cap I. O croquete
Sílvio Basalto tornara-se um homem triste e desencantado com o estado deplorável deste canto da galáxia quando, ao comer uns croquetes, se deparara com uma sensação de infinita desolação pelo, tudo indicava na altura, destino da alcatra de vaca que lhes dera origem. Não é todos os dias que um pouco de carne picada entra pelos locais mais recônditos da alma de um ser humano daquela forma tão definitiva e avassaladora, pelo que Silvio Basalto foi levado a investigar a razão de tamanho fenómeno e das suas diversas psiconsequências.
cap II. As terapias
O primeiro diagnóstico que lhe foi proposto por uma massagista cerebral da rua da Estefânia baseava-se na interpretação algo lata, para não se dizer arrojada, dum seu sonho na noite da véspera do exame da 4ª classe em que lhe aparecera a professora vestida com uma saia no padrão de tirolesa-malhada. No entanto, Silvio não ficou convencido com a explicação, tanto mais que nessa altura da infância estivera completamente apaixonado por Celinha, uma prima afastada que o tinha ensinado a apreciar hamburguers mal passados com cebola e molho de yogurte.
Inundado por essa inesperada, inexplicável, inextinguível, ruminante e inquietante tristeza, Silvio Basalto procurou um terapeuta com consultório em Campolide, que se tornara famoso pelo seu método que tinha como lema: 'Transforme em força a sua mais pequena fraqueza nas mãos do dr. Saraiva Represa'. O ambiente do consultório era bastante acolhedor, passava constantemente músicas do Nick Drake, e a saia da recepcionista apresentava uma racha que faria perder a cabeça e o mosquetão a qualquer praticante de escalada, mesmo que fosse só da mental; Leonor de seu nome, Safira de apelido e coração e Santa Lili para efeitos de devoção. No entanto, e ao arrepio das primeiras e compreensíveis impressões e até expectativas, Leonor & Atributos, SA não fazia parte do terapeutic path do dr. Saraiva, este baseava a sua abordagem clínica numa hidroterapia intensiva, convencido e convencendo que a água dilui a fraqueza e a transforma em elementos tonificantes para aquilo que vulgarmente se chama a alma mas que o dr. Saraiva apelidava, sem qualquer explicação, nem retórica nem científica, de 'coiro-interior'; pois «explicar é secar» dizia ele, o que até parecia apropriado para um hidrofílico militante.
Inundado por essa inesperada, inexplicável, inextinguível, ruminante e inquietante tristeza, Silvio Basalto procurou um terapeuta com consultório em Campolide, que se tornara famoso pelo seu método que tinha como lema: 'Transforme em força a sua mais pequena fraqueza nas mãos do dr. Saraiva Represa'. O ambiente do consultório era bastante acolhedor, passava constantemente músicas do Nick Drake, e a saia da recepcionista apresentava uma racha que faria perder a cabeça e o mosquetão a qualquer praticante de escalada, mesmo que fosse só da mental; Leonor de seu nome, Safira de apelido e coração e Santa Lili para efeitos de devoção. No entanto, e ao arrepio das primeiras e compreensíveis impressões e até expectativas, Leonor & Atributos, SA não fazia parte do terapeutic path do dr. Saraiva, este baseava a sua abordagem clínica numa hidroterapia intensiva, convencido e convencendo que a água dilui a fraqueza e a transforma em elementos tonificantes para aquilo que vulgarmente se chama a alma mas que o dr. Saraiva apelidava, sem qualquer explicação, nem retórica nem científica, de 'coiro-interior'; pois «explicar é secar» dizia ele, o que até parecia apropriado para um hidrofílico militante.
Ao fim de meia dúzia de sessões Sílvio Basalto compreendeu que, para além de Santa Lili, pouco ali o tonificava, e mesmo esta começou a insistir num estilo mais étnico, de saias muito largas e coloridas que irremediavelmente fazia diluir a motivação, que é o termo delicado para significar excitação, e ainda mais delicado que tesão, termo definitivamente mais técnico. Pocahontas já esgotou um certo modelo de erotismo, é aquilo que vos posso adiantar para escolherem em proveito ou indiferença.
Cap III. Derivações
No entanto, Silvio tinha aprendido o essencial: a fraqueza é um constituinte básico da força, tal como a força é um constituinte fundador da fraqueza. Uma banalidade nos dias de hoje, quando já foram descobertas a potencialidades cósmicas do vazio, e a inutilidade do conceito de Deus para fazer bacalhau à Brás ou holocaustos, mas, por outro lado, se não há nada mais banal que a fé, ainda não apareceu nada mais fiável para mover montanhas.
Seria entretanto injusto para a história de Sílvio Basalto que não fosse referida a sua experiência com o mestre cripto-místico Luis Tolstoino Bolota que se propôs colocá-lo em contacto com Deus através de uns crepes com porco preto. Se, por um lado, Silvio chegou a pensar que estava entranhado de uma energia que o porco preto misturado com farinha lhe propiciava, cedo também se apercebeu que: se à tristeza é o croquete que a traz não é o crepe que a leva.
cap IV. O escombrulho
Como sabemos hoje, há tantas terapias quantos códigos do DSM IV, e normal seria que Silvio tivesse entregue em teste a sua profunda tristeza aos vapores da música, da poesia, da filosofia, do sono, das virgens polacas, da cor, dos corvos do edgar alan poe, do chocolate, das flores, das pedras, e inclusive do creme barral. Mas o que torna interessante o caso de Silvio Basalto é que a sua tristeza, que tinha começado como um subproduto do mero face a face com a realidade da carne em formato picado, vertiginosamente se foi transformando numa descrença no potencial de dignidade e glorificação da natureza humana e desembocou naquilo a que o prof. Eliseu Dracolino de Morais haveria de catalogar mais tarde como 'a neurose do escombrulho', um quadro clínico ali entre a ecolalia hiperactiva e sinestesia paranoide em que o mundo é sistematicamente reduzido a uma repetição de 'escombros' e 'entulho' sempre que a alma não esteja em contacto directo ou 3G com o Criador e Fundamento de todo o Ser.
cap V. O dicotomismo
O prof. Eliseu Dracolino de Morais interessou-se pelo caso de Silvio Basalto pois, por aquilo a que vulgarmente se chama de coincidência, no seu livro 'A alegoria do ser' dedicara um capitulo em torno da expressão ' a carne é fraca', no qual concluía vivermos numa 'fase croquete' naquilo respeitava à relação com a matéria. Ou seja, impedidos, por razões de imperativo civilizacional, de considerar que a matéria é ilusão, fizéramos com ela o que os neo-moralistas já tinham assumido com a ameaça da Lampeduzização da espiritualidade: tudo misturado para que tudo fique diferente. Eliseu Dracolino trazia, por isso, sempre muito viva a presença do fenómeno parametafísico do croquete, e quando lhe chegou o caso de Silvio fixou-se nele como o primeiro exemplo vivo de quem tinha assimilado na sua existência a problemática da evolução como uma concomitância entre a mistura e a degradação no seio do núcleo do Ser.
O prof Eliseu era um dicotomista militante, via a acção do homem sobre a matéria sempre em dois pólos; ou constrói ou evacua, no meio é o vazio, terra de elfos, gnomos e nibelungos escorraçados por estrabismo.
cap VI. O processo de cura
Na altura do primeiro encontro entre Silvio Basalto e o prof Dracolino, este andava numa fase La Bruyèreana, e tentava encaixar as ideias do francês, que exprimiam: se a virtude não estiver acompanhada da vaidade não chega a lado nenhum. Assim, foi tentado a incutir em Silvio uma espécie de fúria reconstrutiva: onde estava um monte de entulho ele devia ver uma travessa de croquetes, onde estava um croquete ele devia ver imediatamente uma peça de entrecosto, onde estava uma peça de entrecosto ele devia ver um prado exuberante, e onde estava um prado exuberante ele devia ver Deus no esplendor do seu 3ª dia do Genesis rodeado de verdura. Ou seja, Silvio, em pleno processo de cura da 'neurose do escombrulho' parecia estar apto a sair da fase croquete e a entrar na fase entrecosto, e o prof Eliseu iria finalmente poder demonstrar ao mundo, prenhe de indiferença, incredulidade, uma verdadeira nihiland, que quem não constrói de olhos postos directamente nas muralhas do Olimpo, está condenado a exorcizar para dentro e nem sequer ver um croquete no centro do aterro.
cap VII. A vitória do Bem e do Belo
Silvio preparava-se agora para entrar numa dimensão apocalíptica da sua viagem interior. O prof. Eliseu Dracolino de Morais soubera fazer-lhe ver que fazia parte dum plano cósmico de recuperação da civilização. A crise entranhara-se-lhe pela psique, mas ele fora dos que não se entregara à frivolidade do desânimo nem à facilidade da histeria. Não se enleara nos roteiros anestesiantes da literatura da decadência, nem se refugiara nos roteiros mágicos do romantismo negligé, agarrara no croquete - tão simbólico quanto real - com as duas mãos mas não deixara que ele se desfizesse numa papa de cepticismo, antes se imolara com ele como se na pira dos gloriosos guerreiros de Tróia estivesse. O prof Eliseu apresentava agora o seu paciente como um laboratório vivo da recuperação neo-aristotélica da natureza humana, um trabalho meticuloso de filigrana metafísica, só alcance daqueles que mostrem ter os transcendentais no sítio.
cap VIII. Rodízio final
Já em plena maturidade da fase entrecostal, com escombros e croquetes deixados bastante para trás, e pronto para embarcar no esplendor da relva, Silvio volta a encontrar Leonor Safira, agora sim novamente entregue aos encantos de eficácia comprovada por gerações de corações partidos, e pronta para participar na recta final da libertação de Silvio das amarras da concupiscência materialista. Jantaram a primeira vez a dois num rodizio à Defensor de Chaves e fizeram um brinde ao prof Eliseu Dracolino por ter demonstrado que aquilo que o croquete separou, uma boa picanha pode voltar a unir.