Ventris Tractatus

Tratado de Pançalogia

Na Inglaterra do entre guerras Colin Flissburg tornou-se conhecido pelas suas curiosas teorias de abordagem ao binómio corpo-personalidade. Não eram umas teorias quaisquer, mas não passaram à posteridade. Talvez alguma excentricidade não ajudasse, talvez a pouca clientela da altura não ajudasse, talvez a falta de sensibilidade aos temas não ajudasse, talvez os tempos em geral não o tivessem ajudado.

Seria uma pena que nos dias de hoje, ao ter acesso privilegiado a elas, eu não as recuperasse, tal a sua actualidade e tal o carácter simultaneamente revolucionário e prático que elas encerram.

Colin era um dependente das então famosas 'opalines' de Convent Garden, uns biscoitos deliciosos com sabor a alecrim com mostarda que tinham a peculiar propriedade de deixar criteriosamente colocados resíduos lípico-decorativos na zona abdominal. Colin decidiu então passar a observar barrigas, a classificá-las, e a estabelecer correlações com os comportamentos daqueles que as envergavam, quase em concorrência aberta com as correntes frenológicas, praticamente inaugurando a moderna ventriosulogia. Foram anos de pesquisa discreta, mas meticulosa, pelas esquinas, pelos jardins, pelos vendedores de atacadores, pelas plateias dos espectáculos, pelos bancos, pelos armazéns, pelos bordéis, por todo o lado.

Felizmente Mr. Flissburg deixou-nos o esboço do que hoje podemos chamar um autêntico tratado de ventrologia, no qual, muito mais do que a simples caracterização dos megatipos de panças, é dado um passo extraordinário na compreensão daquilo que é um património do masculino, daquilo que a genética pode e soube oferecer ao homem como compensação da dieta rigorosa a que foi obrigado desde os dislates e as ingenuidades de adão.

Em primeiro lugar deve registar-se que Colin conseguiu um feito notável ao sintetizar em 6 ventrótipos os perfis master de toda a pança masculina e sem necessitar de fazer qualquer citação de Oscar Wilde. Não deixa de ser curioso notar que não só se tratou duma tarefa de regularização geométrica em ruptura pós euclidiana - todos os tipos de perfil de ventre são de centro variável - como significou, e continuará a significar, para a grande maioria dos homens uma espécie de consolo por verificarem fazer parte duma grande e bem definida família de proeminências abdominais.

O primeiro grande tipo de perfil de ventre (vide fig.1) é aquele que Colin F. denominou de 'Pança Lunar'. O formato de quarto minguante ou crescente consoante os hemisférios vem geralmente associado a personalidades de alta previsibilidade, ciclotípicas, e que gostam, retiram evidente prazer de exibir a sua barriga. Pela sua forma equilibrada e de cariz elíptico, ajuda a construir comportamentos serenos se bem que com tendência para a vaidade e algum exibicionismo, aquilo que Evelyn Waugh haveria de apelidar em Vile Bodies: 'chic vitoriano tardio'.

A 'pança lunar' é muitas vezes confundida com a 'pança vírgula' (vide fig. 2), no entanto não poderiam ser mais diferentes. A 'pança virgula' é uma pança de transição, ou seja, está-se na pança vírgula em fases de interrogação interior (se repararmos é uma pança que também lembra um sinal de interrogação ao contrário) onde o umbigo se apresenta como um elemento essencial de todo o nosso sistema psicossomático e que, por isso, deverá estar sempre ao alcance visual. Geralmente associa-se este perfil ventral à chamada barriga de cerveja, o que é bastante injusto para a cerveja, aliás Colin F. quando se referia a este ventrótipo dizia eloquentemente: The Beer or not The Beer is not the question.

Uma das mais deliciosas descobertas de Colins foi quando atribuiu à 'pança-maminha' (vide fig.3) um estatuto que ninguém suspeitava. Este tipo de pança (que nalguns meios menos académicos assumiu o nome de 'pança pochete') começou a adquirir relevância científica quando se provou que a existência duma terceira via para a clássica mama peitoral dava um suplemento de auto-confiança ao homem, que se via assim também dotado dum elemento de sensualidade adicional. Há que distinguir este tipo do vulgar 'pneu', pois este na realidade não se enquadra na tipologia criada pelo prof. Colin Flissburg e nada mais é do que um fenómeno de inestética concentração de gordura em formato tubular e circundante. Ora a 'pança maminha' é um produto da mais elaborada produção antropológica e remonta às tribos do sul do paraguai quando estas descobriram que a maminha ventral atraia as representantes do sexo feminino ( em antropolês 'gaja' diz-se 'representante do sexo feminino') com os rabos (neste termo o antropolês não é esquisito) mais bem desenhados.

Mas nada mesmo faria crer que um quarto tipo de panças (vide fig.4) tivesse tão a ver com essa dinâmica das duplas panças, trata-se daquilo a que Colin chamou 'pança-três'. Talvez para evitar terminologias tipo dupla-pança, que atrairiam inevitavelmente comentários jocosos, estabeleceu uma nomenclatura mais discreta; mesmo assim não conseguiu evitar que nos meios mais críticos da ventriosulogia se estabelecesse uma piada dizendo tratar-se dum tipo de panças adequado às posições ímpares do kamasutra. Indiferente a esta falta de respeito, Colin foi muito claro na caracterização deste tipo: A 'pança-três' corresponde a um comportamento de perfil abdominal de indivíduos que se destacam por uma atitude compreensiva do mundo. Gostam que haja uma separação clara entre o bem e o mal (daí a clara distinção entre a parte de cima e a parte de baixo, não existente de forma tão flagrante em mais nenhum tipo) mas tendem a considerar que são ambos faces de uma mesma moeda. Não raro estes ventrótipos tendem a evoluir para a 'pança-lunar' pois, como sabemos, a natureza tem tendência para a promiscuidade e a miscigenação (neste caso, misciventriculação).

O tipo morfológico que causou mais controversa em toda a teoria foi indiscutivelmente a 'pança-colinho' e talvez tenha sido a grande responsável pelo seu relativo ostracismo. Ao principio pensou-se que Colins apenas quereria incluir um ventrótipo que sublimasse no homem o fenómeno da gravidez. (Como se sabe as teorias em torno dos formatos das barrigas de grávidas são muito mais antigas, remontam ao tempo em que a mãe de Nabucodonosor apareceu com uma barriga com o feitio duma caracoleta de Silves) Mas não. O prof. Flissburg foi bastante claro nas suas asserções: a 'pança colinho' (vide fig. 5) é, como a própria designação o indica, um fenómeno de paunch line que revela altas carências afectivas no homem que a apresenta. Quem desenvolve uma 'pança colinho' acaba por transferir para esse seu componente anatómico prerrogativas emocionais que mais nenhum elemento do corpo consegue, incluindo aquele que os estimados leitores estão a pensar. Colins chegou a referir um caso (ele era muito austero no que dizia respeito à apresentação de exemplos concretos) em que o cocuruto da barriguinha-colo ('paunchy-paunchy' era o termo que ele usava carinhosamente) se autonomizou e ganhou quase que uma identidade dentro doutra identidade, também conhecido no léxico técnico, numa aproximação freudiana, como a 'pança de transferência'.

Finalmente, o ultimo tipo de perfil abdominal tipo apresentado pelo prof. Flissburg ficou para a posteridade conhecido como a 'pança-tijolo'. Este ventrótipo (vide fig.6) com semelhanças óbvias ao produto rei da alvenaria, revela pessoas que são autênticas paredes emocionais. A barriga assume assim quase que uma indicação explícita dessa barreira e muitas vezes funciona como ponto de partida para amizades sinceras: dali não sai nem uma corrente de ar. Este mecanismo de pança-como-mensagem é muito importante em todos os estudos de Colin, e ele chega a dizer que haverá certamente uma zona do cérebro que dá indicações explicitas para que a arquitectura abdominal se desenvolva duma forma ou de outra.

Concluindo desde já, para mim, o que é mais importante a reter das teorias ventriusológicas de Colin Flissburg é que o perfil abdominal masculino não pode ser o parente pobre da psicosomatomorfologia, e que não se trata tanto do homem ter orgulho da sua barriga, que tão mal tratada tem sido pelos últimos suores da moda e do cardiofundamentalismo, mas sim da possibilidade de olhar para ela com o mesmo respeito como olha para um cérebro dissecado pelo antónio damásio ou para o rabo da jeniffer lopez; acho que ainda tem.

Sem comentários: