Valha-nos S. Tomás de Aquino

cap I. O croquete

Sílvio Basalto tornara-se um homem triste e desencantado com o estado deplorável deste canto da galáxia quando, ao comer uns croquetes, se deparara com uma sensação de infinita desolação pelo, tudo indicava na altura, destino da alcatra de vaca que lhes dera origem. Não é todos os dias que um pouco de carne picada entra pelos locais mais recônditos da alma de um ser humano daquela forma tão definitiva e avassaladora, pelo que Silvio Basalto foi levado a investigar a razão de tamanho fenómeno e das suas diversas psiconsequências.

cap II. As terapias

O primeiro diagnóstico que lhe foi proposto por uma massagista cerebral da rua da Estefânia baseava-se na interpretação algo lata, para não se dizer arrojada, dum seu sonho na noite da véspera do exame da 4ª classe em que lhe aparecera a professora vestida com uma saia no padrão de tirolesa-malhada. No entanto, Silvio não ficou convencido com a explicação, tanto mais que nessa altura da infância estivera completamente apaixonado por Celinha, uma prima afastada que o tinha ensinado a apreciar hamburguers mal passados com cebola e molho de yogurte.
Inundado por essa inesperada, inexplicável, inextinguível, ruminante e inquietante tristeza, Silvio Basalto procurou um terapeuta com consultório em Campolide, que se tornara famoso pelo seu método que tinha como lema: 'Transforme em força a sua mais pequena fraqueza nas mãos do dr. Saraiva Represa'. O ambiente do consultório era bastante acolhedor, passava constantemente músicas do Nick Drake, e a saia da recepcionista apresentava uma racha que faria perder a cabeça e o mosquetão a qualquer praticante de escalada, mesmo que fosse só da mental; Leonor de seu nome, Safira de apelido e coração e Santa Lili para efeitos de devoção. No entanto, e ao arrepio das primeiras e compreensíveis impressões e até expectativas, Leonor & Atributos, SA não fazia parte do terapeutic path do dr. Saraiva, este baseava a sua abordagem clínica numa hidroterapia intensiva, convencido e convencendo que a água dilui a fraqueza e a transforma em elementos tonificantes para aquilo que vulgarmente se chama a alma mas que o dr. Saraiva apelidava, sem qualquer explicação, nem retórica nem científica, de 'coiro-interior'; pois «explicar é secar» dizia ele, o que até parecia apropriado para um hidrofílico militante.
Ao fim de meia dúzia de sessões Sílvio Basalto compreendeu que, para além de Santa Lili, pouco ali o tonificava, e mesmo esta começou a insistir num estilo mais étnico, de saias muito largas e coloridas que irremediavelmente fazia diluir a motivação, que é o termo delicado para significar excitação, e ainda mais delicado que tesão, termo definitivamente mais técnico. Pocahontas já esgotou um certo modelo de erotismo, é aquilo que vos posso adiantar para escolherem em proveito ou indiferença.

Cap III. Derivações

No entanto, Silvio tinha aprendido o essencial: a fraqueza é um constituinte básico da força, tal como a força é um constituinte fundador da fraqueza. Uma banalidade nos dias de hoje, quando já foram descobertas a potencialidades cósmicas do vazio, e a inutilidade do conceito de Deus para fazer bacalhau à Brás ou holocaustos, mas, por outro lado, se não há nada mais banal que a fé, ainda não apareceu nada mais fiável para mover montanhas.
Seria entretanto injusto para a história de Sílvio Basalto que não fosse referida a sua experiência com o mestre cripto-místico Luis Tolstoino Bolota que se propôs colocá-lo em contacto com Deus através de uns crepes com porco preto. Se, por um lado, Silvio chegou a pensar que estava entranhado de uma energia que o porco preto misturado com farinha lhe propiciava, cedo também se apercebeu que: se à tristeza é o croquete que a traz não é o crepe que a leva.

cap IV. O escombrulho

Como sabemos hoje, há tantas terapias quantos códigos do DSM IV, e normal seria que Silvio tivesse entregue em teste a sua profunda tristeza aos vapores da música, da poesia, da filosofia, do sono, das virgens polacas, da cor, dos corvos do edgar alan poe, do chocolate, das flores, das pedras, e inclusive do creme barral. Mas o que torna interessante o caso de Silvio Basalto é que a sua tristeza, que tinha começado como um subproduto do mero face a face com a realidade da carne em formato picado, vertiginosamente se foi transformando numa descrença no potencial de dignidade e glorificação da natureza humana e desembocou naquilo a que o prof. Eliseu Dracolino de Morais haveria de catalogar mais tarde como 'a neurose do escombrulho', um quadro clínico ali entre a ecolalia hiperactiva e sinestesia paranoide em que o mundo é sistematicamente reduzido a uma repetição de 'escombros' e 'entulho' sempre que a alma não esteja em contacto directo ou 3G com o Criador e Fundamento de todo o Ser.

cap V. O dicotomismo

O prof. Eliseu Dracolino de Morais interessou-se pelo caso de Silvio Basalto pois, por aquilo a que vulgarmente se chama de coincidência, no seu livro 'A alegoria do ser' dedicara um capitulo em torno da expressão ' a carne é fraca', no qual concluía vivermos numa 'fase croquete' naquilo respeitava à relação com a matéria. Ou seja, impedidos, por razões de imperativo civilizacional, de considerar que a matéria é ilusão, fizéramos com ela o que os neo-moralistas já tinham assumido com a ameaça da Lampeduzização da espiritualidade: tudo misturado para que tudo fique diferente. Eliseu Dracolino trazia, por isso, sempre muito viva a presença do fenómeno parametafísico do croquete, e quando lhe chegou o caso de Silvio fixou-se nele como o primeiro exemplo vivo de quem tinha assimilado na sua existência a problemática da evolução como uma concomitância entre a mistura e a degradação no seio do núcleo do Ser.
O prof Eliseu era um dicotomista militante, via a acção do homem sobre a matéria sempre em dois pólos; ou constrói ou evacua, no meio é o vazio, terra de elfos, gnomos e nibelungos escorraçados por estrabismo.

cap VI. O processo de cura

Na altura do primeiro encontro entre Silvio Basalto e o prof Dracolino, este andava numa fase La Bruyèreana, e tentava encaixar as ideias do francês, que exprimiam: se a virtude não estiver acompanhada da vaidade não chega a lado nenhum. Assim, foi tentado a incutir em Silvio uma espécie de fúria reconstrutiva: onde estava um monte de entulho ele devia ver uma travessa de croquetes, onde estava um croquete ele devia ver imediatamente uma peça de entrecosto, onde estava uma peça de entrecosto ele devia ver um prado exuberante, e onde estava um prado exuberante ele devia ver Deus no esplendor do seu 3ª dia do Genesis rodeado de verdura. Ou seja, Silvio, em pleno processo de cura da 'neurose do escombrulho' parecia estar apto a sair da fase croquete e a entrar na fase entrecosto, e o prof Eliseu iria finalmente poder demonstrar ao mundo, prenhe de indiferença, incredulidade, uma verdadeira nihiland, que quem não constrói de olhos postos directamente nas muralhas do Olimpo, está condenado a exorcizar para dentro e nem sequer ver um croquete no centro do aterro.

cap VII. A vitória do Bem e do Belo

Silvio preparava-se agora para entrar numa dimensão apocalíptica da sua viagem interior. O prof. Eliseu Dracolino de Morais soubera fazer-lhe ver que fazia parte dum plano cósmico de recuperação da civilização. A crise entranhara-se-lhe pela psique, mas ele fora dos que não se entregara à frivolidade do desânimo nem à facilidade da histeria. Não se enleara nos roteiros anestesiantes da literatura da decadência, nem se refugiara nos roteiros mágicos do romantismo negligé, agarrara no croquete - tão simbólico quanto real - com as duas mãos mas não deixara que ele se desfizesse numa papa de cepticismo, antes se imolara com ele como se na pira dos gloriosos guerreiros de Tróia estivesse. O prof Eliseu apresentava agora o seu paciente como um laboratório vivo da recuperação neo-aristotélica da natureza humana, um trabalho meticuloso de filigrana metafísica, só alcance daqueles que mostrem ter os transcendentais no sítio.

cap VIII. Rodízio final

Já em plena maturidade da fase entrecostal, com escombros e croquetes deixados bastante para trás, e pronto para embarcar no esplendor da relva, Silvio volta a encontrar Leonor Safira, agora sim novamente entregue aos encantos de eficácia comprovada por gerações de corações partidos, e pronta para participar na recta final da libertação de Silvio das amarras da concupiscência materialista. Jantaram a primeira vez a dois num rodizio à Defensor de Chaves e fizeram um brinde ao prof Eliseu Dracolino por ter demonstrado que aquilo que o croquete separou, uma boa picanha pode voltar a unir.

verso à terça

Aquele que procurou
E não encontrou,
É o homem desiludido.
Aquele que não procura
E tudo encontra
E nada pode fazer do que achou,
É mais que infeliz:
Sabe a verdade.

Anna Hatherly , em Um Ritmo Perdido

história universal do amor e da concorrência


cap I. Os primos

Siegfried Schon von Siemenze e Albert Ernest von Geiger eram primos direitos e verdadeiros modelos antropológicos de homem ideal, dignos de qualquer vitrine do mais exigente museu de história natural, e pareciam ter saído fresquinhos directamente do tupperware de espermatozóides da arca de noé para as mãos da parteira. Desde novos apresentavam-se afáveis, fiáveis, com uma rectidão à prova de bala e apresentavam aquela quase irritante humildade que rodeia os que parecem não se dar conta dos seus talentos. Eram filhos de duas irmãs gémeas, Helga e Sofia, também elas mulheres dum gineceu de eleição, e herdeiras daquela fusão junker & liberal que produziu o hemograma alemão, talvez um pouco mais picadas pela arrogância, pois as mulheres estão talhadas para exacerbar, mesmo contendo.

cap II. Cecilia

Estavam SSS e AEG a entrar na idade adulta, rebentando de energia e criatividade pelas costuras, quando algo inesperado, mas clássico, acontece: apaixonam-se pela mesma rapariga. Cecília, uma bávara esguia, dotada daquela atracção representada pelos vértices do triângulo das bermudas romântico onde quase todos os homens partem os queixos antes de se perderem: simplicidade, mistério, ternura. Ambos os primos tinham a noção de que era uma corrida primicída entre os dois, mas num, quase heróico, misto de educação com orgulho, fingiam viver cada um a sua vida, deixando as intrigas para os respectivos inconscientes. A mesma mulher cruzara-se-lhes no caminho por qualquer razão superior, nenhum duvidava disso, mas pressentiam desde o início que a proverbial irracionalidade feminina lhes iria pregar uma partida. Acertavam. Aquele modelo de pureza, mas de carnes enrijecidas nas caminhadas pelos Alpes, e espírito amolecido por um schillerianismo precoce, preparava-se para os deixar apeados, trocando-os por um, também clássico, semi-francês semi-capitão semi-poeta, não mostrando sequer respeito pelas neuras dostoievskianas dos homens rejeitados, que não encontravam culpas nem razões nos intervalos das rimas de Marcel von Boll, o eleito.

cap III. O desgosto

SSS e AEG reconhecendo (com a ajuda das mãezinhas) ter nas mãos uma bomba em forma de desgosto amoroso em lume brando, empenharam-se a inflectir as suas energias para a ciência e os negócios, tendo acabado por inventar a batedeira eléctrica e a enceradora, demonstrando de viés que o sofrimento por amor resulta sempre em beneficio do lar. Puseram a paixão em pousio, o homem por vezes faz isso com uma eficácia luterana, e a acumulação de riquezas e influências várias deram entretenimento àquela zona do cérebro que pede prazeres com pedigree.

cap IV. A esperança

Mas não, os dois primos não esqueceram Cecília, nunca poderiam esquecer aqueles ingredientes básicos do pão-de-ló do flirt: o carinho no olhar, a pele aveludada, a pose enigmática, o carrossel do gosto-não-gosto, enfim, e uma boa electrónica doméstica nunca substitui uma ginástica recreativa na bancada da cozinha. Marcel tinha-lhes roubado indecentemente o sonho, quase sem os deixar desembainhar a língua nem a carteira, e era esse sonho que eles agora queriam - tinham de - recuperar; para isso, num pacto, com raiva e engenho mas sem diabo, aliaram-se tacitamente. Animava-os uma ideia: Cecilia saberia que tinha feito uma escolha precipitada, motivada pela vontade de se mostrar livre, independente; e se o peixe morre pela boca a mulher morre pelo remorso.

cap V. Feitios

Não se pense, pela necessidade de simplificação que a escrita me impõe, que SSS e AEG eram personalidades semelhantes. Siegfried era teimoso, combativo, adverso a ver as duas faces da moeda se apenas uma face já lhe revelasse o suficiente para agir. Albert era mais cerebral, mais falsamente hesitante, mais complacente e menos óbvio. Juntos quase que cobriam o património genético dos temperamentos. Com os dois juntos parecia que a espécie inteira se tinha unido para resgatar Cecilia do calabouço da imprudência amorosa. Enquanto a felicidade no homem se interpreta por sorte, na mulher é vista como ingenuidade.

cap VI. O deslize

Como seria previsível Marcel cometeu um erro. Um homem talhado para receber os dons vindos sabe-se lá donde não consegue gerir os que lhe vão surgindo debaixo dos pés e ficou refém duma baronesa - seria possível não aparecer uma baronesa? - que lhe tinha pago três poemas com uma noite de zarzuela: duas vezes por cima e uma por debaixo dela. Parece demasiado banal, demasiado ordinário, demasiado a pedido, mas não posso fazer nada, foi mesmo assim. Cecilia mantinha a sua pureza intacta, estava ainda bem capaz de fazer boa figura em qualquer romance de cavalaria, mas mesmo confrontada com a situação foi levada, sob o comando de qualquer orgão esponjoso e desconhecido, a perdoar e mandar tudo para trás das costas, depois do devido corridinho de juras devidamente alavancadas, e apenas plafonadas pela elasticidade da coluna de Marcel que chegou ao seu limite de arqueamento. No entanto, a arte e a vida ensinam que a mulher atinge o seu máximo de beleza quando perdoa, e o homem o seu abismo quando se desculpa.

cap VII. Estratégias

Siegfried quando soube do deslize (quando é um homem chama-se deslize) não deu tréguas a Cecilia. A baronesa devia-lhe dinheiro, devia-lhe favores, e SSSiemenze foi direito ao assunto. A paixão quando tem o catalisador da vingança atinge energias que nem a pôr protões a chocar se lá vai. Em pouco tempo Marcel não só estava na mão duma baronesa como nas mãos dum inventor da batedeira eléctrica. Parecia demasiado para um tenente de artilharia com jeito para rimas. Mas, ao contrário do que seria de esperar, AEG não tinha tomado nenhuma iniciativa. Ele pensava - e bem - que as mulheres não se apaixonam por quem as faz confrontar com a verdade, e guardam-se para quem lhes esconde a mentira.

cap VIII. Mulher

Cecilia era uma mulher rija e preparada para sofrer. Nunca fora bafejada por nenhuma fortuna inesperada, nunca esteve sob a influência de nenhuma excêntrica, nem moralista nem libertária, nunca foi deixada nem às sortes da inteligência nem às sortes da beleza.
Quando os primos von Siemenze e AEG a cortejaram, sentira-se bem, nem sequer a perturbara o facto de serem dois, e quando se deixou levar pelos encantos de Marcel e teve o coração encostado às tábuas, soube dar dignidade a uma rejeição dupla que rompia as leis da lógica e entregava os trunfos aos deuses da lírica. A mulher gere a correspondência amorosa como um bordado: sabe que tem dois efeitos a produzir, o desenho do bordado e a sua imagem de bordadeira.

cap IX. Estratégias II

Como já disse, AEG não se precipitou quando soube da ligação de Marcel com a Baronesa. Esperou que o primo avançasse com o seus trunfos e quando sentiu a hesitação de Cecilia, quando sentiu que ela se revoltara também com o clima de chantagem que SSS inevitavelmente criara, apareceu de mansinho. Fez-lhe uma corte cirúrgica, não lhe negou sentimentos evidentes, pôs-lhe delicadamente o menino nas mãos, beijou quando devia beijar, calou-se quando o silêncio parecia uma pedra filosofal, e insinuou-se quando parecia ser a hora da serpente. Digo-vos: esteve quase. E Siegfried von Siemenze, que estava com o atarefado processo de internacionalização da torradeira eléctrica nas mãos, não deu conta de nada. Marcel ia gemendo a sua sina entre o riesling e o cognac.

cap X. Equações

Parece impossível. Cecilia percebeu que estava metida num trapézio amoroso, percebeu que tinha de fugir. Homens nunca lhe faltariam, tornara-se uma mulher irresistível, duma beleza pragmática, daquelas belezas que não chega contemplá-la, é preciso possui-la de alguma forma, nem que seja encostar-se a ela a dar milho aos pombos. Com aquela sensibilidade que não tem explicação, nem se encontra escrita nas carcaças de nenhuma tartaruga, e que algumas mulheres vão buscar a um baú espiritista qualquer, Cecilia deu-se conta que Albert E. von Geiger estava perdido nos negócios e que já só sobreviveria com o apoio de von Siemenze, assim, deixar-se levar pelo encanto da compreensão do primeiro era entregar-se mais tarde a este, era entrar na cadeia de inevitabilidades logísticas que assola sempre o amor quando já não há pernas para mais. Marcel, custava-lhe deixar Marcel, mas no fundo era o único que a enganara ostensivamente; sabia que ele tinha sido traído por aquelas forças ocultas que não podem ver ninguém feliz, os senhores do submundo do sentimentos, mas não podia continuar a dar-lhe o coração. Fugiu.

cap XI. Escandinávia

Apanhou um ferry boat e foi para a Finlândia tirar fotografias a alces. Pouco tempo depois de lá chegar conheceu Fredrik Karl Nokia, um curioso carpinteiro, trabalhador, sério, mas comunicativo e disponível para o resgate do coração de Cecilia, naquela altura armadilhado na dúvida e na desconfiança. Compraram uma casa na floresta e recolheram para lá os dois mais o amor em fase clorofila. De manhã, Nokia saía para cortar lenha e passava muito tempo fora. Sofria por não ver Cecilia, por não conseguir falar com ela, e passava-lhe pela cabeça que von Siemenze ainda andasse de radar em riste à caça de remorsos. Mas o amor é como a necessidade e aguça o engenho. Foi então que Nokia inventou uma forma revolucionária de falar com Cecilia através das ondas. E love is in the air, como já diziam os tipos do barco. Acho que já está tudo dito. Cabrão.

Conto-vos isto porque também eu gostei dela; perdidamente. Conto-vos isto porque aqueles maricas do Siegfried von Siemenze e do AEG nunca reconheceram que fui eu que inventei a máquina de cortar relva, conto-vos isto porque Marcel chegou a implorar-me para fazer a campanha publicitária dos microondas senão não podia comprar um casaco de peles para a Cecilia. O F. Nokia nunca cheguei a conhecer bem, só o vi uma vez a comprar um gps num supermercado em Hamburgo enquanto a Cecilia estava na secção de frescos. Conto-vos isto porque fiquei agarrado às minhas máquinas de barbear para toda a vida, sem o consolo duma pele lisinha, macia, terna, doce, como a da minha Cecilia. Ainda hoje mantenho o meu coração tão limpinho como o cuzinho dum bebé depois de mudar a fralda.

Joachim von Braun

The dark side of the wool # n+1

vale mais um ensopado programado do que uma tosquia imprevista

vale mais uma tosquia imprevista do que uma ordenha atrasada

vale mais uma ordenha atrasada do que um ensopado programado.

os velhos

Aquilo a que vulgarmente se chama 'actividade política', algo que percorre um espectro que apanha desde vara a clinton passando por gandi, narciso miranda e cleópatra, tem vindo a exigir dos seus praticantes um tipo de características que evoluiu ao jeito das encordoações no ténis, com a diferença de que neste último caso as bolas saem cada vez com mais força e efeito enquanto que com os políticos a merda agarra-se-lhe progressivamente cada vez mais ao corpinho. Ou seja, hoje, o político de, digamos para simplificar, sucesso, é essencialmente um mecanismo de combate, pose e resistência psicológica; depois das idades do 'carisma', do 'paleio' e da 'imagem', que lá foram produzindo mitos e embustes a um ritmo, reconheçamos, não muito diferente daquele que encontramos na natureza a transformar calhaus em pedras decorativas, entrámos na idade do 'aguenta tudo'; esta actividade está agora reservada a um conjunto de mamíferos standard que têm de conseguir apresentar a mesma cara, tom de pele, unhas e ritmo cardíaco, quer estejam a ser insuflados de pólvora por todos os orifícios disponíveis, quer lhes estejam a distribuir cascas de pevides por entre as virilhas, quer lhes estejam a decorar a árvore genealógica com hastes de rena e pilas de hipopótamo. Assim, parece-me óbvio, o político começa a ter um prazo de validade mais apertado e forçosamente deverá começar a estar sujeito a critérios de higienização psicológica rigorosos, sob pena de, já os tendo de aguentar demagogos e oportunistas, não nos obriguem a levar também com eles caquéticos. Já não me interessam políticos corajosos, nem sábios, nem trabalhadores, nem experimentados, nem mobilizadores, nem competentes, nem o caralho. Quero somente gajos e gajas que não envergonhem os taxistas quando vão buscar os clientes estrangeiros ao aeroporto nos dias em que não está a dar relato de futebol. O político é o novo postal ilustrado com pernas.

Impõe-se, e desde logo com carácter de urgência, a criação de uma linha de montagem decente e limpinha para que eles sejam paridos com um mínimo de índices de fiabilidade para quem os vai ter de consumir, seja de palhinha seja à dentada. Estou absolutamente em desacordo de que o político deva sair da sociedade, (também não deve sair de nenhuma minoria nem de sangue nem de classe) sou a favor duma tecnocracia levada ao limite do seu potencial: a mecanocracia. O político é um produto genérico como outro qualquer, não aceito mais espectáculos tristes de velhos já sem a mínima capacitação psico-somática para esta merda. Uma nação digna tem de cuidar deles, mostrar que são patuscos, bons avozinhos mesmo sem heidis, dar-lhes carinho e apoio, medicamentos comparticipados, inclusive darem entrevistas à Barbara Guimarães, de acordo, mas não fazendo-os presidentes.

Melior enim est temporalis felicitas quam misera aeternitas

Já estava eu a elaborar a minha reclamação à destilaria que me fornecera o bushmills 1608 quando reparo que o fornecedor de ginja do dragão ainda aldraba mais nas curvas do alambique. E digo isto dorido essencialmente porque tal desvario etílico me tem desviado da preparação do lançamento da minha candidatura à presidência leonina, que é, neste momento, o fenómeno mais fracturante da nossa civilização herdeira dos padrões helenico-suevo-judaico-celta-mouriscos-amerindios (peço desculpa se me esqueci de alguém). O meu plano de actuação passa por 3 (podiam ser mais, mas face aos circunstancialismos editoriais desta publicação blogospiretica o nº 3 parece-me o mais indicado para atrair os poderes do Altíssimo sobre esta nobre instituição) ordens de vertentes (todas viradas para a bancada Sul):

- os jogadores devem apresentar no campo uma harmonia que não envergonhe nenhum anjo que eventualmente quisesse assumir uma posição de trinco, ou mesmo de médio interior esquerdo (estão proibidos de ir para avançados porque o Altíssimo não lhes deixa dizer fodasse quando se falham penaltis)

- os jogadores, para evitar quaisquer ambiguidades etimológicas ( que o nosso dragão tão bem soube salientar ) devem deixar todas as crenças no balneário e apontar directamente para as canelas do adversário ('canela' vem do grego 'canestoinos' que era um creme que o aristófanes usava para evitar que os espectadores estivessem sempre a coçar os ...vá aquelas bolinhas tão queridas, mas é muito parecido também com o latim 'canestren' que eram uns supositórios que o séneca usava para lhe aliviar um ardor nas costas derivado a uma tiróide renitente que tinha herdado da avó materna)

- todos os dirigentes do futebol têm de entregar uma declaração em que afirmem possuir em zona específica do seu interior um poder oculto que lhes permita transformar maçãs podres em fresco abacate ou, no minimo, em compal de laranja-papaia. Deverá, para além disso, ser criado o cargo de empalhador de fiscais-de-linha, que envergará como equipamento uma tshirt com um tigre dentes de sabre por forma a emitir a inequívoca mensagem de que não está sujeito nem a pressões nem a enrabadelas de bandeirola.

Posto isto, cumpre-me informar a massa associativa que é absolutamente essencial garantir que Deus, sabendo-nos entalados entre tripeiros e lampiões, ponha mão na hierarquia terrena do campeonato e não restam quaisquer duvidas que eu sou a pessoa certa, tanto mais que eu quando me refiro a Deus, quero significar aquele Deusão Grande e Abrangente como o do Dragão e não os outros deusinhos dos outros meninos. Além do mais, eu, ao contrário da 'generalidade', (não sei se conhecem a 'Generalidade' , uma moça que arranjava unhas ali na Trafaria e que casou com um rapaz da Trofa e foi viver para Famalicão ) já aqui ando há muitos anos sempre a dizer a mesma coisa: quando eu falo em Sporting, não falo daquela coisa ali confinada a determinadas camisolinhas às riscas verdes e brancas, eu falo dum Sportinguismo que vive para além dos tempos e que simboliza determinado tipo de vitória que é derrota mas que é vitória para lá da derrota que assim se torna vitória, ou, respirem fundo, como se diz no folheto daquele broncodilatador o 'Areopagiticum-plus': os brônquios são o espelho da alma.

Há um Sportinguismo na terra há também um Sportinguismo no céu. Existem regras. Um treinador não é um anestesista, um director desportivo não é uma costureira, um defesa central não é uma andorinha, um estremo esquerdo não é um winnie the poo, um presidente não é uma bailarina com gravata, um distribuidor de jogo não é um robespierre, um ramos rosa não é um rosa ramos. Desligado do Cosmos o Sporting oscilará perigosamente entre uma sucursal do pirilampo mágico e um bordel para chilenas.

verso à terça

Nada mais do que estar
em natural potência
como num esquecido ninho
de um incessante regresso

António Ramos Rosa, in O Não e o Sim

...

Segundo informou ( e mandou completar!) aqui nas catacumbas a comentadora 'Blanche', o titulo do livro do Ramos Rosa é tributário do seguinte poema de Paul Celan

Parle toi aussi
parle le dernier à parler
Dis ton dire


Parle


Cependant ne sépare pas du Oui le Non
Donne à ta parole aussi le sens
Lui donnant l'ombre.


(eu neste momento não discuto ordens, sabe-se lá donde vêm...)

wisdom of women

 

(Hildegard von Bingen para a Zazie, à falta de Zeca Baleiro e Heavy Metal do Senhor :)

Respiciet Deus bene cogitata

Directo ao assunto, pois aqui no buraco está frio e húmido:

1. 'Pressupostos' - O Dragão, numa parceria público privada com o criador, assumiu e revelou-nos finalmente que tem a exclusividade para a construção de pressupostos e a partir de hoje quem quiser pisar a relvinha do pressuposto tem de pagar portagem ou, nos melhores dias, prestar caução. A distinção entre 'pressuposto' e 'argumento' está na cor do ticket.

2. 'Humanidade' - Haverá poucos conceitos mais dedicadamente paridos pelos homens do que o de 'humanidade'; algo que se situa ali entre a ficção e o pintelho solto, e concorre ferozmente com outras obras clássicas de alvenaria como o Materialismo, Sociedade, Evolução, Igualdade, e carradas de outras marquises do conhecimento. Ora a Humanidade toda ela é risco e construção. Ou será um cromo da caderneta do Genesis?

3. 'Rigor' - Então rigor será escrever «(...)As engrenagens do Mundo, porém, são fatais: o Poder vem sempre de alguma parte. Se não do Alto e Sublime, então do baixo e desprezível. Se não conta a Palavra, passa a contar o número; se não sobrevale o Espírito, sobrevale a moeda (...)» ? Mas se eu digo o 'poder é uma construção humana , vem sempre do baixo e desprezível, é construído na trama da fragilidade humana', e até acrescento, 'e ainda bem que é assim, pois desastroso (e já experimentado na história) é quando se quer um poder que venha do Altíssimo em infusão pela via da iluminação das consciências' já é pirotecnia recreativa?

4. 'Reducionismo' - Claro que tenho de reduzir. Todos temos de reduzir para analisar. Mas também lhe digo, se eu fiz reducionismo, com o seu triângulo mágico Altíssimo-desprezivel-moeda o meu Caro pratica olimpicamente o nanocionismo.

5. 'Questão séria' - Desvalorizar o conteúdo pelo 'excesso' de forma...então Dragão!? Pronto, mas vou esquecer esse seu deslize argumentativo. Não que me desgoste a superficialidade, aliás o meu sonho é tornar-me um ser completamente superficial pois assim só teria problemas de pele, no entanto, se não considerasse séria a ideia de que 'o caminho do poder no reino do desprezível se deve mesmo construir sem olhar, nem de relance, para os Poderes do Altíssimo' não tinha vindo aqui dobrar a língua com o meu frágil latim.

6. 'Pontos de partida': Lilliput, que seja; não posso é estar em 'Lilliput' e nas 'nuvens' e no 'buraco' ao mesmo tempo, decida-se caro Dragão; não posso pagar três rendas!

7. 'Cristianismo' - O cristianismo não é acção, acção é a vida. O cristianismo é uma construção teórica baseada na leitura e interpretação da vida (relatada) e dos ensinamentos (relatados) de uma personagem histórica - de bónus era a 2ª pessoa da Stss Trindade - que cumpriu uma missão no mundo e nos deu a Revelar um Deus Desconhecido. Ou o que eu escrevo é paleio, mas o que o meu amigo escreve transforma-se logo numa fértil praxis ético-criativa?

8. 'Buraco' - Já Platão nos tinha posto na caverna a olhar para as sombras, já Freud nos tinha posto no sovaco da Jocasta, mas para o Dragão, agora que já se instalou de 1ª balcão e poltrona no alto da falésia de mármore, tudo está à distancia dum abismo. (eu ainda me tentei pôr nas nuvens mas mesmo assim não cheguei lá)

Dragão, o 'Poder de Deus' é uma construção intelectual, instrumental portanto, para perceber/entender/falar de a influência de Deus no Mundo (que inclui nuvens potentes e impotentes) e que vale tanto como falar da sua Omnipresença, Amor, e restantes atributos que se diluem na constituição (metafísica) 'd'Aquele que É'. Pô-lo como fonte de inspiração, referência, sublimação, condensação, alambicação das miudezas sociais humanas é como ver uma nossa senhora em cima de cada azinheira.

Caro Dragão, sempre a considerá-lo, aguardo, então, a gentileza dos seus esclarecidos apontamentos.

Nullum est vitium sine patrocinio

Então como é para o Dragão, vou mostrar o meu lado mais delicodoce, aquele lado que, ao ser olhado de esguelha poderá atingir o leitor com raios vindos do Poderíssimo Altíssimo, mas, ao ser observado de frente, poderá transformá-lo em pedrinhas da calçada pois todos temos o direito a sonhar com os poderes da medusa antes de nos cortarem os tom..., vá, a cabeça.

Então o desafio, ai credo um desafio, é: como olhar para a fragilidade, para a fraqueza, a baixeza, o desprezível, a mediocridade humana aos olhos daquilo que o cristianismo iluminou, ou seja, do homem destapado, descoberto, pelo fenómeno historico-literário, mas real, da Redenção, e confrontá-lo com o Deus que Jesus também revelou em simultâneo. Escolherei a rota pelo termo 'fragilidade' porque é mais abrangente, eloquente, e suave, como o português; e tentando não repetir miudezas rudimentares.

1. a fragilidade como condição - O homem tem uma tendência irreprimível para se definir e para ajustar a sua definição à sua existência. No fundo, todos somos existencialistas, uns logo quando nos dói a barriga, outros só mais tarde quando a diarreia começa a pollockar-se na cerâmica. Quem não perceber que é pó, corre o risco de se apaixonar por uma vassoura. Mas, vá lá, Deus não é o Mestre aspirador. Quando foi preciso safar um povo, Moisés foi adoptado por uma princesa Egípcia, mas quando foi preciso fazer uma redenção Deus escolheu para o seu Filho um carpinteiro. É esta a lição, é esta a inspiração; é esta a 'emanação'.

2. a fragilidade como destino - Estando posto de parte o Progresso como variável da Criação, sobraram-nos os seus subprodutos. No entanto, a experiência mostra-nos: fazem-se fortunas com restos. Uma constatação parece-me não ser ilusão de óptica: a vida nunca será um desperdício. O Altíssimo observa e não deixará que nada se perca no caminho. Às vezes tanta fé nisto até irrita. Antes uma mediocridade privada na mão que dois bens comuns a voar. Não desperdicemos a ontologia de Deus com causalidades de vão de escada.

3. a fragilidade como genoma - É oficial: estamos marcados. A Igreja na sua sapiência (alguma esperteza e divina inspiração) aproveitou a instituição dalguns sacramentos para 'dourar a pílula'. Jesus ao deixar-se baptizar por João Baptista parece dizer: A sujidade não é apenas uma impressãozinha na pele, mas também não é preciso um milagre, nem um grande jejum, basta chocalhar um bocadito de água com um bocado de fé. O nosso grande poder afinal está equidistante da banalidade e da grandeza. É este outro dos grandes legados do Cristianismo: a distorção da noção de dimensão. O poder para os pequenos o amor para os grandes. Não há forma de sair disto para quem tem um mínimo de fé, um niquinho vá. Mas a transcendência enfiada à pressão na nossa mamífera fragilidade só pode produzir girafas místicas.

4. a fragilidade como circunstância - uma das provas mais consistentes da existência de um Deus em condições é sabermos que existem filhos da puta em actividade. E mais, que esses filhos da puta nos podem foder o juízo e o coiro. E mais, esses filhos da puta quase nos fazem pensar que Deus foi algo que criámos nas nossas pobres cabecinhas para nos proteger dos filhos da puta e afinal nicles; a dúvida está no mesmo sitio da fé e agarra-se quase da mesma maneira. Onde estava o poder de Deus quando o pescador que havia escolhido para edificar a sua Casa morria crucificado de cabeça para baixo num coliseu. Um poder estava na alma desse homem, outro poder estava no gajo que tinha o polegar virado para baixo. Vivem lado a lado. Mas é essencial que quem põe e dispõe com os polegares nunca pense que tem de se inspirar ou receber legitimações d'Aquele que decora os tectos de capelas.

5. a fragilidade como escolha - Quando temos o prato à frente nem sempre escolhemos comer. Há também mil e uma maneiras de responder ao olhar de Deus; fazer merda é uma delas, virar-lhe as costas outra, seguir como se nada fosse outra, tentar enganá-Lo outra. Mas cada sim traz sempre atrás um não. É esta a nossa real fragilidade. O nosso poder de trazer por casa é o de limitar o nº de nãos por trás de cada sim. O compromisso é a nossa sobrevivência e a nossa morte.

6. a fragilidade como fracasso - A noção de Poder de Deus é essencial para a legitimação da fé, sim, isto não é possível contornar. Uma das últimas frases de Jesus, - já depois de ter voltado do 'reino dos mortos' e dizendo aos apóstolos para porem sebo nas canelas e toca a mexer dali fora - é (em S.Mateus): «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide ...». Mas isto demonstra (me) também o quê? Que Jesus sabia que os homens precisam do conforto do poder para se realizarem, para estarem confiantes e, naquele caso, para não terem medo de nada. Assim, nunca fracassariam na missão. A fragilidade humana, que já os tinha atraiçoado mesmo à frente de Jesus, não lhes provocaria o quebranto na hora de apregoarem Deus pelo mundo (aliás é aí que radica também uma quase inexplicável força que têm muitos missionários), e tanto inspiraram poderosos como miseráveis. Aquilo que salva e aquilo que corrompe convivem no mesmo porão.

7. a fragilidade como droga - Sermos complacentes com a fragilidade humana é um golpe fatal. Não exigir ao homem uma conduta digna é recolhermos a cabeça e o coração à zona do intestino. A nossa fragilidade pode ser o nosso vício, a nossa justificação, a nossa metadona para nos irmos aguentando. É uma linha muito fina a que separa a boa da má fragilidade, e o poder na cidade dos homens vive das duas; a solução está na frase clássica de Jesus: «quem quiser ser grande entre vós, faça-se o servo de todos». É uma lei de anti-poder. Afinal, olha-se para um Deus Altíssimo e Omnipotente e ele receita-nos: serve os outros. Mas mesmo para servir os outros é preciso ter cuidado com os superávites de inspiração divina.

Dai-me um spread e eu levantarei o mundo

Xavier Miranda tinha uma pequena leiloeira em Alcácer do Sal especializada em serviços de chá em faiança, molduras em madeira forrada a folha d'oiro e aguarelas com motivos de pesca e caça. Conseguiu ao longo dos anos angariar com esforço uma clientela fiel e interessada, mas agora pressentia que precisava de lhes dar algo mais, algo que fizesse os seus clientes sentir que tinham ali uma espécie de Sothebys do Sado. Testou o mobiliário de quarto (mas as pessoas tinham aderido irreversivelmente ao formato soummier), tentou a iluminação art deco (mas as pessoas estavam cada vez mais a aderir à iluminação encastrada), tentou as imagens religiosas antigas (mas os padrecos estavam a recomendar cada vez mais uma 'religião viva') e quando falhou a venda dum lote de roupa interior usada nos estendais do 'Pátio das Cantigas' concluiu que tinha de ser mais imaginativo, quiçá quebrar com barreiras e preconceitos, quiçá despir um pouco mais as meninas que se passeavam com o produto pela plateia pois, como sabemos, a nudez é a melhor patine. Foi então um dia ao almoço com o Sr Teixeira, barbeiro em Grandola, que lhe surgiu a ideia luminosa: iria associar-se ao ministério das finanças e leiloar também divida publica juntamente com os lotes de pires de sacavém e aguarelas de peniche. Os seus clientes dariam finalmente o grande salto da baixa faiança para a alta finança, inclusive Xavier mudou o nome da sua empresa para Sadhobys, o que a incluiu imediatamente no circuito internacional dos magnates do petróleo, do chao min, da geropiga e do kebab. No entanto, o que de facto veio demonstrar que Xavier sabia o que fazia foi a sua ideia de identificar os lotes de divida publica com despesas reais do orçamento a que essa divida virtualmente corresponderia, e a atribuir um certificado em papel cavalinho (desenhado por uma pintora de Pinheiro da Cruz) que as pessoas podiam colocar na sala ao lado do serviço de chá ou mesmo da jarrinha de porcelana. E foi assim que a dona Elvira, dona de uma padeiria em Setubal, arrematou a verba para as 'despesas com a casa de banho do 2ª andar do museu dos coches' vencendo a licitação a um contabilista do Deutsch Bank que se distraiu com um pratinho de choquinhos fritos que Xavier distribuía pela sala. Mas, na sessão inaugural, quem fez furor foi Joaquim Carlos, um ladrilhador da Lagoa de Santo André que fez finca pé para arrematar a verba que financiaria os 'reposteiros do gabinete de uma subsecretária de estado adjunta', que fazia lote com a verba para a '3ª tranche de fardamentos para a guarda fiscal', e que estava a ser muito procurada por investidores duma sociedade de polidores de pipelines do Usbequistão, «think global but fuck local» chegou a desabafar Jens Magnus, o director dum fundo de pensões norueguês que andava à mais de três sessões para conseguir arrematar um lote que incluísse a divida para financiar uma 'padiolas novas para a lota de Sezimbra' onde ele tinha visto um casal de garoupas bem frescas numas férias do verão. O sucesso foi tanto que Xavier, empolgado, não só abriu sucursais em Benavente e em Nelas (para onde reservou lotes que incluiriam divida para despesas com o 'escalfetas para as repartições de finanças da Beira Interior'), como franchisou o conceito de leilão junto das bancas de peixe do Pingo Doce, em que por cada peixe espada o freguês levava um kit-dívida: uma lata de salsicha, um danoninho, e dois vales da secção de frescos para oferecer a um funcionário publico. Com Xavier cumpriu-se um destino: construiu-se um deficit de proximidade, e alargou-se o banco alimentar à dívida pública. Tem hoje o seu nome numa rua em Loures e uma fonte em Montemor-o-Velho contempla o seu busto em pedra-sabão.

nós, os portugueses, damos sempre muita importância aos pequenos sinais

Dêem-me um cérebro novo que eu trato disto

Português que não ache que Portugal é uma merda nem merece ser português. Esta condição junta-se àquela, do mesmo calibre ao nível do sine qua non, de que português que não ache que Portugal é o melhor do mundo não merece nem um pôrzinho de sol enevoado na serra da arrábida. Ou seja, nós somos ao mesmo tempo o que quer que seja e o seu contrário, subvertendo todas as leis do aristotélico universo que parece ter sido criado sem tomar em consideração a abertura de espírito que emana da portugalidade que, assim, se vê obrigada a ter de concentrar em si todo o tipo de sentimentos sobre todo o tipo de fenómenos, no fundo, estar fodido e foder tudo na mesma acopulagem; valha-me Deus.
Penso assim que a alma portuguesa deverá ter direito a um tratamento especial quando chegar o momento do Juízo Final. O Juízo final, percebe-se, é um tema candente da minha riquíssima interioridade que, por experiência experimentada na própria experiência que experimentei, vos regista que com um português nunca se sabe bem se ele está a usar um livro de instruções se um livro de reclamações, o que o torna um cliente de juízos finais muito difícil de avaliar e consequentemente de encaminhar para a respectiva e correspondente zona purgatória. E tudo isto porquê? Pois não faço a mínima ideia; ai está outra característica que elimina toda e qualquer possibilidade de encontrar inclinação para o mal no português: não nos interessa o sentido das coisas; para nós, a maldade é uma mera maldade estética, pois serve apenas para tentar aparentar competência dado que bondade é trouxa e a indiferença é obra do diabo. Inclusivamente, o rancor nacional é apenas uma espécie de acidez que se torna indispensável para disfarçar o nível de extraordinária afabilidade que colocamos naturalmente nos nossos actos, que só não concorrem com os dos apóstolos porque, lá está, isso é pós tolos e nós de tolos não temos nada, espertos que nem uns ratos, independentemente de os ratos serem burros que nem um calhau - as analogias sempre foram uma especialidade nacional - senão não aceitavam entrar à borla naqueles testes dos psicólogos e mandavam-nos brincar só com pombinhos. E isto tudo porquê? Repito, não sei, almocei cozido, vendo bem almoço quase sempre cozido às quintas, aliás é sempre assim que sei que amanhã é sexta, nós, os portugueses, damos sempre muita importância aos pequenos sinais; sem contar os de trânsito; sic transit gloria mundi, queria eu dizer.

verso à terça (*)

Eli, Eli, lamma sabacthani porque me abandonaste entre os semáforos da gramática,
a mim que só pedira um dom pequeno?
o céu retirou-se como um livro que se enrola:
e todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares,
acabou-se-me a língua bêbeda,
sôfrego, subtil, sibilante, sucessivo, solúvel

Herberto Helder, A faca não corta o fogo

(*) apesar de já ser quarta

vai um fado p'ra variar?

power rangers

O poder é uma construção estritamente humana. Uma das grandes revoluções do cristianismo (leia-se: do património religio-cultural que decorre da vinda ao mundo de Deus feito homem ) é permitir que se olhe para um Deus omnipotente 'fora do poder', (o 'deus-poder' é propriedade intelectual do paganismo) ou seja, Deus como presença, caminho, salvação, e uma carrada de não despiciendos etceteras, (ou apenas 'verdade e vida' para utilizarmos uma fórmula mais poeticamente friendly) deixando para os césares a secção do economato.
Num post do regressado dragonblog ele afirma que «o Poder vem sempre de alguma parte. Se não do «Alto e Sublime», então do baixo e desprezível. Se não conta a Palavra, passa a contar o número..» and so on, and so on. Ora na minha rudimentar forma de ver les choses: o poder nunca vem do «Alto e do Sublime», 'dasse!, 'o poder' é uma coisa do urbanismo da cidade dos homens, na cidade de deus só há aquilo que se pode sintetizar por 'amor', pois a confrontação com Deus impede toda a lógica inerente aos mecanismos de poder. Não podemos ir procurar em Deus a justificação do poder, tal como não é Lá que se encontra a solução para o tratamento de águas ou a luta contra as cáries. Nem a dignidade humana decorre do reconhecimento de Deus como fonte de todo o poder, a dignidade humana decorre do uso daquilo que nos torna humanos: 'uma moral' e 'uma caridade'. O homem está de facto condenado a ter de se amanhar com os poderzinhos que terá de ir alimentando e tecendo à sua maneira, seja com o dinheiro, ou a força, ou a ternura, ou o sexo, ou as ilusões em geral. É mesmo assim, e há pouco espaço para o assado. O poder é avassaladoramente mais inerente à nossa biologia do que à nossa espiritualidade; é por nós cá fabricado, numa linha de montagem sinuosa, por estas tais coisinhas «baixas e desprezíveis» pelas quais a Trindade penhorou a sua 2ª Pessoa, e iludido anda quem o quereria ver a jorrar, vindo das vestes do Altíssimo directamente para as consciências famintas dos degredados filhos de Eva. A liberdade foi uma das coisas mais fodidas que o Criador deixou nas mãozinhas destes rangers do domínio e da submissão que somos nós.

fétevôjou

O meu nome é Cavacalegre e sou um dos candidatos do novo jogo patrocinado pela empresa de apostas Betanduine (não confundir com o betadine). Ao arrepio do que possam pensar o objectivo deste jogo é encontrar um namorado novo para a diana chaves quando o cesar peixoto, depois de conseguir marcar um golo ao scp, a trocar por uma miúda que aparece numa telenovela a fazer de irmã dela e que, segundo apurei em fontes bem informadas, já limpou o sebo a 4 tipos. Assuntos realmente importantes se não mesmo dos tais fracturantes, tanto mais que o meu principal concorrente é Defensor Nobre, um veterinário de Serpa que entrou para a ribalta pois, ao ter descoberto um remédio novo para as infeccções nas tetas da ovelhas, fundou a associação Pastores sem Fronteiras, que se dedica a ir pelo mundo fora a fazer tosquias e ordenhas em zonas onde a cabra tende a ficar hegemónica. Traz-me por isso aqui uma atroz campanha de difamação, calúnia e infestação de piolhos que estão a mover contra mim e inclusivamente à minha pessoa, por alegadamente ter plagiado um poema em verso alexandrino a um carpinteiro do Buçaco (que estava apaixonado por uma cerzideira de Mortágua) e posteriormente o ter vendido para um fado da Carminho ao preço duma balada do Sérgio Godinho. Assim, para que os apostadores possam exercer as suas apostas cívicas na máxima segurança, responsabilidade e coronárias desentupidas, quero afirmar pela minha honra e próstata limpa, que (apesar de apenas ter nascido uma vez dado que a minha mãe só tinha posses para partos em unidose) esse carpinteiro do Buçaco apenas tinha feito uma mesinha de cabeceira para o casamento da minha mai nova e que, para isso, eu lhe tinha arranjado um bom tarolo de mogno ali numa serração no Carregal do Sal que é dum primo dum cunhado meu a quem eu tinha ajudado a desinfectar uma verruga, aí já com o betadine. Agradecia agora, isso sim, que fossem investigar o que é que andaram a dar de comer às ovelhinhas que o meu concorrente Defensor Nobre tosquiou, pois anda para ali muita mistura de fibra acrílica e poliester, vai-se a ver andaram a pastar nalgum poço de petróleo guardado por betanduinos, perdão, beduínos.

quando se for o pão cuidemos do circo

Por muito que nos possa custar, os políticos desempenham um papel ecológico, depurador (redentor já era exagero) na sociedade. Certos piquenos delitos comuns ao serem incorporados na sua (deles) actividade corrente acabam por se diluir e perder força, acabando por ser assimilados pela sociedade sob a forma de caquinha normal, fertilizando o bem comum.


O dicionário não ilustrado, neste período pré eleitoral, e sempre sempre sempre, mas sempre, em período de reflexão, não se pronuncia sobre as mais valias de cavaco nem sobre as menos valias de alegre ( julga mesmo que o melhor seria arranjarmos um cavaco alegre ) e apresenta a síntese definitiva da ética política nas entradas 1347 a 1351.

prometer o que não vai cumprir - pela sua natureza, tudo o que se relaciona com o futuro anexa actos de grande coragem. A 'promessa' enquadra-se nesta categoria. Assim, prometer aquilo que já se sabe que se vai cumprir é um desrespeito pela instituição 'promessa'; a verdadeira promessa deve estar associada à incógnita, ao falhanço, é preciso saber destacar bem a 'promessa' da 'previsão'. A promessa tem direito a uma dignidade muito especial e essa dignidade só lhe é conferida por um nível de cumprimento ridiculamente baixo. Quando o cidadão normal promete gera uma mera expectativa, quando o político promete cria todo um universo mitológico para a mentira.

manipular dados - desde Saussure e Lacan que sabemos que a linguagem provocou a 1ª grande falha entre o homem e a realidade. A segunda grande falha foi criada por aquilo que se costuma chamar de «os dados». O politico é o agente predestinado para melhor resolver essa grande quebra, relativizando-em-absoluto (reparem só nesta classe) a algebrização da realidade, tornando os factos reféns da sua, dele, vontade, e libertando-nos dessa grande responsabilidade e maçada que seria ter de aprender com a experiência. O cidadão interpela-se com os dados, o político atropela-nos com eles.

discriminação de clientelas - o acto fisiológico de viver é um acto puramente comercial; tudo trocas: energias, oxigenações, memórias, relações, fermentações; tudo se pode resumir a uma transacção de elementos: um dar, um receber, um pagar, um cobrar. Os políticos elevam à sua maior nobreza um dos fenómenos da troca vital: os favores; o figado faz favores ao estomago, o estômago faz favores ao intestino, os incisivos fazem favores aos molares, a bexiga vai-se aviar ao rim. Até o 'Pai Nosso' se vai aviar ao 'Credo'. O político transforma um metabolismo num património social.

fingir sentimentos - 'sentir' é já de si uma das grandes ilusões que o nosso corpo nos reserva. Está ali entre a fraude e a corrupção; ou seja, a máquina de sentimentos que temos incorporada merece ser devidamente posta no seu sítio e mostrar respeitinho ao ser que a acolheu. O político faz isso por nós: a ternura pelos que mais sofrem, as condolências pelas perdas abruptas, a consternação na hora da catástofre, a elevação da honra nacional, a dedicação ao bem de todos nós, o espírito de sacrifício pela coisa publica. Os políticos fingem por nós, abençoados, é essa a sua maior representatividade.

inventar passados - se o futuro é uma aventura o passado é uma ficção. Quem mais precisa do passado são os políticos e por isso são quem mais honra lhe pode prestar. O valor da fidelidade pode aplicar-se a muitas circunstâncias da vida, mas nunca ao passado. Prestigiar o passado é antes de tudo inventá-lo, truncá-lo, empolá-lo, adorná-lo, fazer dele uma obra de arte e técnica, pondo-o ao nosso serviço. Ora, se a maioria das pessoas precisa apenas do passado para lhe justificar algumas neuras, e uns recibos verdes aos psicoteratretas, os políticos usam-no como relicário para se passear pelas paróquias onde costumam arrear sermão. Se o contribuinte arrasta o passado inventado como uma via sacra, o político pode elevá-lo à condição de mistério do rosário.

sai uma first amendement para a mesa do canto, faxavor.

Poderia existir um tipo de perversidade de 3ª geração a guardar-nos a sanidade e a graça. Qual seria a moralidade daquele mal apenas pensado instrumentalmente, - nem Kant nem os anjos lá chegavam - apenas para nele concentrar as forças que poderiam, se desgovernadas a céu aberto, desencaminhar-nos em assuntos, esses sim, de importância real, vital, escatológica. Quem ama a Deus não terá também direito a uns minutinhos de mente sacana, aquele tipo de mente que conseguisse arranjar um vestíbulo para deixar o mal real apenas à porta a falar com o capacho. Será uma quimera esta psique que consiga encontrar um local de embuste que não é nem freudiano nem pavloviano nem damasiano? Esse lugar virtual onde cometêssemos os roubos, os insultos, um ethical-punch onde deixássemos a nossa soberba a esmurrar, a brincar ao faz de conta, onde déssemos os beijos de judas, sem Lhe tocar na face, e sem receber moedas em troca. Uma zona desmilitarizada. Um campo de tiro para a culatra da imaginação. Meu Deus, para ali não olhavas, sabias mas não olhavas, tipo os miúdos a jogar playstation enquanto os avós lhe dão sermões, era uma coisa só nossa. Um paralelo 38 da moral. Um pecadário, uma reserva artificial para pecados terapêuticos, indolores, incapazes, estéreis, fátuos, falsos. Risíveis. Eram a sombra das sombras da caverna. Precisamos deste espaço, meu Deus, duma válvula occipital, duma zona com imunidade penitencial, duma assoalhada onde as tábuas da lei ficassem apenas a fazer de parapeito e nunca de rodapé; vá lá, com uma fontezinha de água benta no meio. Podes fazer com mutação, com milagre, com arrefecimento global, com aparição, com selecção natural é que não pois leva muito tempo, pela nossa rica saúde.

avulso verso

Lépida a democracia apinhou
sarnosa e perdigueira
a dinâmica sevandija do verão.
O dejeto impunidade
na orla abjeta.

Joaquim Manuel Magalhães, in Um Toldo Vermelho

Euros e Tanatos

Hoje o dicionário não ilustrado trouxe a crise financeira para o divã; na sua 1ª aparição publico-privada (mesmo sem ser parceria) do ano não poderia deixar de fornecer ao amável público um guia - mon Dieu, moi même, je fait un guide! - para nos conduzir pelas novas inquietações, ó inquietação inquietação, pois está um recalcamento a cada esquina e uma sublimação a cada algeroz, e a diferença entre uma boa neurose e uma enrabadela de elefante pode ser apenas derivada à altura do genuflexório. Entradas 1338 a 1346.

taxa de juro - constituinte básico do sonho eurótico; sem uma taxa, qualquer entrega carnal se pode perder nos meandros da vulgar relação amorosa que, como sabemos, faz com que ainda não terminado o investimento já estejamos a carregar com o valor residual.

politica orçamental - tipo de acto falhado em que a intenção se confunde com o destino.

reguladores - trata-se dum tipo de situação de domínio em que o falo, em vez de se sustentar num bom par de tomates, opta por umas bóias com patinhos.

rating - construção do inconsciente que revela a incapacidade do mercado em resolver o seu complexo de édipo, acabando por recorrer a uns pais de aluguer.

proteccionismo - espécie de pulsão de transição que se instala na zona alfandegária do inconsciente e que geralmente aparece quando estamos quase a esgotar as reservas do super-ego.

fundo de estabilização - depósito onde as fantasias se podem resgatar sob a forma de obsessão ou de histeria, e a devolução é sempre em forma de melancolia.

solvabilidade - tipo de alucinação cinestésica em que parece que a nossa carteira se está a encher mas afinal é só o quisto a mudar de posição.

dívida - máquina de sintomas que representa a paz provisória entre a inconsciência da posse e a pulsão do calote.

Liquidez - mecanismo estabilizador do movimento de vai-vem dos recalcamentos e também denominada na gíria dos especuladores da psique como o 'narcisismo dos mercados'.

Parolos de todo o mundo, uni-vos

Já tivemos proletários, já tivemos burgueses, já tivemos camponeses, chegámos a ter saloios. Chegou mesmo a existir uma coisa que se convencionou chamar sociedade, que alimentou ciências com estatísticas sobre electrodomésticos e divórcios. Na mente de alguns carolas bem intencionados chegou a afirmar-se a ideia peregrina do individuo, chegámos a ver essências e substâncias nas coisas; choraram-se gerações perdidas, rascas, fodidas e soubemos equilibrar-nos entre degredados filhos de eva e abençoados filhos de deus. Piedosamente elegeram-se líderes, devotamente criou-se o direito e, que nem iluminados, levámos uma candeia a anunciar a libertação pela informação. Chegámos a conseguir resumir tudo a oprimidos e opressores, situação e oposição, a inocentes e a filhos da puta. Todos já tiveram o seu hino, a sua causa, a sua justificação. Todos já tivemos os nossos momentos de semente, de massa e de fermento, quem quisesse já podia ter escolhido uma parábola e uma bem-aventurança para si. Sobra agora uma massa borbulhosa, pegajosa, amarelecida, ciosa da ignorância que conseguiu ir acumulando e engalanada de farinha em flocos. Os que querem ser mais diferentes acabam mais iguais e a bitola volta a ser fornecida pelo jardim de todas as zoologias. Sem saber o que era a morte já a experimentámos em escala, em isolamento, a pedido, súbita, e até já inventámos a morte estúpida. Ora abandonados pelo além, ora abandonados pelo aquém, mas, pelo sim pelo não, entrincheirados na cova do amor e da felicidade, não vá a coisa dar para o torto e sermos apanhados desprevenidos por algum petardo da má sorte. Já tivemos capital, já tivemos trabalho, já tivemos valor, já tivemos escolha. Já fizeram de nós matéria e até ideia. Até há quem nos ensine a viver. Somos o resultado parolo duma divisão em que o numerador vive com o medo de se tornar resto.