detalhe do tecto da Igreja de S. Paulo, em Lisboa
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Lisbon Ceiling
cinzas à quarta
Ser filho da puta já não é o que era. O tema do insulto já foi
tratado por especialistas (Javier Marías, por exemplo, tem dois razoáveis
artigos sobre o tema) mas julgo que deverá ser continuamente acompanhado. Como
regra geral podemos dizer que o insulto depende mais do contexto que do
conteúdo, e como regra particular podemos dizer que ele revela mais sobre o
emissor do que sobre o destinatário; como regra entre as duas posso também
acrescentar para vosso proveito que a qualidade do insulto é uma fórmula que
resulta da soma do inverso da raiz quadrada do alívio que provoca com a tripla
potência do remorso que induz. Assim sendo, e considerando que a realidade
necessita frequentemente de quem lhe ponha o dedinho na extremidade do colón com
precisão e na cadência e rotação certa, julgo ser meu dever alertar toda a comunidade
sobre a necessidade de aproveitar as reformas estruturais, ortográficas, mapas
judiciários e outros, para acertar o relógio e o higrómetro do impropério
nacional. Se assumirmos que o ataque às dívidas soberanas é o elemento chave da
crise europeia há que revalorizar uma adaptação do hoje inexpressivo 'cona da
tua tia', para um novo 'nos entrefolhos do teu parlamento' que, se repararem, imprime
uma dinâmica mais coloquial ao insulto e em paralelo coloca um foco
institucional e legalista no discurso, não o deixando sob a alçada dos laços familiares,
mais atreitos à corrupção e outros favores ilícitos. A substituição dum
vulgar, e inofensivo, 'brochista de merda' por um bem mais apelativo para os
mercados 'chupa-me aqui um spread' parece-me então ser de elementar bom senso, e creio
que tornaria qualquer agente phinanceiro bastante mais sensível a baixar as
calças nas taxa de juro quando não engasgar-se mesmo durante o período de carência. Como também me parece óbvio, um "Coça-m'o
default' é mais eficaz nos dias que correm do que o banalizado 'vai-te foder', quanto mais não seja porque estar fodido passou a fazer tão parte da
nossa somatologia como o pingo no nariz. Penso, finalmente, ( a palavra chave
aqui é o finalmente) que se o cidadão normal vive num estado de dependência
total de um refogado de mercados, parlamentos, ministros, instituições, grupos
de média e conglomerados de enchido, e se já passámos a fase em que fomos
apenas números (que saudades de ser número) e somos agora imparidades, devemos,
em substituição do 'merda para isto tudo', responder ao mundo: especula-me que
eu gosto.
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La vie au Rachat
Verso à Terça
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do
horizonte?
- O que eu vejo é o beco.
Manuel Bandeira in Estrela da Vida Inteira
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verso à terça
A Tolerância de Ponti
Giacomo Ponti cansara-se de ser exigente e decidiu abolir da
sua vida todas os comportamentos que envolvessem um mínimo de insatisfação,
inconformismo ou intolerância. Queimou para sempre o desejo e passou a estar ao
serviço da compreensão total, da resignação, numa espécie de amor desinteressado pelo
estado geral das coisas, num situacionismo estético, moral, emocional, um desalternativismo.
De tal forma se entranhou no seu espírito esse ideal de stay where you are que
Ponti começou a encontrar raros momentos de consolação e mesmo completude naquilo
que antes seria encarado como adversidade ou motivo das mais variadas sortes de
reacção e revolta. Comia o que houvesse para comer, dava prioridade tanto ao
que viesse da esquerda como da direita, via os filmes que estivessem a rodar,
punha os cachecóis que estivessem mais a jeito, aceitava recusas, indiferenças,
negligências, difamações e insinuações com a mesma calma com que sorvia água
simples quando a tinha pedido com gás. Para além disso observava a satisfação e
o sucesso alheio com a tranquilidade dum panda de cativeiro, não esboçando a
mais pequena repulsa por caprichos alheios quer fossem insolentes ou apenas
frívolos, contentando-se apenas com o seu pequeno bambu. Transformara-se até num
burocrata de emoções, um amanuense de prazeres, um fazedor de disponibilidades.
Queriam-no tântrico, tântrico seria, queriam-no rápido, explosivo seria, queriam
preliminarioso, encheria a alcova de infindáveis festinhas e sussurros, se
apalhaçado era o capricho, não haveria nariz mais encarnado que o dele,
pediam-lhe humor inteligente, até se engasgariam de inteligência de tanto rir, se
lhe exigissem ginástica faria de espaldar, se fantasioso era o desejo, então em cada
recanto do seu corpo estaria o senhor dos anéis, quisessem algemas e até forneceria o chicote. Seria como quisessem que
fosse, Giacomo Ponti vivia para tolerar, accepit, fiat, não gastaria energias
nem latim a procurar ou discutir alternativas, respirava viabilidade. Depois de dois anos nessa vida
resolveu teorizar num pequeno e inesperado opúsculo: «O que desaparece é», que acabou por
marcar uma curiosa viragem no seu inicial desalternativismo; já não lhe bastava
a mera tolerância com o que o rodeava, a simples aceitação como estatuto, agora queria sentir-se como que já não
fazendo parte, queria o descomprometimento como virtude máxima, não lhe chegava
o por mim tudo bem, queria alcançar o por mim faz como se eu não existisse. Era
a exegese do desalinhamento absoluto, a elegia da ausência da vontade, um novo
bom selvagem mas com cuecas e peúgas. Queria mais, queria agora ser enganado, trocado, posto de
lado, esquecido, queria viver nas bordas do prato, nada ter a ver com; queria
uma acusação eterna por falta de provas, melhor, por falta de crimes.
commonplacing
janeiro 1935 - Sarre por plebiscito decide ser alemão
março 1935 - É
instituído o serviço militar obrigatório na Alemanha
setembro 1935 - Leis de Nuremberga redefinem a cidadania
alemã
fevereiro 1936 - Hitler inaugura a 1ª fábrica da Volkswagen
março 1936 -
Ocupação da Renânia
agosto 1936 - Jogos
Olímpicos de Berlim
maio 1937 -
Encíclica de Pio XI referindo-se à perseguição de católicos na Alemanha
março 1938 -
Ocupação da Áustria
setembro 1938 - Chamberlain em Munique
outubro 1938 - Tropas alemãs invadem os Sudetas Checos
março 1939 - Tropas
alemãs ocupam a Boémia e a Morávia
-
Roménia reserva a sua produção de petróleo para a Alemanha
-
Lituânia cede território à Alemanha
abril 1939 - H.
avisa os polacos que não pode tolerar a Prússia Oriental afastada da Alemanha
agosto 1939 -
Assinatura de pacto de não agressão Germano-Soviético
setembro 1939 - Invasão da Polónia pelas tropas alemãs
...
the dark side of the wool #n+k
Nenhuma ovelha, que toda a sua lã dá, aguenta que o
pastor se esteja a imaginar com algodão.
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Dark side of the wool
Atheism for Believers: a believer's guide to the use of atheism
De forma algo sonsa os crentes tendem (tendemos) a abordar a
dúvida com métodos evasivos se bem que, a espaços, até criativos. Ora usamos a
via poética, atolentinando os mistérios da criação com uma patine viscosa
derivada da banhoca literária, ora serpenteamos o tema pela via do determinismo
psicológico, ora despachamos a questão com um quessefodismo de ocasião, o
grande amigo da consciência em particular e das entranhas em geral, diga-se.
Assiste-se assim por regra a uma arrumação em cabide ou gavetão, consoante o
tamanho e corte, que, com a aparência de humildade cristã, mais não passa que dum grosseiro
e inevitável arquivo temporário.
Há pois lições importantes a retirar das diversas
manifestações de ateísmo mais ou menos recreativo. De primeiro temos a
considerar que há espaço para um momentum ateista na nossa vida, ou seja, nós
precisamos de conseguir negar a existência de Deus nem que seja esporadicamente,
pensar que tudo isto não passa dum broche de bactérias com fungos e, mais gás
menos gás, pouco mais somos que resíduos dum peido primordial, que se foi
sofisticando à base de selecções naturais de átomos, esperma, adn's e viço da guelra, qual
a banca de peixe dum supermercado. Esta consideração de pendor científico na qual
nos devemos embrenhar de tempos a tempos permitir-nos-á colocar a nossa fé em
sentido e exigir-lhe muito respeitinho pela natureza sublime que transportamos.
A experiência ateia vai revelar-nos finalmente a beleza duma existência sem
sentido, uma conice sem cona, uma vida como fruição, acidente ou mera
paneleirice cósmica e, de caminho, saberemos encarar os outros como eles
merecem: num dia obstáculos, noutro trampolins. Esta riqueza que o ateísmo nos
concede, ainda por acréscimo sabendo-a baseada num cozinhado elaborado de
argumentos e desprezo por convicções alienantes, encherá a nossa alma duma
mistura de orgulho e solidez que mais tarde nos fará abordar a dúvida como
sendo apenas uma representação mais elaborada da verdadeira mensagem shakespeareana:
quando não sabemos foder até os colhões atrapalham.
Fortalecido pela dinâmica ateia, o crente olhará para Deus
de peitinho feito e perguntar-Lhe-á se quando foi daquela cena do Genesis Ele
não terá pensado que o povo poderia não ir em esquemas e grupos e algum dia
toparia que tudo não passava da imaginação manipuladora de uns quantos, naquela
onda perichurchiliana de que nunca tantos foram enganados por tão poucos. Ao
que Deus responderá: olha lá, ó meu filho badameco, mas tu julgas que estás a
falar com quem? E assim, mais filho pródigo, menos filho pródigo, volta tudo ao
princípio.
Por outro lado o ateísmo tem imensas potencialidades para a
vida de piedade. A descrença em Seres Superiores e Transcendentes produz boas
rotinas de envolvimento psíquico com badalhoquices mentais de substituição. Não
falo de sexo, de forma alguma, nisso o ateísmo só traz prejuízo, pois como
sabemos o pecado é um elemento catalizador, e o catolicismo de alta competição
é fortemente afrodisíaco, mas quero referir-me a picuinhices como a exigência
exasperante de provas, a fuga da contingência no comboio da probabilidade, ou a
punheta lógica, que mais não é do que exigir a dedução das aftas à observação
da cor do olho do cu. Depois de exercitar estes mecanismos próprios do
intelecto ateu, o crente correrá desesperadamente para o genuflexório, qualquer
jaculatória pirosa lhe saberá a Salvé Regina, e verá uma azinheira em cada candeeiro
de rua mesmo sem o auxilio da uva espremida e fermentada.
Por último, uma das grandes mais valias escondidas do
ateísmo é a sua milagrosa (perdoe-se-me o oxímoro) incorporação da verdade como
fenómeno. Ao condescender com um real que generosamente se manifesta, o ateísmo
dá à revelação um estatuto de primeira ordem nos cabeçalhos da vida
experimental. O crente ao se envolver directamente com a superstição ateia
acabará por assimilar um amor à criação
que lhe estaria vedado se usasse apenas o mecanismo espiritualizoide, que
muitas vezes lhe põe a pobre cabecinha à razão de transubstanciações e
trindades pirotécnicas. O tal momentum ateu, já acima referido, que numa
primeira fase afasta Deus do real que nem uma sena de paus come um ás de copas
quando circunstancialmente é trunfo, permite afinal que a alma posteriormente O
reconheça quando o baralho muda de mãos, e exclame com fervor, reconhecendo a generosidade fenomenológica: afinal está tudo
nas cartas.
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As Broncas de Caná
verso à terça
Inversão no seu contrário.
Retorno sobre si próprio.
Recalcamento.
Sublimação.
Freud, in
Triebe Und Triebschicksale
o que dito
assim:
die
Verkehrung ins Gegenteil.
die Wendung
gegen die eigene Person.
die Verdrängung.
die Sublimierung.
bem que merecia também um acordo ortográfico. A
inconsciomância praticada pelo Sigmund não se debruçou sobre estas novas
grafobias e eu penso que ele teria algo a dizer sobre esta recusa à batida em
retirada das consoantes mudas, dos hífenes e do caraças. O apelo à sua
prevalência revela o descoberta duma nova pulsão que é a pulsão piegas. A
pulsão piegas predispõe-nos à neurose da falta da consoante. Ficamos assim
piegas, chorosos, tristonhos e não nos queremos separar delas. No fundo muitos
de nós tínhamos transferido para todas aquelas consoantes e hífenes muito do
nosso eu e agora ficámos apeados. Hoje sonhei que estava a ser picado por três
catos e, não sei, mas acho que já não fui picado da mesma forma. Acordei
triste, já nem Sublimierunguei nem nada, calcei os chinelos entre um Verkehrung
e um Verdrängung, mas o café já não me soube da mesma forma. Mudam-se os lapsos
mudam-se as vontades.
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verso à terça
A minha Pátria é a míngua portuguesa
Depois de ultrapassados com sucesso os stress tests, o
governo português encheu o peito de ar e disse que queria também passar nos
crash tests. Como seria previsível esborrachámo-nos contra quase todo o tipo de
paredes e apenas alcançámos os mínimos contra um pladur produzido em marrocos
aproveitando restos de pentelhos de camelo. Face às evidências e à indigência expectável, e em vez de
estarmos a vender o país às pinguinhas o governo desistiu da diplomacia
económica e deu um mandato de venda de partes do país a Severiano Fernandes, o
conhecido Rei dos Pastéis e das Sandes. Tendo feito fortuna a fatiar aglomerados
de gordura de porco e a enfiá-los entre duas glamourosas pranchas de cereal
fermentado, Severiano convenceu o governo que conseguiria enchouriçar também
bocados dos país e vendê-los como lombo fumado de civilização ocidental. A sua
primeira operação foi a venda da RENA (rede de esgotos nacional) a um grupo
paquistanês com interesses em toda e qualquer merda e que tinham desenvolvido
um método revolucionário de reciclagem de preservativos com embalagens de leite
condensado produzindo estores e material para telha refractária destinada a
bairros sociais no punjab. Esta receita extraordinária não só permitiu uma
melhoria na auto-estima nacional, pois cada português sabia agora que cada vez
que se sentava a meditar estava também a contribuir para a melhoria das
condições dos monhés, como facilitou atestar os depósitos de todos os
secretários de estado para um mês e duas viagens ida e volta a Paris para aquela
moça de apelido medeiros (sem érre, atenção). Depois deste sucesso sem
precedentes Sir Severiano (fora condecorado pela rainha de Inglaterra depois da
sua invenção do courato embebido em earl grey) decidiu fazer a colocação no
mercado internacional da RENAMA (rede nacional de marquises) o que criou um
verdadeiro reboliço nos mercados. A marquise portuguesa tinha alcançado o
estatuto de Património Imbecil da Humanidade e estava entre os bens mais
cobiçados nas economias emergentes que estavam impedidos de usá-las por força
duma patente inteligentemente registada por Severiano quando toda a gente
estava distraída com o que ficou conhecido como a grande bolha do pastel de
nata, o verdadeiro bolbo de túlipa do séc. XXI. Não foi por isso de estranhar
que 40% da RENAMA tivesse sido adquirida pela sociedade gestora do Canal do Panamá,
que hoje podemos observar revestido a belos perfis de alumínio com vidro
martelado, permitindo assim que ninguém se molhe nos barcos ao passar e
provocando de caminho a 2ª ou 3ª ou 4º crise do Suez que agora apenas tem possibilidade
de se tapar com lonas ou toldos dos cafés segafredo. Impulsionado de venda em
venda, Herr Severiano (entretanto nomeado embaixador mundial do leitão da
bairrada, que se tinha passado a chamar Leitão de Sttutgart e que se tornou o
símbolo duma 2ª marca da mercedes para os países em reestruturação de dívida)
abalançou-se à sua operação mais arrojada: a venda da RECONUDA (Rede Nacional
das Consoantes Mudas). Com particular olho para o negócio, Severiano antecipou
que iria dar-se um excesso de consoantes no mercado nacional e que poderiam
perfeitamente interessar a línguas que estivessem a sentir a sua falta. Montada
toda a operação financeira, foram colocados 5 biliões de cês no mercado do mandarim,
e 400 milhões de tês no mercado daquela algaraviada dos emirados árabes. Tal foi o sucesso que hoje
inclusivamente o governo alemão está ultimar um novo acordo ortográfico e a
subcontratar Severiano para a colocação de 3 triliões de érres em todo o
mercado asiático, no que consistirá na maior colocação de consoantes de que há
memória desde que cleópatra abriu as suas pernas e vogais a marco antónio. Severiano
Fernandes deixou definitivamente o seu nome gravado na história económica
portuguesa e mesmo europeia quando logrou criar a RENAROTA, a rede nacional de
rotundas, e, numa manobra visionária, colocou-a em regime de franchise pelas várias
economias em crescimento e que estavam a ponto de nos ultrapassar, que assim se
viram obrigadas a marcar passo, rodopiando entre as várias rotundas com
esculturas de artistas populares pagas pelos respectivos orçamentos municipais.
Portugal hoje mantém-se saudável, no pelotão da frente, com as varandas todas
abertas ao sol, com a sua merda criteriosamente escoada e sem uma única consoante por
rentabilizar.
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La vie au Rachat
O fim da Wille zur Macht
Nietzsche escreveu que os filósofos são advogados de defesa
dos seus preconceitos a que chamam verdades. Infelizmente há cada vez menos
gente capaz de lutar pelos seus preconceitos e com vergonha acrescida de lhes
chamar verdades. Já ninguém quer ter o poder sobre si próprio, já ninguém quer
ter o poder sobre os outros, saltámos para um nível superior de indiferença sem
ter esgotado as potencialidades do anterior. Baixámos os nossos padrões, quase
como Trotsky disse: 'basta que um homem se encontre, ao contrário dos outros,
em cima de duas rodas com uma corrente (...) para que a sua vaidade comece a
inchar como os pneus'. Acabou a era dos grandes vaidosos. Hoje o nosso orgulho
fica-se em querer manter de pé uma consoante muda.
M.O.M.
Lúcia e Armando estavam com problemas em gerir os seus
mal-entendidos e a desenvencilharem-se das rasteiras que traz uma vida em comum. No entanto,
decidiram por mútuo acordo que isso não era razão suficiente para se separarem.
Para tal haveria que criar um mecanismo que estabelecesse uma espécie de
desentendimento organizado, algo que em vez de apelar para a mais tradicional união
na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, deixasse antes bem clarificado
quais as pontes de discórdia, e estabelecesse as regras para o que era uma
dedução e o que era uma intuição, ou o que era uma ironia e o que era uma piada,
e por aí adiante. Chamaram o Dr. Sílvio e pediram-lhe o esboço dum MOM, um
Memorandum of Misunderstanding. Silvio Saraiva era um especialista em
reconciliações impossíveis, tinha no seu currículo verdadeiros milagres da
concertação conjugal e considerou este processo de parasociabilidade um desafio
à sua altura. Hoje, o seu trabalho no Memorando de Desentendimento de Lúcia e
Armando é uma peça de referência, um modelo de sincretismo e eficiência legal que
faz doutrina em todo o mundo relacionado com o direito de família,
inclusivamente já foi estendido com adaptações a universos jurídicos adjacentes
ou afins, e que aqui temos a fortuna de reproduzir na integra e de forma
inédita:
artigo 1º O gracejo
Considera-se gracejo dentro dos limites a piadola, dito
espirituoso, ou chalaça, que não envolva directa ou indirectamente actos
copulares específicos ou genéricos de nenhum dos conjugues com terceiros, a não
ser que venha disfarçada em jogral de rima cruzada.
artigo 2º A insinuação
Considera-se uma insinuação aceitável aquela que não inclua
explicitamente: a) actividades de pendor clintonianas; b) referências
grosseiras a passados devidamente prenupciais e fora do contexto.
artigo 3º O tom
artigo 4º A formulação
artigo 5º A provocação
O acto provocatório verbal ou gestual deve ser sempre
exercido num ambiente em que a resposta possa ser imediata e se adapte sem
restrições à ironia ou mesmo ao sarcasmo, e desde que devidamente salvaguardada
a inexistência de venenos no circuito doméstico.
artigo 6º A abstinência
Pode ser ameaçada dentro de um quadro de compensações a
anexar ao presente acordo, devidamente rubricado e lubricado.
artigo 7º O insulto
Considera-se insulto profiláctico aquele que: não envolva
outros membros da família até ao terceiro grau, nem quaisquer orgãos do
aparelho reprodutor masculino ou feminino.
artigo 8º A periodicidade
Está vedado qualquer tipo de manifestação de hostilidade em
dois dias seguidos ou cinco intercalados dentro de cada mês. Os dias de lua
cheia ou nova deverão preferencialmente ser passados a ver dvd's do seinfield
ou da procissão das velas, consoante os credos.
artigo 9º Os juízos de intenção
Todos os juízos de intenção, os verdadeiros dopings do
desentendimento, terão direito a contra-análise que se deverá efectuar em
ambiente neutro, de preferência almofadado, com algemas e chicotes opcionais.
São admitidas por via deste memorandum as seguintes
invocações paliativas:
- 'hoje
estou muito sensível'
- 'hoje
estou com a cabeça cheia'
- 'hoje
ando mais distraído/a'
- 'isto
amanhã passa-me'
Excepcionalmente poderão invocar-se interferências de índole
zodiacal nos mesmos termos e condições previstos no artigo 8º quando aplicável.
artigo 11º A neura
O mecanismo da 'neura' poderá ser considerado atenuante
desde que previamente anunciado com um prazo mínimo de 48 horas.
artigo 12º A represália
Sem prejuízo do disposto no artigo 6º é considerada
'represália fora do penico' quando um capricho conhecido e praticado de forma
ininterrupta há mais de dois anos por uma das partes, sem ser formalmente
denunciado e repudiado, não venha a ser considerado, respeitado e caridosamente
acarinhado pela outra parte.
artigo 13º A recriminação
artigo 14º O ressentimento
Só são admitidos ressentimentos acompanhados de
somatizações bem definidas: choro, borbulhagem, dor nas
articulações, suores em zonas expostas e, em casos mais desesperados, pingo no
nariz. O ressentimento que se confine
apenas às esferas dos egos e dos eventuais inconscientes está vedado em
absoluto.
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