Hoje o restaurante inaugurava uma nova ementa. Pelos vistos
ninguém estava à espera, fora um segredo bem guardado. A L. gosta de transmitir
esse aureolado enigmático, mas também já deve saber que é um risco que corre,
nem todos os estômagos estão preparados para absorver surpresas ao ritmo da sua
imaginação (capricho - a imaginação feminina chama-se capricho). O novo folheto-menu
tinha sido desenhado por uma amiga ( a L. gosta de mostrar que tem amigas – e amigos
- para todas as ocasiões) e parecia saído dum conto de fadas tal a fantasia
colocada no nome dos pratos. Reduziam-se as opções em carnes puras, aumentava a
aposta em souflés, empadas, folhados e papas afins e o peixe voltava a ser o
rei da festa. Mas o bombo da dita continuaria a ser eu. Pedi ovas de pescada
grelhadas, uma novidade. Nada como atacar pelo lado da entranha feminina e
esperar pela pancada. A L. rodava de mesa em mesa a auscultar as reacções, recebia
elogios como uma estrela de cinema, puxando bem a cabeça para trás naqueles
sorrisos abertos que procuram receber as energias todas que os céus tenham
disponíveis. A rapariga-dos-molhos torneou a minha mesa, fez uma pausa de
libelinha e deu uma revirada de olhos a indicar que ‘esteja descansado que ela
ainda vem cá picar o ponto’. E veio. Sentou-se, depois de um trejeito qualquer
de formalismo que já lhe é tão natural como esquecer-me, e aviou-me uma
directa: «então, por cá outra vez!? Tiveste saudades ou apenas te deixaste
corromper pela curiosidade?». Sem me deixar responder (um clássico), distribui:
«se vamos entrar pelo capítulo das recriminações vou-me já embora!». Olhei para
as ovas (era o que tinha mais à mão para repousar o espírito) e ainda tentava
esboçar uma resposta meramente tática para ganhar tempo quando ela alça da terceira
farpa curta: «podias ter escolhido a cataplana! É bem melhor que a paella que
noutro dia ofereceste à tua amiga vistosa; já volto». Novamente só, com as
minhas ovas, ainda deu para apanhar um piscar d’olhos furtivo de descodificação
impossível, e saí, sem acabar as ovas, sem tomar sobremesa, nem café, nem nada,
possuído pela angústia do homem gozado, a humilhação dos pobres de espírito que
nem conseguem sequer ser rejeitados em público e transportam a sensação de que apenas
servem de betume para tapar falhas. São os betumen.
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4 comentários:
"betumen" as surpresas que se almoçam, perdão, servem aqui.
beijinhos
e grátis! :)
beijinhos
Bem vistas as coisas, é mais curial o pecado do peixe do que o da carne. Enfim, por aqui.
le poison est au poisson
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