Isto é para despachar já o assunto: o Outono em forma de besunto



A coisa mais fácil que existe para escrever são textos eróticos. O corpo, o sexo, o desejo, a carne, a excitação, a pele, as curvas, a cor, o cheiro, as obscenidades, as posições, o contacto e a falta dele, o explícito e o implícito, o sentido ou o mecânico, o proibido ou o assumido, o insinuado ou o apalpado, são tudo coisas que se prestam com demasiada facilidade ao corridinho das palavras. A exposição do sexo (ou da sexualidade se quisermos ser mais finos) como tema ou como experiência é uma das muitas futilidades em que se concretiza essa actividade também fútil que é escrever. Perdida a função de provocação teórica, de satisfação da curiosidade, ou da excitação psico-somática, a escrita erótica soa-me sempre a pura banalidade quer venha disfarçada de lengalenga poética, quer venha disfarçada de corruptora científica de convenções, quer venha disfarçada de inebriadora de consciências ou despertadora de inibições, ou original desempoeiramento lírico.


Deixei de ler essas merdas, claro. Estava sempre a perguntar «está bem pronto e então agora?», ou «sim ok, já percebi, e depois fodem ou casam-se?» ou «vá lá, vá lá, assim não nascem putos», ou então mesmo em situações mais desesperadas «se era para isto bem podiam ter lavado as mãos primeiro».



Pois então serve-me para quê saber que a pele daquela gaja é como seda e que lhe meteram a mão entre as pernas e estava húmido? Serve-me para quê saber que uma tesão pode ficar armadilhada num suor mal pingado de nádegas sôfregas por desassossego? Serve-me para quê saber que uma língua se roça onde lhe apetece por causa daquele seu mau ou bom feitio? Serve-me para quê ler que a mulher tem buracos que não acaba e que se podem chamar fendas, ou rasgos, ou portas ou orifícios ou conas ou cus? Serve para quê saber onde é que começa a individualidade do corpo e onde começa a fusão do desejo? Serve para quê ler que um corpo besuntado desliza melhor que um ressequido? Servem-me para quê as hierarquias das erogenidades, se depois vai-se a ver um gajo adapta-se a tudo até às pirâmides invertidas. Serve para quê saber que estão a fazer tudo às escuras e que é no tacto que está a mais valia e no imaginar é que está o ganho? Serve para quê saber que tudo começou num beijo e que depois acaba num beijo também, numa espécie de sexo capicua? Serve-me para quê saber que numas determinadas curvas de mulher se esconde uma brigada de prazer, que nem faz operações stop nem nada, porque vive um sexo sem códigos? Serve-me para quê saber que a mulher dissimula se quiser e se não quiser também e que até pode ser o vice-versa? Serve-me para quê saber que o corpo umas vezes mente, outras vezes engana, e das outras fica indiferente? Serve-me para quê saber que o corpo afinal nunca mente quando estremece de trás para a frente, e que é na sua linguagem que se desvenda o segredo de muita gente? E serve para quê ler a descrição duma trança de corpos a fazer um carrapito bem jeitoso se não somos nós os cabeleireiros de turno?

Precisar de ler para imaginar é uma espécie de jurássico do pensamento. Precisar de imaginar para viver é uma prisão para alma.



A escrita porno-provativo-erótica ainda para mais tem a triste consequência de rebentar com a dignidade de certos verbos que até podiam ter uma vida sossegada e viver com as legítimas e respectivas substantivas numa união semântica tradicional, serena, e cumpridora. Atentemos em verbos como “lamber”, “chupar”, “comer”, "morder", “roçar” entre outros, que ficaram com a fama completamente destruída com sua apropriação pela cinética erótica que não se contenta com a semântica que deus nosso senhor especificamente lhe atribuiu, e que anda praí a estragar famílias de palavras por todo lado. Eu já nem falo de “enfiar” e “meter” porque essas estavam mesmo ali a pôr-se a jeito, mas minha rica mãe até “tocar” passou a ser um verbo refém do erotismo! Ao que isto chega; um verbo que trazia consigo uma musicalidade e um intimismo tão forte, e agora só de pensar que na sua utilização com a gaita-de-beiços ou de foles permite criar um ambiente estonteante de sexualidade implícita, só que depois até vai-se a ver era apenas um tal de preliminar. Porra até "preliminar"!



Pois é, a escrita dita erótica apresenta-se de uma inutilidade atroz, e ainda para mais faz o escrevedor refugiar-se em rasteiros vícios de escrita como sejam os diálogozinhos ou as dissertações, e pior: encapotar as cenas de sexo no melaço dum enredo idílico como se elas não fossem o objectivo essencial do negócio. Ter de demonstrar que por detrás daquele reboliço mais ou menos encavalitado estão duas ( versão mais decente) pessoas, passa muitas vezes por lhes expor os pensamentos, ou as emoções, ou mesmo – espantemo-nos – as palavras, ora porra, se era para isso iam para uma esplanada beber uns ginger ales e escusavam de estar a sujar os lençóis, que depois para os lavar lá vai mais detergente e borracha para o nível freático!

E reparem que para dizer pila basta ter de levar os miúdos ao infantário, e para imaginar um pipi basta ver os anúncios do evax tanga. E felizmente não cheira.



E esta recente vaga de mulheres a exporem a sua sexualidade pseudo-mitológico-desinibida apenas reflecte uma fase de excesso de livros de culinária no mercado.





E eu agora até queria mandar os parabéns daqui ao Seta Despedida, mas com este texto fico um bocadinho à rasca.

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