no frost guruism
(ou colectânea expresso de insubstantivos advérbios de moda. ou pastéis de massa tenra com manteiga e banha)
"Que dias há que n’alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doi não sei porquê."
Que a blogosfera é um imenso 'intertexto' (antigamente chamava-se plágio à praga mas 'mudam-se os tempos, mudam-se as vontades' como lá dizia o rapaz d'outras eras) todos quantos por aqui andam o sabem e o refraseamento, acuradamente contextualizado de acordo com as regras do pós-modernismo, dá lugar a um moderno cânone: mudam-se os nomes, mudam-se os autores (se bem que não seja próprio dar nas vistas).
O canonizador moderno e autorizado, naturalmente apoiado numa das abundantes e multiparadigmáticas cátedras disponíveis no mercado selectivamente aberto da glorificação inter-pares, é a versão no frost da arca congeladora que era a censura à antiga: por redução lapidar decide quem, como, o quê e porquê dar a conhecer a um povo faminto de letras e inculto de clássicos.
Que os critérios apresentados sejam meros anacronismos travestidos de parâmetros científicos (é sempre uma inefável emoção ver a sanha com que o recurso à proto-cientifização que é a quantificação se constitui fundamento inútil e muleta despropositada) não é coisa que espante senão burgueses: uma boa parte do que hoje se tem como referência clássica não teve, ao tempo, senão a mesma ou menor estima que a literatura 'light' (soit disant - recupero propositadamente a classificação da 'inteligentzia' nacional) tem nos nossos dias.
O canonizador moderno leu Calvino (*) e esforça-se por demonstrar generosamente a sua abertura: crê que vale a pena ler o 'inominável' "porque é melhor conhecê-lo do que não o conhecer". E, generosamente, procura a luminosidade onde sabe de antemão não a haver. E tem consciência, nauseante e histaminizada embora, de haver quem seja tocado pelas palavras de modo diverso do seu. E constata, com indisfarçável amargura mas inegável respeito, serem diferentes os conceitos de 'amado' e 'amável'.
Não que o canonizador moderno ignore estarem os leitores menos avisados na posse de um quadro conceptual dotado dos instrumentos intelectuais (e/ou afectivos) susceptíveis de consubstanciar uma heurística competente. Pelo contrário, não duvida em momento algum do conhecimento e da capacidade hermenêutica do leitor comum cuja empatia (o primeiro e mais básico dos níveis de aproximação à leitura) ameaçadora com palavras, expressões e ideias vulgares o horroriza.
O canonizador moderno sabe tudo, leu tudo, sobre o efeito da paixão, da dôr, dos sargos escalados, dos daiquiris, dos motores do Cheyenne, das anémonas da vaza ou dos rododendros envasados. E sabe como deveriam, com propriedade e probidade, ser descritas essas realidades. Sabe mas não escreve. Não o faz para não incorrer na vergonha do cliché (vem-lhe à memória, como espuma, resíduos incompletos e inexactos da lírica de Camões, por exemplo), no estafado da teia emocional de Pessanha, no paralelepípedo húmido da não-urbanidade de Cesário ou no desassossego polimórfico de Pessoa, que o traíriam como o caminhar de uma tairoca no polimento do chão da Culturgest ou o estertor do ressonar entre os ouropéis aveludados do S. Carlos.
Mas o canonizador moderno revela-se na sua qualidade didáctica (pedagógica será, possivelmente, um termo mais adequado) ao organizar antologias ao abrigo de um genuíno interesse pelos interesses (e não pelo conhecimento) do público a quem fornece uma adequada, e regra geral veementemente enquadrada, aproximação à 'sua' literatura. Muitas vezes a menos da distância de um dedo ao erro e ao obtuso e longe da distância exigível a uma atitude crítica. Perdoado, talvez, nas suas estratégias de leitura, pela complacência com que se revê em palavras como estas: "mas porque deverei preocupar-me quando há setas no ar, formadas pela antiga arte dos amantes, que vão direitas ao meu coração' (**)?
Nota de rodapé: este é um texto ficcional e, como mandam os cânones, repleto de intertextualidades. Da violação me acuso em (*) Calvino, I. (1994). Porquê Ler os Clássicos? Lisboa: Teorema e em (**) Sting (1987). «Straight to My Heart», in Nothing Like the Sun. Los Angeles: A&M Records.
(ou colectânea expresso de insubstantivos advérbios de moda. ou pastéis de massa tenra com manteiga e banha)
"Que dias há que n’alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e doi não sei porquê."
Que a blogosfera é um imenso 'intertexto' (antigamente chamava-se plágio à praga mas 'mudam-se os tempos, mudam-se as vontades' como lá dizia o rapaz d'outras eras) todos quantos por aqui andam o sabem e o refraseamento, acuradamente contextualizado de acordo com as regras do pós-modernismo, dá lugar a um moderno cânone: mudam-se os nomes, mudam-se os autores (se bem que não seja próprio dar nas vistas).
O canonizador moderno e autorizado, naturalmente apoiado numa das abundantes e multiparadigmáticas cátedras disponíveis no mercado selectivamente aberto da glorificação inter-pares, é a versão no frost da arca congeladora que era a censura à antiga: por redução lapidar decide quem, como, o quê e porquê dar a conhecer a um povo faminto de letras e inculto de clássicos.
Que os critérios apresentados sejam meros anacronismos travestidos de parâmetros científicos (é sempre uma inefável emoção ver a sanha com que o recurso à proto-cientifização que é a quantificação se constitui fundamento inútil e muleta despropositada) não é coisa que espante senão burgueses: uma boa parte do que hoje se tem como referência clássica não teve, ao tempo, senão a mesma ou menor estima que a literatura 'light' (soit disant - recupero propositadamente a classificação da 'inteligentzia' nacional) tem nos nossos dias.
O canonizador moderno leu Calvino (*) e esforça-se por demonstrar generosamente a sua abertura: crê que vale a pena ler o 'inominável' "porque é melhor conhecê-lo do que não o conhecer". E, generosamente, procura a luminosidade onde sabe de antemão não a haver. E tem consciência, nauseante e histaminizada embora, de haver quem seja tocado pelas palavras de modo diverso do seu. E constata, com indisfarçável amargura mas inegável respeito, serem diferentes os conceitos de 'amado' e 'amável'.
Não que o canonizador moderno ignore estarem os leitores menos avisados na posse de um quadro conceptual dotado dos instrumentos intelectuais (e/ou afectivos) susceptíveis de consubstanciar uma heurística competente. Pelo contrário, não duvida em momento algum do conhecimento e da capacidade hermenêutica do leitor comum cuja empatia (o primeiro e mais básico dos níveis de aproximação à leitura) ameaçadora com palavras, expressões e ideias vulgares o horroriza.
O canonizador moderno sabe tudo, leu tudo, sobre o efeito da paixão, da dôr, dos sargos escalados, dos daiquiris, dos motores do Cheyenne, das anémonas da vaza ou dos rododendros envasados. E sabe como deveriam, com propriedade e probidade, ser descritas essas realidades. Sabe mas não escreve. Não o faz para não incorrer na vergonha do cliché (vem-lhe à memória, como espuma, resíduos incompletos e inexactos da lírica de Camões, por exemplo), no estafado da teia emocional de Pessanha, no paralelepípedo húmido da não-urbanidade de Cesário ou no desassossego polimórfico de Pessoa, que o traíriam como o caminhar de uma tairoca no polimento do chão da Culturgest ou o estertor do ressonar entre os ouropéis aveludados do S. Carlos.
Mas o canonizador moderno revela-se na sua qualidade didáctica (pedagógica será, possivelmente, um termo mais adequado) ao organizar antologias ao abrigo de um genuíno interesse pelos interesses (e não pelo conhecimento) do público a quem fornece uma adequada, e regra geral veementemente enquadrada, aproximação à 'sua' literatura. Muitas vezes a menos da distância de um dedo ao erro e ao obtuso e longe da distância exigível a uma atitude crítica. Perdoado, talvez, nas suas estratégias de leitura, pela complacência com que se revê em palavras como estas: "mas porque deverei preocupar-me quando há setas no ar, formadas pela antiga arte dos amantes, que vão direitas ao meu coração' (**)?
Nota de rodapé: este é um texto ficcional e, como mandam os cânones, repleto de intertextualidades. Da violação me acuso em (*) Calvino, I. (1994). Porquê Ler os Clássicos? Lisboa: Teorema e em (**) Sting (1987). «Straight to My Heart», in Nothing Like the Sun. Los Angeles: A&M Records.
Sem comentários:
Enviar um comentário