‘A vida não é argumento’ [6/9]

Uma das minhas falsificações mais bem sucedidas, e de desfecho curioso, coincidiu com uma experiência na literatura apologética. O falsificador é também um produto das circunstâncias, e deve saber ler as tendências, e a economia, do seu tempo: por exemplo, há momentos em que nos devemos perguntar: para quê desgastarmo-nos num Shakespeare quando nos podemos safar perfeitamente com um Pirandello? Mas noutros devemos questionar: porquê desperdiçarmos tempo com um Molière se podemos avançar directamente para um Mário Crespo?
Quando me ocorreu falsificar um sermão do padre António Vieira sentia que não corria apenas atrás do meu prestígio, ou do dinheiro, mas sim atrás também duma purificação da alma. Como tema escolhi a relação entre a parábola do semeador e a plantação da cana-de-açúcar. Tentaria nesse sermão o célebre missionário jesuíta mostrar que a boa terra era aquela em que nascia a doce cana e não a terra saloia onde apenas medravam cebolas e agriões. O novo povo eleito era assim o do índio brasileiro, o Amazonas seria o novo Jordão, ou o novo Eufrates, o Português faria de bom samaritano, e o Espanhol seria uma das pragas. Um exemplar do sermão foi mostrado em primeira mão simultaneamente a um alfarrabista na rua da Misericórdia, e a um jornalista da rede Globo no Brasil. Pela primeira vez eu estava a utilizar um esquema de leilão e punha em confronto o amor à literatura e o amor à audiência.
Ora a questão da autenticidade não interessou minimamente ao jornalista, mas este acabou por se deleitar com a história que eu tinha preparada para explicar a minha posse da edição do, que viria a ser chamado, ‘Sermão da Cana’: o meu tio avô, meio bandeirante-meio missionário, tinha-se apaixonado por uma índia chamada Júlia, e fruto dessa paixão consumada no canavial nasceu um rapazinho que se tornou protegido do missionário português, tendo este acabado por lhe oferecer como presente da primeira comunhão o dito sermão. Eu, descendente dessa noite tão étnica quanto ecuménica, acabaria por ter ficado com a literária preciosidade devido a uma sucessão de felizes acasos, e só fora agora descoberto porque a minha irmã tinha utilizado algumas páginas para uma receita de torta de cenoura. Enquanto isto, o alfarrabista lisboeta corria meia cidade em busca de provas de autenticidade, e recebia como resposta consternação, admiração e algum nervosismo, tal o carácter levemente heterodoxo do texto vieirino, se bem que de inquestionável e genuíno valor apologético. Vendi assim os direitos da história (inventada) da índia Júlia e do meu tio-avô à TV Globo (que não se interessou pelo sermão) e vendi a obra do padre Antº Vieira a um contacto do citado alfarrabista, um milionário excêntrico e piedoso que coleccionava desenhos eróticos, que afirmava serem de Pascal e Montaigne. Foi dos meus trabalhos mais bem sucedidos em termos financeiros que, assim, me enriqueceu em vários sentidos. Com o seu rendimento acabei por passar seis meses no Recife, e não posso jurar que a linhagem do meu tio-avô não tenha ganho continuidade na terra da cana prometida. Um falsificador profissional tem sempre uma certa nostalgia das falsificações onde foi feliz.

2 comentários:

Anónimo disse...

Os meus parabéns por mais esta série! Almoçar de borla parecia-me bom mas ter acesso à gesta de um falsificador é daquelas situações em que o interesse sobe (vá-se lá saber o que desce em contrapeso...).

C.

aj disse...

obrigado; folgo por mantê-la interessada. Mesmo em contrapeso.