Ela pediu-lhe para ele descrever uma cena com os dois de mão dada a ver o luar. Ele ficou relutante pois sentia que perdera momentaneamente o jeito para escrever com as emoções ao colo. Afinal de contas ele não era um escritor, um escritor tem de saber escrever em qualquer circunstância, tal como um canalizador tem de saber desentupir um cano mesmo que a mulher lhe tenha posto os cornos. Mas ele sentiu-se desafiado, qualquer coisa lhe mexeu no cordelinho da lírica competitiva e pôs a imaginação e as letras ao caminho. Pensou nos dois com as caras encostadas, entre o encosto suave do acaso e a tangente do desejo, primeiro a tentarem distinguir a tabela periódica dos cheiros e depois, já com um cheiro comum bem constituído, a avançarem para a Corte do céu. Dá muito trabalho construir um cheiro comum mas depois ele faz muito milagre por conta própria. Um céu estrelado a dois é uma moeda seguríssima, quem a possui pode considerá-la uma recordação de refúgio. Ele, entretanto, na história, segredara-lhe de repente qualquer coisa, poderia ser um simples amo-te tanto, ou um quero-te muito, ele gostava mais dos tantos do que dos muitos, ela impingira-lhe o clássico medo aos sempres, mas acabavam fatalmente naquele riso gramatical, nem a lua, em qualquer fase que fosse, lhes impedia de brincar com as palavras, tinham-lhes perdido o medo depois dum primeiro adeus mal parido e dum regresso bem sofrido. Na história já se beijavam, mas ainda os parágrafos se conheciam pelos nomes já ela o afastara por duas vezes porque queria ver melhor as estrelas, e ele já reclamara da sua curiosidade astronómica pois nenhum homem nasceu para ser acólito de telescópio, nem para ter que concorrer com uma lua armada em disco voador. Sob as estrelas o homem sabe que é o sexo fraco, prefere as grutas desde que não tragam nenhuma alegoria filosófica de brinde ou fava. Quando deram o primeiro beijo prolongado já a ursa maior parecia ter apanhado um jeito nas costas de tanto esperar. Quando o musgo recebeu o primeiro rolar de dorsos já se gemiam palavras sem significado definido, apenas decifradas por aquele desmontador de códigos que são dois lábios húmidos organizados em flor. Quando na história ele lhe mordeu um local sem designação científica autónoma, ela - feita critica literária - disse que o romantismo estava a ir pela ravina, ele corrigiu a passagem e pôs-lhe um novelo de falangetas por uma zona que não via planetas há bastantes anos, então ela sorriu, com um sorriso aberto, um sorriso de constelação, e umas pupilas em rotação, mas agora já não consigo distinguir se foi na história, se foi na imaginação, ou se foi mesmo uma manobra da sua mão.
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2 comentários:
Solicita-me a Drª Girassol, aqui ao lado de mantinha posta e gato ao colo, que lhe agradeça o encantamento induzido pelo lirismo pós-modernista implícito neste conto crepuscular, antes apenas ao alcance de varinha d'encantar como a do seu, dela, vetusto Félix.
Já no que ao explícito concerne, inquire a sua clássica leitora se a referência a curiosidade "astronómica" não terá sido uma gralha de "anatómica", motivada quiçá pela notícia da atracção de uma nuvem de gás pelo Sgr A, o tal buraco negro no centro da galáxia.
ehehe, percebo o apelo da gralha, mas de facto todo o conto estava embuído dum espirito astronómico, ao qual, reconheço, o anatómico também não era alheio, quanto mais não seja pela universalidade das leis da atracção :)
Registo ainda, com agrado, um girassol mais saído da casca!
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