedido de anunciar publicamente os seus serviços depois duma série de providências cautelares pedidas pelas mais diversas igrejas, que começavam a temer a total desertificação de confessionários e demais assembleias de dizimistas.
A técnica de Garibaldi, se lograr sintetizá-la, - jamais alcançá-la, nem mesmo compreendê-la - consistia em apresentar o bem como um êxtase, uma construção do espírito, um artesanato de escrúpulos, privações e ilusões. Extirpar completamente da alma os conceitos de verdade e autocrítica eram a primeira e imprescindível etapa. Por estranho que pareça, demonstrar que a verdade não interessa e que nós nunca nos conheceremos decentemente a nós próprios era algo bastante fácil. Antes do primeiro recibo verde de Soveral esta lição inicial estava assimilada. Nesta fase apenas desistiam os humildes e os orgulhosos. Garibaldi sabia que o seu produto se dirigia aos intermédios; a todos no fundo.
Regra geral um cliente começava a saber-se boa pessoa ao fim de 4 ou 5 sessões. O primeiro teste de confirmação da terapia era a leitura de Camus como se se tratasse duma obra cómica, e a leitura dos primeiros Dostoievski como se fossem erotismo camuflado. Não pense o leitor que se tratava de engenharias de consciência, com resultados bizarros de sadismos sublimados, ou alienações líricas, absolutamente: não. Mantinham-se nos clientes as perfeitas distinções do males e bens social e comummente aceites, prevaleciam sem alteração os juízos clássicos de sobrevivência e protecção dos mais fracos, e mesmo a maior intolerância para com a crueldade ou a hipocrisia dos mais fortes, e não desaparecia sequer a inquietação moral do seu quotidiano. O que sim estava consolidada era a tal convicção: eram, sentiam-se e sabiam-se, boas pessoas.
Garibaldi Soveral reformou-se com mais de 25.000 clientes em estado de assumida perfeição moral, e ele próprio com um nível de satisfação do dever cumprido, só ao nível de alguns bombeiros, biólogos marítimos ou parteiras. Nunca nenhum cliente, jornalista freelançado, ou inspector de costumes lhe conseguiu assimilar ou perceber a técnica, pois ele, quando lhe pediam uma explicação, apenas respondia de fleuma em riste: o nosso interior é traiçoeiro, o nosso eu-moral é um trabalho para especialistas, a nossa bondade é uma bricolage. O bem é um enredo.
A técnica de Garibaldi, se lograr sintetizá-la, - jamais alcançá-la, nem mesmo compreendê-la - consistia em apresentar o bem como um êxtase, uma construção do espírito, um artesanato de escrúpulos, privações e ilusões. Extirpar completamente da alma os conceitos de verdade e autocrítica eram a primeira e imprescindível etapa. Por estranho que pareça, demonstrar que a verdade não interessa e que nós nunca nos conheceremos decentemente a nós próprios era algo bastante fácil. Antes do primeiro recibo verde de Soveral esta lição inicial estava assimilada. Nesta fase apenas desistiam os humildes e os orgulhosos. Garibaldi sabia que o seu produto se dirigia aos intermédios; a todos no fundo.
Regra geral um cliente começava a saber-se boa pessoa ao fim de 4 ou 5 sessões. O primeiro teste de confirmação da terapia era a leitura de Camus como se se tratasse duma obra cómica, e a leitura dos primeiros Dostoievski como se fossem erotismo camuflado. Não pense o leitor que se tratava de engenharias de consciência, com resultados bizarros de sadismos sublimados, ou alienações líricas, absolutamente: não. Mantinham-se nos clientes as perfeitas distinções do males e bens social e comummente aceites, prevaleciam sem alteração os juízos clássicos de sobrevivência e protecção dos mais fracos, e mesmo a maior intolerância para com a crueldade ou a hipocrisia dos mais fortes, e não desaparecia sequer a inquietação moral do seu quotidiano. O que sim estava consolidada era a tal convicção: eram, sentiam-se e sabiam-se, boas pessoas.
Garibaldi Soveral reformou-se com mais de 25.000 clientes em estado de assumida perfeição moral, e ele próprio com um nível de satisfação do dever cumprido, só ao nível de alguns bombeiros, biólogos marítimos ou parteiras. Nunca nenhum cliente, jornalista freelançado, ou inspector de costumes lhe conseguiu assimilar ou perceber a técnica, pois ele, quando lhe pediam uma explicação, apenas respondia de fleuma em riste: o nosso interior é traiçoeiro, o nosso eu-moral é um trabalho para especialistas, a nossa bondade é uma bricolage. O bem é um enredo.
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