Um conto para desviar o olhar das paredes





Tinham-se encontrado primeiro num sonho, que pena ele não dar grande valor aos sonhos, e por isso tinha-se desperdiçado uma ocasião das que não faz um ladrão. E ela até vinha com um ar matreiro, sacudindo franjas, desviando olhares, mas não conseguindo disfarçar um certo arrebatamento, fingindo distanciamento, não, ela não conseguia, era mais forte do que o peito lhe pedia, e o peito duma mulher é danado, porque não foi feito para esconder, merecias outro soutien dizia-lhe ele, algo que te segurasse mesmo, mas eu não sou desses, ele não era dos que queria – ou será “conseguia” - guardar as mulheres só para ele; elas ao princípio até gostavam disso, mas depois fugiam-lhe todas, definitivamente, por isso é que ele não acreditava nessa merda dos sonhos, elas aí sim andavam amestradas, nunca lhe faltavam; ele pediu-me para ver se eu podia dar a volta à coisa e eu decidi dar-lhe uma mão, este no fundo é um conto filantrópico, vou dar a mão a um amigo, ó menos aqui vais encontrar uma miúda que te queira, faz de conta que ela agora te sorria, não deves desperdiçar uma aberta nesses lábios, tens de arriscar, pede-lhe a mão, fica a olhar para ela, não, não lhe toques logo, tanta sofreguidão para quê, repara, ela não se vai embora, eu estou a controlar a coisa, não sejas brusco, essa mania de tratar mal as mulheres é só literária, não te deixes levar por essas tretas, faz-lhe mesmo uma festa, encosta-lhe a tua cara, borracha na borracha, não desperdices palavras, repara ela nem fala, ela é das que não perde tempo a falar para as paredes, as mulheres que escrevem nas paredes vivem com escritos no coração, só sobrevivem porque ainda há corações de aluguer, daqueles, sim, daqueles colados com cuspo que parecem de tabique, mas ela não é dessas, pois, eu não te ia arranjar uma dessas, confia, eu vou-te arranjar uma miúda, daquelas, das que não precisam de escrever à toa, das que fazem uma trança, ou duas, das que sopram na franja, das que arrebitam um nariz, das que te piscam um olho, das que deixam que lhes mexas no cabelo, e assim, será no meio dos teus dedos que deslizarão os seus segredos, para nunca se perderem na rugosa e palavrosa epiderme do betão, seja na foz, seja no bolhão.

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