Ora aqui está um post também muito indicado para crianças. E para outros espécimes em fase de consolidação de personalidade.

Ou do “deixei crescer em mim o meu inimigo” (*)


Tristes dos que precisam de dar exemplo para convencer, desconsolados dos que precisam do seu próprio exemplo para que lhes obedeçam, desafortunados dos que precisam do exemplo de alguém para descobrir o bem das suas vidinhas; não passam de meros peregrinos de ruínas, os que correm atrás duma figura exemplar. O “dar o exemplo” é mais uma prisão construída pelo moralismo atrofiado dos coitadinhos das convicções. Quando para levar alguém a fazer algo também temos de o fazer, é porque não passamos dum holograma de ética fluorescente. E pior, se para sermos respeitados também temos de prestar vassalagem ao tal de “dar o exemplo”, então esse respeito vale tanto como o riso do palhaço rico a olhar para as tropelias do palhaço pobre. Este tão afamado “dar o exemplo” foi uma invenção de última hora, com as calças a cair e já em passo atabalhoado, dos foragidos da liberdade, dos que precisam do seu próprio exemplo para se mostrarem necessários e de boa regra. Endeusar o exemplo é fazer da nossa natureza filha duma decalcomania em vez dum decálogo. A idolatria do exemplo pouco mais é que o caruncho a tomar conta das tábuas da lei, é adorar o primeiro que nos pode virar as costas abanando a cauda; o nosso coração, ou alma, ou vontade, ou espírito, ou o que der mais jeito e esteja mais à mão, jamais se devia deixar gravar pelo olhar-o-santo-do-alheio, pois fiquem sabendo que a maneira que a curiosidade arranjou para ter um lugarzinho esconso no Éden foi amancebar-se com o exemplo. (E agora tenho mesmo de terminar à pressa porque estou proibido por prescrição médica de fazer posts com mais de 25 linhas). Aconchegarmo-nos neste felino traiçoeiro, de pêlo atraente e vistoso, e de bom valor no mercado que é “darmos-o-exemplo”, será o mesmo que estar dormindo com o inimigo; e ainda para mais tem bigode.


(*) de Henri Michaux em “Da Escrita - a vida dúplice” , numa antologia ed. Fenda 1999, (a páginas tantas)

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