[4] Números


Mas quantos é que eles já são? perguntou Deus ao Anjo Lineu.

De facto Lineu nunca tinha pensado nisso. Será que teriam de controlar o ritmo de reprodução ou aquela invenção do Anjo Mendel sobre um tal de código genético paralelo à inseminação da alma transcendente seria suficiente para manter a população controlada.

Numa primeira contagem ficou alarmado: já eram muitos milhares. Será que a produção de almas acompanha isto, perguntou ele timidamente ao Altíssimo, que pela primeira vez chamou estúpido a um Anjo em plenas funções.

Mas organizam-se em tribos, acrescentou Lineu já a medo e suspeitando que estaria mesmo tudo previsto nas entrelinhas do Plano de Inseminação Transcendente de Almas… e criam relações estranhas entre eles: «amizade», «negócio», «sexo», e inclusive já ouvi uma ou outra referência a um tal de «amor». Será que do habilis para o sapiens deixámos escapar algum pormenor? Não tarda ainda inventam a civilização e nós nem damos por isso.

Cerca de 80% envolviam-se no processo de reprodução. Desses, cerca de metade, envolviam-se de corpo e alma no processo, mas a outra metade envolvia apenas o corpo. Ambos pariam com a mesma eficácia.

A rivalidade é um sentimento comum, cerca de 90% dos homens consideram – intimamente - que têm um rival, mas no que toca às mulheres há referências a um processo reprimido de emancipação. Haverá ajustes a fazer no PITA?

Começam as distinções entre povos escolhidos e povos deixados ao deus dará. Há referências explícitas a uns tais de «pagãos». Serão os que no juízo final vão pagar a conta?

Deixamos isto ir andando ao sabor do vento suão ou avançamos já com o Anjo Charles? Noutro dia lanchei com ele no Beagle e veio-me outra vez com a ideia de introduzirmos a tal de «seleção natural» no Programa.

Estou indeciso entre isso e aquela coisa da «luta de classes» de que fala o Anjo Karl. Mas para já deixamos isto ao Deus dará e pomos o Anjo Malthus a fazer as contas.

[3] Levítico


A vida de primata esclarecido não se apresentava fácil. O grupo de prepúcio free evidenciava comportamentos que não seriam expectáveis depois de tantas provas da presença de Deus. «Ah e que tal dar-lhes umas quantas regras para cumprir», avançou o Anjo Taxonomista.

Não faltará muito para aparecer alguém a dizer com ar de sábio que o homem é o lobo do homem, para já haveria que esgotar as possibilidades de serem todos cordeiros.

Aparentemente a alma transcendente trouxera uma revolução ao corpo mas estava a chegar com mais dificuldade aos apêndices. O diabo está nas extremidades, avançava Lineu.

A espessura da fronteira entre a tolerância e a promiscuidade é uma bênção para os contrabandistas de costumes e o Altíssimo temia que a seguir à criação de qualquer moral aparecessem rapidamente as contrafacções a ocupar uma franja importante de volátil mercado da moralidade.  

Mas é impossível resistir ao impulso legislador e um descendente de macacos com uma arca da aliança ao lombo tem mesmo é de se dedicar à obediência. A profissão mais antiga do mundo é desobedecer ao Criador.

A relação entre o homem e a mulher é do foro político. A sexualidade é apenas uma componente dos acordos de incidência parlamentar: no meio da luta há que estabelecer um mínimo de relaxamento.

A relação entre o prazer e a reprodução é pendular e da mesma natureza que a relação entre o acessório e o essencial. Como estes conceitos estão sempre em movimento estamos impossibilitados de os fixar de forma permanente.

A amizade é um conceito indefinível, nem sequer é circunstancial. Todavia pode abordar-se por defeito: Homem que não fornique com amiga é de homem de desconfiar. Homem que fornique com amiga tem de pagar um preço. A confiança é o bem de mais alto preço

O ciúme é um bem escasso e raramente se encontra em estado puro. Cobiça, inveja, ressabiamento, despeito e desilusão estão sempre à espreita para atacar. A pureza, tal como no diamante, está no sofrimento, na dureza.

Quando a liberdade foi pensada por Deus os homens eram todos lobos. Já com o Processo de Inseminação Transcendental de Almas em pleno funcionamento começaram a aparecer os cordeiros. Não há seleção natural que resista a isto. Apenas Deus pôde garantir que nos aguentássemos.

A mulher é o lobo do homem. Ataca na lua nova.

[2] Êxodo

Já estávamos bem dentro do segundo milénio antes da vinda do Redentor, (para fazer um stress test de campo ao funcionamento do Plano de Inseminação Transcendente de Almas) quando, para as bandas das margens do Nilo, um povo, que estava a servir de amostra numa análise de comportamento levada a cabo por uma comissão de acompanhamento nomeada pelo Anjo Lineu, decidiu armar barafunda.

Em princípio, estava previsto no PITA que, a dada altura, se teria de perceber se o homem tinha capacidade ou não de pôr de lado as evidências e entregar-se – de corpo e alma - àquilo que se chamava ‘Vontade de Deus’. Ou seja, teria a inseminação da alma transcendente colocado o corpo em sentido, ou os resíduos de homo habilis que residiam no sapiens ainda tinham muito peso? Era o homo sapiens ainda um mamífero com uma alma em ovulação, ou estávamos já a falar de potenciais filhos de Deus com algumas reservas de vida selvagem?

A capacidade (tendência) humana de unir esforços seria superior à pulsão de isolamento. Confiar seria mais natural que desconfiar. Resistir seria mais comum que atacar. Mas não havia dúvida que isto de meter ‘uma alma de PITA’ num corpo nunca havia sido testado e eram imprevisíveis as relações que se estabeleceriam nestes novos mamíferos transcendentados (com uma dentada de transcendência) , seja entre eles, seja com os outros animais, fossem estes gatos amestrados, melgas sedentas de plasma, ou serpentes de estômago elástico e contrato assinado com o discovery channel.

Gostariam os homens do jugo protetor de outros homens, prefeririam eles a incerteza da liberdade individual, ou tenderiam apenas para olhar sempre para ver o que estava a fazer o vizinho do lado? Nem uma temporada a banhos no Nilo deu para perceber. Talvez os ares do mediterrâneo fossem melhores que os do mar vermelho.

O aparente Dilema de Deus não era de menor envergadura: mostro-Me mais ou jogo às escondidas? Jogamos às tabuinhas da Lei ou enfio-lhes com meia dúzia de profecias arrasadoras no bucho?

O anjo Lineu ainda desabafou ao Altíssimo: só sei que cada praga está a custar-nos para cima de um dinheirão, sinto que estamos a empurrar o Juízo Final com a barriga. «Não te dei asas para teres sentimentos», foi a Divina resposta.

[1] Genesis

Vai para coisa de 100 mil anos que o Criador, já sem paciência para a evolução das espécies, entendeu reunir de urgência com o Anjo Taxonomista (São Lineu de Toba) para decidirem semi-democraticamente se estava ou não na altura de avançar para o já planeado Processo de Inseminação Transcendente de Almas (PITA) com/em alguma das espécies existente.

Aparentemente os dinossauros tinham falhado redondamente nas componentes emocionais, o chimpazé não se revelara especialmente motivado fora do que o seu rabo pelado alcançasse, os australopitecos apresentaram-se incompetentes para arte em geral e o desenho em perspetiva em particular, o neanderdal fora uma desilusão a trabalhar com o polegar, mas o homo sapiens, mesmo não podendo ver um rabo de saias, parecia cumprir os mínimos.

São Lineu insistia em esperarem mais um pouco para ver se a seleção natural produzia algum milagre, mas Deus Nosso Senhor estava ansioso e com mais que fazer; com o tempo haveria de se ir compondo o que agora resultasse de alguma precipitação, tanto mais que a «cartada da Redenção ainda estava por jogar» ruminava-lhe o Espirito Santo (Íntima Pessoa de infinita paciência mas com combustão de curto pavio)

Foi escolhido rapidamente um exemplar que se dedicava a descascar pistachios ali para o lado da Suméria e que rapidamente – potenciado por uma alma de encomenda e ainda fresquinha - se começou a destacar dos primos face a uma sensibilidade nunca vista para as manifestações mais parvas da natureza, desde o pôr-do-sol ao orvalho matinal, passando pela maçã reineta e as gajas.

Já não havia hipótese de voltar atrás, Lucifer e a sua Corte estavam à espreita de deslizes com olhar maroto, e agora era tentar ir aperfeiçoando a coisa, mais dilúvio menos dilúvio, mais sodoma menos sodoma, mais Lenine menos Lenine.

A maior parte das vicissitudes – nome técnico usado no Paraíso para merdas - da nova espécie estavam mais ou menos previstas no Manual da PITA, e São Lineu foi acompanhando a operação com zelo e pragmatismo. Assim, quando Abraão aparece no cimo do monte pronto a dar uma arrochada no puto o Altíssimo intervém célere e manda-o seguir com a marinha, um dia no olival e outro na vinha (versão agrária de um dia com a noiva outro com a vizinha - porque isto das tribos é bonito mas dá muito trabalho)

Já se sabia que a Inseminação Transcendente de Almas era um processo que apresentava uma vertente mimética bastante acentuada e assim o homem haveria de evoluir para uma, digamos, condição política (como se sabe hoje, no Céu, onde a ciência e a arte são desnecessárias, tudo é politica).

Uma coisa era certa desde o início, Deus Nosso Senhor teria de cá vir porque não se fazem coligações sem ovos. Mas primeiro há que dar lugar aos profetas porque «se já se gastou o dinheiro com eles temos que lhes dar alguma coisa para fazer» avisou Lineu, que era bom Anjo mas sofria de espandilose e era alérgico a pistachio.