É tudo uma questão de método. E duma insónia das boas, claro.

Depois de ver meio mundo rendido ao método George (que estará certamente para a crítica literária como o método Milton está para a esterilização de biberons) vejo-me compulsivamente levado a testá-lo face a um dos monumentos mais significantes do nosso património literário que é a lírica camoniana na sua versão sonetada, tanto mais que também o vejo arredado - tal como a até há pouco tempo injustiçada MRPinto – da corrente crítica literária ( senão vejamos há quanto tempo o mil folhas não faz a recensão dum soneto de Camões; meu Deus, nem o Abrupto)
Quero antes de tudo dizer que abracei este projecto com o coração limpo de quaisquer preconceitos e, diria mesmo, prenhe do afã de me encontrar com a verdadeira literatura, com a verdadeira força do génio. E foi assim que ataquei a caderneta dos sonetos tomado duma força quasi obsessiva que me fez ferozmente sublinhar, riscar, dobrar cantinhos, desenhar simbolos fálicos, marcar com pastilha elástica, flagelar, sentar-me em cima do livro com determinadas páginas abertas, deitar borras de café, enfim, tudo fiz para que nada me escapasse, e para que este texto não caísse na venalidade da displicência ou na capitalidade da preguiça, e pudesse mesmo, face ao líquido literaturino que o envolvia, tornar-se uma nova achega na senda do cânone do post literário perfeito.
Entre as várias hipóteses possíveis acabei por me decidir pelo texto camoniano fixado numa edição baratucha dos Sonetos da Europa-América (que por sinal apresentava uma dedicatória do ano de 1988, e que se não me chegasse a envergonhar de a transcrever aqui, pelo menos passaria a ter de tingir a carinha de preto sempre que saísse à rua) aliás, descobri mesmo que devo ter sonetos do camões para a troca suficientes para fazer alimentar aí umas duzentas campanhas eleitorais, ou casamentos de sto António, ou para patrocinar trezentos dias dos namorados ( swatch incluído)

Adiante.

Não será cá mão que me trema, nem Camões que me inibam, nem cá dedos que me fraquejem nesta tarefa.

(esta duas frases anteriores ao serem apresentadas de forma isolada enquadram-se numa lógica de aproximação ao paradigma minimalista)

Mas quero avisar também que "o texto que se segue é embaraçoso para o escritor e penoso para os leitores em geral"; Camões nos seus sonetos repete-se que nem um pivot da continuidade, apropria-se descaradamente de terminologia e mitologia clássica, tem óbvios deslizes de ortografia, despreza o livro de estilo do Público, e abusa daquela coisa de terminar as frases com o mesmo fonema, (alguns chamam rima a isto) retirando a credibilidade aos temas e vendendo-se assim por duas patacas ao efeito comercial fácil. A estereotipação da experiência amorosa é flagrante e o estilo é absolutamente repetitivo e monótono. O fenómeno Camões até me era simpático, pensava até que já me tinha ajudado a engatar uma miúda assim ali para os lados da Rua Santana à Lapa defronte a uma papelaria, mas agora confirmo que deve ter sido mesmo a força do meu beijar ardente que conduziu a tamanho arrebatamento já ali no cruzamento da Buenos Aires.

O «tema nuclear» de Camões é : ele há uma gaja, e ele há ele. E depois é choro, tormento, pouco pau de louro e ainda menos de fermento. Sexo nada, divórcios nada, partilhas de bens nada, sogras nada, putos aos berros nada, Mercedes com louras lá dentro, nada: este gajo não existiu, ou então viveu com a vista vendada.

Os vícios da escrita de Camões são mais que às mães e eu infelizmente não consegui os patrocínios para me poder aqui esplanar ao comprido devidamente ( a multiópticas roeu a corda à última hora e resolveu dar o patrocínio das armações o ‘tico e o teco’ a alguns blogs de actualidade política que fazem pandan uns com os outros) e por isso tive de ser bastante mais selectivo.

A prisão da rima é a primeira imagem que me salta imediatamente à vista. Por exemplo a terminação ‘mento’ é utilizada de forma quase exclusivamente enfadonha com o vocábulo ‘pensamento’ o que, apesar de ter um significado mais amplo na época, é duma pirronice sem limites. E das poucas vezes que falha, ou entra ao serviço o vocábulo ‘tormento’ ou, em casos mais desesperados o próprio ‘vento’ mais ou menos metaforicamente trabalhado. Escandalosamente pastosa é mesmo a repetição na utilização simultânea de ‘pensamento’ e ‘tormento’ , senão vejamos : «e gosto de um suave pensamento/ (…) escureceu-me o engenho co tormento» (soneto nº1) , «que mor glória na vida se oferece/ que ocupar-se em vós o pensamento?/toda a pena cruel, todo o tormento,/ em ver-vos, se não sente, mas esquece« (soneto nº6), «Onde mereci eu tal pensamento / (…) em glória se converte o meu tormento» (soneto nº10) , «ditosa aquela flama, que se atreve / apagar seus ardores e tormentos/(…) que queima corações e pensamentos» ( soneto nº50) , «chamam-lhe amor; mas eu lhe chamaria / discórdia e sem razão, guerra e tormento./ Enganou-se coo nome o pensamento» ( soneto nº56), «que pena pode ser tão certa e dura/que possa ser maior que meu tormento?/ ou como receará meu pensamento/ os males, se com eles mais se apura?» (soneto nº 58) e isto agora nunca mais acabava pois repete-se no nº66, nº 86, nº 96, nº 98, nº 138 e por aí afora que isto nem a escadaria do Bom Jesus. Mas alguma coisa poderia Camões ter em mente, algo de essencial relacionado com a alma humana poderia ele ter descoberto nalguma salada de orégãos enquanto lia o Petrarca. Há gajos assim. E alguns até com as quotas do Sporting em dia.

Seguimos imbuídos do método george-milton, “dir-me-ão que todos os escritores têm as suas obsessões. É verdade. Mas que dizer a isto” : «Eu cantarei de amor tão docemente» ( soneto nº2) , «Eu cantei já, e agora vou chorando» (soneto nº130) , «Cantava, mas já era ao som de ferros » ( no mesmo soneto nº 130), « Com grandes esperanças já cantei /(…) depois vim a chorar porque cantara» (soneto nº 167) e como se não bastasse « Suspiros inflamados, que cantais a tristeza com que eu vivi tão ledo;» ( soneto nº 55 ) onde a coisa já fica de tal forma, que sinceramente mais vale um gajo meter mesmo os papéis para a baixa e passar os dias a discutir as análises da próstata. A lírica camoniana desconhecia claramente o fenómeno da drenagem ( linfática ou outras) e os problemas de infecções que se podem dar no saco lacrimal.

Quando Camões “pensa nas relações homem/mulher” ( eu teria usado mais pudicamente o travessão, mas o método george-milton utilizou o traço oblíquo – querendo induzir talvez que o homem está por cima - e eu quero manter-me fiel a esta ortodoxia) utiliza uma fraseologia quase típica dos amores cromagnoneanos, género «pintada em mim se vê vossa figura» (soneto nº27) , «mas é tão doce vossa formosura/que fico hidrópico doente» (soneto nº27) ( foi mesmo este o grande momento de glória na história da literatura para a palavra ‘hidrópico’ ) , «nem por malícia de ar seja extinta/ a cor, que está teu fruto debuxando» (soneto nº 60) ( onde aparenta que o poeta não gostava de ver mãe e filha a rirem-se uma da outra, numa clara manifestação de pré-marialvismo encapotado) , e para não carregar demasiado este capítulo deixo-vos só esta nota: « Mas este puro afeito em mim se dana;/ que, como a grave pedra tem por arte / o centro desejar da Natureza, / assim o pensamento (pela parte / que vai tomar de mim, terrestre, humana ) /foi, Senhora, pedir esta baixeza» (soneto nº63) que traz a nu a tal ‘nuvem de testosterona’ que tão bem descortina o método george nos personagens de MRP e que aqui Camões é também incapaz de disfarçar face à sua vertigem erótico-abísmico-gravitacional.

E depois, claro, há esta “acumulação infindável” que o método george-milton-esplanar nunca deixa passar fora do seu barómetro particular: «por mostrar quem busca defensão/ contra esses belos olhos, que se engana» (soneto nº7) , «Quem vê, Senhora, claro e manifesto / o lindo ser de vossos olhos belos» ( soneto nº9) , « podem pôr medo a quem nenhum encerra,/ depois que viu os olhos tão formosos» ( soneto nº 12) , «vossos olhos, Senhora, que competem/ coo Sol em formosura e claridade» (soneto nº15) , «Olhos formosos, em quem quis Natura/ mostrar do seu poder altos sinais« (soneto nº 27), e então aqui é que a lírica oftalmológica nunca mais termina, mas eu não queria deixar de realçar um fenómeno caricato que consiste na dificuldade de Camões em pôr 'olhos' a rimar com qualquer coisa que seja de jeito que não este desengonçado do soneto nº29 «perderão toda a graça vossos olhos/ porque pouco aproveita, linda Dama, /que semeasse Amor em vós amores,/ se vossa condição abrolhos»; ora ‘abrolhos’, Santo Deus, Santo Cristo Cruxificado acrescentaria mesmo! Eu evitaria talvez a ambiguidade da palavra ‘folhos’, mas bolas, até a música popular arranja uns ‘alecrins aos molhos’, até a Simone d´Oliveira havia de arranjar maneira de cantar outra rima com dignidade ( por acaso no soneto nº 66 Camões põe aquilo em rimar com tudo: ele é olhos, abrolhos, molhos, antolhos, faltou piolhos mas no fundo também é preciso deixar espaço para os poetas mais recentes poderem brilhar)

Em relação ao chamado, na técnica george, “efeito de realidade” Camões usa o já estafado registo de ‘nada se passa em sítio conhecido’, aproveitando o efeito estético fácil do nenhures! Não há um restaurante, não há uma retrosaria, não há uma festa da Caras, não há um bar de alterne, não há um esquema num parque de estacionamento, apenas disto: «quando bela vista e doce riso/tomando estão meus olhos mantimento» (soneto nº2) , ou « Vivo, Senhora, só de contemplar-vos; e, pois esta alma tenho tão rendida» (soneto nº10) , ou «Se me pergunta alguém porque assim ando, /respondo que não sei; porém suspeito/ que só porque vos vi, minha senhora» (soneto nº25), e então esta: « Lindo e sutil trançado, que ficaste /em penhor do remédio que mereço, se só contigo, vendo-te, endoudeço, /que fora cos cabelos que apertaste» (soneto nº44) … mas isto passa-se aonde, caralho!!! Nem a indicação dum centro comercial, nem uma pista com o nome dum cabeleireiro, nada, isto é da maior futilidade atopográfica que se pode conceber. E, claro, “isto são apenas alguns exemplos, escolhidos criteriosamente para não cansar o leitor”, seguindo fielmente a ortodoxia do método george-milton.

“Por qualquer lado que se pegue nestes sonetos, o mais certo é tropeçarmos em expressões como”: «o fogo que na branda cera ardia/ vendo o rosto gentil que eu n’alma vejo» (soneto 50), no entanto, como as caixas de kompensan devem ter ficado encharcadas lá prós lados do rio Mecon, o rapaz toca de fertilizar o faduncho e atira-nos sucessivos « bem sei que neste estado nada vale,/ que, quem nasceu chorando, justo é/ que pague com chorar o que perdeu» (soneto 136) ou « na vida desamor somente vi, na morte a grande dor me ficou: parece que para isto só nasci» (soneto 153) e caminhando para Bingo: «Assim que nada perde quem perdida/ a esperança traz de sua glória, se esta vida há-de ser sempre em tormento» no soneto 156, o que demonstrou um saudável estado de espírito e um grande testemunho para deixar às sucessivas gerações de portugueses ( Jorge Coelho excluído)

“Podia falar disto e de muito mais, os exemplos queimam-me as mãos” (esta nota anatómica de carácter místico-estigmático é marca d’água do método georgiano) no entanto “desisto, desisto de Camões, mas ainda assim dou-lhe um conselho, dê-se muito feliz pela indiferença com que o método george até hoje o tem tratado”. E eu até teria publicado isto em fascículos, mas a insónia foi das grandes, e os gajos do Planeta Agostini, é o costume, à última hora decidiram-se por uma colecção de bonecas de cristal da Boémia vestidas pela Fátima Lopes.

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