Contos do tipo que vivia no intervalo dos pingos



Ela às vezes dizia-lhe que tinha um medo incontrolável do mundo. Ele um dia pegou-lhe na mão e foi então mostrar-lhe o que era verdadeiramente o mundo; mas primeiro disse para ela fechar os olhos e deu-lhe um beijo no nariz que se franziu de surpresa e dalguma ansiedade, não fosse ele mais um aproveitador de carnes vivas, mas não era, ele apenas queria ter a certeza que ela não se ia perder nos odores da tristeza. A mão dela era rebelde, mas ele não se importava, iria segurá-la também com o olhar, de tal forma que às vezes nem a deixava respirar, mas o mundo para se ver bem, é um aviso ao leitor, temos de estar um bocadinho sufocados senão corremos o risco de apenas fazer de caixa d’ar , de máquina respiradora. A primeira coisa que ele lhe mostrou foram as formas, ele achava que as cores eram estragação, ela não, ela vivia perdida nas cores, ele então avisou-a «as cores são traiçoeiras, viram, as formas não: o mundo é mais redondo que azul, deixa de ser parvo e prova-me lá então que o mundo é bom, ah queres provas, e tudo sem deus claro, claro assim é que tens de mostrar o que vales, ele aí agarrou-a com força, o mundo sou eu, isto era um segredo que eu tinha bem guardado mas digo-to já, assim não vais lá, ninguém é o mundo, pois não, vejo então que estás preparada para o que eu te quero mostrar, primeiro mostro-te o que é falso: o céu, o céu é falso, não tem forma, mas as nuvens são verdadeiras, isto quer dizer que quando vês o mal isso é o mundo em forma de céu, a ameaçar cair, mas isso é ilusão, isso é a ‘não existência’ armada aos cucos, tens é de procurar as nuvens, e essas nunca caem, essas desvanecessem-se, chovem-se-nos ou nevam-se-nos ou sombram-se-nos» E ele nem falou de Deus, mas ele estava lá, no intervalo dos pingos, controlando-lhes a queda, controlando a refração da luz através deles, decantando o mundo para que outros o possam cantar. E ela devolveu-lhe o beijo, porque um beijo desses tem sempre uma volta na ponta.

Sem comentários: