Só me apetece escrever textos de despedida
Se Deus por acaso quisesse fazer isto outra vez de novo e me pedisse a opinião, eu dizia-lhe. Ai dizia, dizia. Para já, àquela não a fazia sair duma costela, é logo algo que sai um pouco de esguelha, fica condicionada a simbologia, fica prejudicada a genealogia, acho que foi mal pensado, teria antes escolhido uma tíbia ou uma falangeta, e viu-se, deu logo azar com o Caím e com o Abel, e depois foi por aí fora; e pelo menos teria feito uma pausa com aquilo que aconteceu com o Abraão, era muito tribo, era muita confusão, demasiado deserto, demasiadas tendas, demasiado borrego assado, eu cá essa cegada teria saltado, e depois de ver os etruscos e os egípcios com tanto figurão, e tanta figurinha, e tanto enchumaço, nãnã, eu não teria avançado tão rápido, eu teria pensado melhor, teria mesmo repensado, e ter-me-ia certamente assustado com aqueles gregos todos a trabalhar em seco, borrifando-se para a saída e borrifando-se para o beco, aí teria feito umas substituições, reforçava outra vez defesa, e não deixava os romanos perderem a cabeça.
Ai eu dizia-lhe: abusaste daquela coisa do livre arbítrio, devias ter ponderado melhor, deixavas o pessoal mais controlado, a ter de ir prestando contas formalmente aos poucos, ter-se-ia evitado algum escrúpulo medieval, e ter-se-ia evitado alguma escolástica retorcida disfarçada de aristotelismo. E teria posto a mão no Agostinho. Era muita metáfora e já teriam bastado aquelas que tinhas permitido ao Platão. Teria dado mesmo uns saltos valentes na história, desvalorizava os renascimentos e acarinhava os maneirismos, punha a reforma e a contra-reforma a jogarem às palavras cruzadas, no limite tê-los-ia levado a passar uns dias com umas tribos da amazónia para que perdessem todos as peneiras, e esquecessem as boas maneiras, faziam as fogueiras mas dançavam; e aos filósofos que fossem aparecendo teria feito com que alimentassem bem, de barriga cheia talvez gerissem a azia de maneira diferente.
Mas não me ficaria por aqui, se Ele queria realmente a minha opinião, eu iria falar até ao fim. Ali por alturas da tal revolução industrial eu organizaria então um intervalo, com umas bandas animadas e uma petiscada, vá lá. Chamava o Marx, trazia à liça os tipos da tomada da Bastilha, juntava-lhe uns americanos entusiasmados com o federalismo e uns chinocas desconfiados– ainda não faziam tshirts - e dava-lhes meia hora para se entenderem, com decisões rápidas: havia classes exploradoras e exploráveis ou não havia, havia propriedade privada ou não havia, a paz era um valor a tender para absoluto ou não, a sociedade de informação quando aparecesse seria de dar esse pelouro apenas aos anjos ou não, a admissibilidade do sexo livre e por aí adiante, assim tipo um caderno de encargos para resolver mas sem dinheiros por fora. Alguma táctica haveria de sair, a espécie está destinada a desenrascar-se, só precisa que lhe dêem um oportunidade e que lhe saibam reconhecer os méritos e sejam compreensivos com os fracassos senão, como já tinha dito o Shakespeare em plena pose inspirada em Hamlet: nunca haverá chicotes que cheguem. Teríamos sido poupados ao existencialismo, a psicanálise ter-se-ia conformado apenas com o seu estatuto de método, Kafka teria sido sócio de Tintin, Gorbachov montaria uma loja de perucas na praça vermelha e Mandela venderia camisas às riscas Ralph Lauren. Os judeus dedicar-se-iam apenas à música clássica e Hitler organizaria acções de formação em condutas de gás natural para a Galp.
Eu cá, no fundo, não teria era dado tanta rédea solta à rapaziada logo que se viu que começavam a pintar as paredes nas grutas, e assim eu até escusaria de estar sempre a ser chamado à escola do meu filho mais novo porque o sacana já lixou mais de metade das paredes da sala dele e o Soares escusava de acabar os seus dias políticos a fazer de Manuel João Vieira mas ainda mais gordo e com menos cabelo. Que Deus o perdoe e a nós no alivie do ar rupestre que isto pode tomar.
Se Deus por acaso quisesse fazer isto outra vez de novo e me pedisse a opinião, eu dizia-lhe. Ai dizia, dizia. Para já, àquela não a fazia sair duma costela, é logo algo que sai um pouco de esguelha, fica condicionada a simbologia, fica prejudicada a genealogia, acho que foi mal pensado, teria antes escolhido uma tíbia ou uma falangeta, e viu-se, deu logo azar com o Caím e com o Abel, e depois foi por aí fora; e pelo menos teria feito uma pausa com aquilo que aconteceu com o Abraão, era muito tribo, era muita confusão, demasiado deserto, demasiadas tendas, demasiado borrego assado, eu cá essa cegada teria saltado, e depois de ver os etruscos e os egípcios com tanto figurão, e tanta figurinha, e tanto enchumaço, nãnã, eu não teria avançado tão rápido, eu teria pensado melhor, teria mesmo repensado, e ter-me-ia certamente assustado com aqueles gregos todos a trabalhar em seco, borrifando-se para a saída e borrifando-se para o beco, aí teria feito umas substituições, reforçava outra vez defesa, e não deixava os romanos perderem a cabeça.
Ai eu dizia-lhe: abusaste daquela coisa do livre arbítrio, devias ter ponderado melhor, deixavas o pessoal mais controlado, a ter de ir prestando contas formalmente aos poucos, ter-se-ia evitado algum escrúpulo medieval, e ter-se-ia evitado alguma escolástica retorcida disfarçada de aristotelismo. E teria posto a mão no Agostinho. Era muita metáfora e já teriam bastado aquelas que tinhas permitido ao Platão. Teria dado mesmo uns saltos valentes na história, desvalorizava os renascimentos e acarinhava os maneirismos, punha a reforma e a contra-reforma a jogarem às palavras cruzadas, no limite tê-los-ia levado a passar uns dias com umas tribos da amazónia para que perdessem todos as peneiras, e esquecessem as boas maneiras, faziam as fogueiras mas dançavam; e aos filósofos que fossem aparecendo teria feito com que alimentassem bem, de barriga cheia talvez gerissem a azia de maneira diferente.
Mas não me ficaria por aqui, se Ele queria realmente a minha opinião, eu iria falar até ao fim. Ali por alturas da tal revolução industrial eu organizaria então um intervalo, com umas bandas animadas e uma petiscada, vá lá. Chamava o Marx, trazia à liça os tipos da tomada da Bastilha, juntava-lhe uns americanos entusiasmados com o federalismo e uns chinocas desconfiados– ainda não faziam tshirts - e dava-lhes meia hora para se entenderem, com decisões rápidas: havia classes exploradoras e exploráveis ou não havia, havia propriedade privada ou não havia, a paz era um valor a tender para absoluto ou não, a sociedade de informação quando aparecesse seria de dar esse pelouro apenas aos anjos ou não, a admissibilidade do sexo livre e por aí adiante, assim tipo um caderno de encargos para resolver mas sem dinheiros por fora. Alguma táctica haveria de sair, a espécie está destinada a desenrascar-se, só precisa que lhe dêem um oportunidade e que lhe saibam reconhecer os méritos e sejam compreensivos com os fracassos senão, como já tinha dito o Shakespeare em plena pose inspirada em Hamlet: nunca haverá chicotes que cheguem. Teríamos sido poupados ao existencialismo, a psicanálise ter-se-ia conformado apenas com o seu estatuto de método, Kafka teria sido sócio de Tintin, Gorbachov montaria uma loja de perucas na praça vermelha e Mandela venderia camisas às riscas Ralph Lauren. Os judeus dedicar-se-iam apenas à música clássica e Hitler organizaria acções de formação em condutas de gás natural para a Galp.
Eu cá, no fundo, não teria era dado tanta rédea solta à rapaziada logo que se viu que começavam a pintar as paredes nas grutas, e assim eu até escusaria de estar sempre a ser chamado à escola do meu filho mais novo porque o sacana já lixou mais de metade das paredes da sala dele e o Soares escusava de acabar os seus dias políticos a fazer de Manuel João Vieira mas ainda mais gordo e com menos cabelo. Que Deus o perdoe e a nós no alivie do ar rupestre que isto pode tomar.
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