Almoços Grátis. série 3 [9]

Hoje o restaurante inaugurava uma nova ementa. Pelos vistos ninguém estava à espera, fora um segredo bem guardado. A L. gosta de transmitir esse aureolado enigmático, mas também já deve saber que é um risco que corre, nem todos os estômagos estão preparados para absorver surpresas ao ritmo da sua imaginação (capricho - a imaginação feminina chama-se capricho). O novo folheto-menu tinha sido desenhado por uma amiga ( a L. gosta de mostrar que tem amigas – e amigos - para todas as ocasiões) e parecia saído dum conto de fadas tal a fantasia colocada no nome dos pratos. Reduziam-se as opções em carnes puras, aumentava a aposta em souflés, empadas, folhados e papas afins e o peixe voltava a ser o rei da festa. Mas o bombo da dita continuaria a ser eu. Pedi ovas de pescada grelhadas, uma novidade. Nada como atacar pelo lado da entranha feminina e esperar pela pancada. A L. rodava de mesa em mesa a auscultar as reacções, recebia elogios como uma estrela de cinema, puxando bem a cabeça para trás naqueles sorrisos abertos que procuram receber as energias todas que os céus tenham disponíveis. A rapariga-dos-molhos torneou a minha mesa, fez uma pausa de libelinha e deu uma revirada de olhos a indicar que ‘esteja descansado que ela ainda vem cá picar o ponto’. E veio. Sentou-se, depois de um trejeito qualquer de formalismo que já lhe é tão natural como esquecer-me, e aviou-me uma directa: «então, por cá outra vez!? Tiveste saudades ou apenas te deixaste corromper pela curiosidade?». Sem me deixar responder (um clássico), distribui: «se vamos entrar pelo capítulo das recriminações vou-me já embora!». Olhei para as ovas (era o que tinha mais à mão para repousar o espírito) e ainda tentava esboçar uma resposta meramente tática para ganhar tempo quando ela alça da terceira farpa curta: «podias ter escolhido a cataplana! É bem melhor que a paella que noutro dia ofereceste à tua amiga vistosa; já volto». Novamente só, com as minhas ovas, ainda deu para apanhar um piscar d’olhos furtivo de descodificação impossível, e saí, sem acabar as ovas, sem tomar sobremesa, nem café, nem nada, possuído pela angústia do homem gozado, a humilhação dos pobres de espírito que nem conseguem sequer ser rejeitados em público e transportam a sensação de que apenas servem de betume para tapar falhas. São os betumen.

4 comentários:

maria disse...

"betumen" as surpresas que se almoçam, perdão, servem aqui.

beijinhos

aj disse...

e grátis! :)

beijinhos

blanche disse...

Bem vistas as coisas, é mais curial o pecado do peixe do que o da carne. Enfim, por aqui.

aj disse...

le poison est au poisson