Entramos novamente na época alta do achincalhamento de
Cavaco Silva (presidente com apelido e doutoramento em York). Com enorme
vocação para servir de boneco para os mais diversos artistas dos media, Cavaco Silva, ao longo da sua
carreira, praticamente picou o ponto em todos os incidentes propiciadores de gags. E, curiosamente, se qualquer dos
incidentes poderia ser objecto dum largo espectro de reações, apenas o seu lado
negativo (caricato, vá) sobressaiu (ficou, vá) ; se quisermos resumir: numa idêntica
situação, reacção, onde soares se sairia como excêntrico, cavaco sai como
saloio.
Quando se quis apresentar o cavaquismo ao mundo ele apareceu como uma espécie de tecnocratismo
cinzento e pacóvio (já na altura?), focado em resultados práticos e sem nenhuma
riqueza ideológica. Mas aparentemente o conceito foi envelhecendo, acompanhando
quem lhe deu o nome, e entrou em deficit hermenêutico. Tabus mal geridos, bolos
rei mal ingeridos e bancos mal falidos foram fazendo desvanecer a imagem de
competência, esmoreceu o lado pedagógico e avivou-se o seu lado …. etnológico,
por assim dizer. E se , assim, o cavaquismo foi perdendo conteúdo, não deixou
porém Cavaco Silva de continuar a agregar um conjunto de características que ,
julgo, continuam a merecer a glória duma categoria socio-politica
Surge-nos assim o Boliqueísmo como resposta. Trata-se duma especial
forma de ir envelhecendo no poder. Tem, obviamente, algumas condicionantes
externas (o que é que não tem?), como sejam a pressão das notícias, o excesso
de realidade, a imbecilidade dos questionalistas (jornalistas de perguntas), mas
julgo que já possui um corpo homogéneo e estável de características.
O boliqueismo, na sua forma benigna, forja-se na transmissão
de algumas ideias base: (1) eu sei coisas que vocês nem sonham e se sonhassem
não compreenderiam; (2) não estou com tempo para vos explicar; (3) a minha
mulher agora quer que eu vá dormir a sesta; (4) gosto da Travessa do Possolo;
(5) Cada vez gosto mais de andar com a mão invisível nos bolsos.
Agora desenvolvendo um pouco mais. O prof. Cavaco Silva sabe
que o mundo é perigoso e agressivo e acredita que se formos todos unidos iremos
passar por ele sem saborear o fel da crueldade humana, ou pelo menos não nos
vai transtornar o fígado. O boliqueismo não se trata dum deslizamento de santa
comba para sul, nem sequer numa promoção de dona marias, de governanta a
professora, ou até de colecionadora de naperons a colecionadora de presépios; não,
o boliqueismo é um regresso às origens do homem político como experiência desamparada. Daí ele dizer
que nunca foi político, daí ele ter mantido a sua reforma de funcionário público,
daí ele ter fervido quando temeu ser alvo de escutas telefónicas. Quem tiver
jeito para isto é porque é aldrabão, está Cavaco Silva a dizer-nos
constantemente.
Uma coisa é gerir um país como se gere uma bomba de gasolina
em Loulé: tudo tem as suas regras, cada um avia-se na sua vez, não se mete a mangueira
do gasóleo no buraco da gasolina; outra coisa é gerir um poço de petróleo: pode
secar, só se explora quando o preço compensa, há trinta tipos a querer
arrendá-lo e outros trinta a querer explodi-lo. O boliqueísmo é o sonho de
gerir o poço de petróleo como quem gere a bomba de gasolina.
Se o cavaquismo foi não cometer erros e raramente ter
dúvidas, o boliqueismo é poder fazer uma figura de morto digno mas no limite de
parecer muito ser uma múmia alegre.
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