Treinos para o juízo final
ou a história duma bênção inteligente em dia de aniversário



Andava ali um menino, um bocadito sem eira nem beira, rogando uma bênção em cada esquina, fingindo ser um traquina, mas nada, até já tinha perdido a esperança, foi então que lhe veio à lembrança subir mesmo ao monte dos deuses, podia ser que ainda tivessem poucos fregueses e que lhe dessem alguma atenção, quem sabe até uma perene benzedura, porque não há fome que não dê em fartura. Só que à porta apareceu-lhe logo um figurão sem debilidades no artelho «Eu cá sou o Hermes, o que é desejas ó fedelho» e este ainda assarapantado com a inesperada recepção foi tomado pela confusão e soltou-se-lhe a língua qual desalmado cordel «mas tu tens quase nome de doença de pele, será que não tens onde te coçar?» e deixou o “porteiro” pronto a espumar «olha ignorante desbocado, eu por acaso até sou bastardo, mas deixa que te frise, arruíno-te ao próximo deslize» o menino tomou consciência de que não estava em posição de se armar em grande leão «prontos, prontos companheiro, eu só queria subir ligeiro e receber a bênção duma deusa, mas duma deusa em condições, não quero imitações» «ai vem com exigências o menino, e como julga que vai atrair as benesses duma deusa com essa verve tão presa e esse pensamento tão rasteiro» «pedir-te-ei que sejas o meu mensageiro» Hermes topou-lhe as tácticas e as mudanças de tons «ah! então agora acaricias o meus dons, bem... vou-te dar uma ajuda» o menino confirmava assim que toda a sorte um dia muda «E olha lá Hermes achas que tenho afinal de treinar alguma habilidade especial» «ora deixa-me cá ver, se eu conseguir convencer aquela deusa que tenho aqui em mente, talvez se declamasses assim de repente um poema do Kavafis...» «É pá isso é que não me peças! Eu arruíno a minha imagem se me meto numa coisa dessas!» Hermes começava a topar-lhe os seus débeis dotes «pois é filho, só qu’ isto aqui não é lugar para atrevidotes” Mas lá começaram os dois artolas a subir monte acima (agora com castanholas rimava bem mas as sevilhanas só apareceram uns anos depois) sempre com o menino a apalpar a paciência do seu protector «ó Hermes tu mesmo vestido com esse cobertor pareces-me um bocadinho apertadinho para os lados, quantas de mil é que pagaste ao Praxíteles para ficares com aquele aspecto baril e sem a tua pinta de aventesma» «tu manténs-te é na mesma, e ainda te arriscas a sair daqui sem bênção nenhuma e de mãos a abanar» o menino sentia agora que tinha de se acautelar e dos seus melhores dotes tratar de sacar «se me emprestasses a tua bela lira é que eu fazia aqui um figurão» Hermes ficou então tomado pela nostalgia, mas com os olhos vaidosos «dei-a ao Apolo num momento de remorsos» o menino sentiu como uma mola nova brecha para a piadola «sim tu quando eras puto eras danado para a brincadeira, gamaste-lhe as vacas e fingiste-te inocente como uma freira» mas agora Hermes até já começava a gostar destas chalaças à desgarrada e de tal forma confiava nos seus dons de manipulador que até olhava para o menino com um certo candor «olha, quero-te é avisar que esta deusa não é para brincar, detesta rendinhas e folhos, topa imitações num abrir e fechar d’olhos, não gosta muito de citações e não está para contemplações». O menino receava agora de verdade o momento do encontro com tal divindade, tinha até ouvido falar das cumplicidades de Hermes com Hades, e portanto não sabia se o mensageiro iria jogar com a ironia apresentando-o como uma alma ansiada ou como uma flor que nasce na estação errada, ou se iria forçar aquela outra imagem, duma alma sempre em viragem «estás expectante rapaz...não, não te levo como uma alma penada, doutra forma será apresentada» o menino suspirava, já nem lhe saia uma piada, o momento era terrível, seria tal deusa inacessível, seria a sua bênção uma miragem, mas que arrepio de viagem. Ouvia-se agora uma música ao longe «Ó Hermes, será a Maya a tua mãezinha a chamar-te prá canjinha?» Mas Hermes estava pensativo, será que aquele tolo rebarbativo mereceria tamanha benfeitoria ou ainda devia purgar mais a sua farta mania. «Olha menino com pinta de cordeirinho, eu sou um deus de origem pastoril, e afeiçoo-me ao meu rebanho, mas vergonha é coisa que não tenho e ainda te faço engolir esses badalos no intervalo dum par de estalos» O menino era parvo, ia sorrindo, sonhava que seria bem-vindo, mas ele nem se apercebia do tamanho da encosta que subia «ai credo mas que protector mais desagradável, parece que trazes a azia num frasco, leva-me lá a essa deusa que eu cá me desenrasco» «ai agora que estás quase a chegar é que menosprezas a minha influência e até o meu cuidado, pois olha a deusa que te falei é aquela ali de encarnado» o menino ficou sem fala perante tamanha visão, e porra que nem tinha o Kavafis à mão «falarei de Eros, falarei de Madonna, ela certamente não me dará com a esfregona» Hermes agora queria era gozar o prato «perceberão que não passas dum pechisbeque barato, mas serve-te de treino para o juízo final, abusa lá dessas tuas falinhas de manso e vais parecer um belíssimo tanso» «estou a notar-te despeitado ó Hermes, será que agora em pouca água ferves, ou será que também querias uma bênção destas e sempre te escondestes acobardado no meio das frestas e nunca tiveste coragem de te abalançares, olha põe os olhos no João Soares que até andou de braço ao peito» «ai se eu te apanho a jeito...» O menino sentia o seu companheiro desaustinado, e até começou a ficar preocupado «ó Hermes meu, isso foi qualquer coisa que te cantou o Orfeu». Mas já era tarde para grandes esclarecimentos, estavam face a face com a deusa, não podia haver lamentos, ela vestia dum encarnado puro, o menino mostrou-se seguro, Hermes titubeante, o menino revelou-se confiante e seguiu adiante «ó deusa das bênçãos perenes e honradas achas que merecerei as tuas graças desinteressadas» Mas Hermes ainda não tinha sucumbido nem mareado e tinha o ouvido bem espetado «ó deusa, ó vizinha, este menino só aqui vem criar perigo, treina primeiro as tuas bênçãos comigo, ele chegou aqui porque eu o ajudei senão a esta hora ainda estava lá fora, seria um mero escravo que não valeria a ponta dum chavo». Irá a deusa tirar à sorte. Irá Hermes fazer valer as suas cunhas. Não. Até porque a “perfeição existe”, e bem pode estar numa bênção que ainda persiste.

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