Contos do óbvio



A Simonetta era uma rapariga com sardas. Ela de facto tinha mais coisas engraçadas, mas eu agora vou-me reter apenas nas sardas. Não se pode dizer que ela vivesse propriamente em função das suas sardas, mas gostava tanto delas que dava ideia duma – levezinha que fosse - obsessão. Gira, mas obsessão, apesar de obsessão ser uma palavra forte, eu sei.



Giorgetto não conhecia Simonetta, nem as suas sardas, mas incompreensivelmente já tinha sonhado com elas, com Simonetta e com as sardas dela. No fundo eram duas realidades claramente diferentes, a mulher e as sardas, mas nos sonhos as coisas confundem-se muito, como sabemos. Julgo até que os sonhos existem também para podermos suportar a confusão das coisas. Giorgetto também aparentava ter sardas, mas acho que não lhes dava tanta importância, talvez porque fosse homem, mas isto é apenas uma impressão minha, uma impressão se calhar da família do preconceito, mas isso também não é importante agora, e eu fujo de impressões a sete pés.



O importante é juntá-los aos dois nesta história. Esta história com o Giorgetto e a Simonetta separados não vale nada, esperemos que com eles juntos valha alguma coisa. Eles vão encontrar-se na mais que previsível Sardenha. Numa ilha. As pessoas só se encontram verdadeiramente se for numa ilha, claro que todas as terras são uma ilha, no limite, mas isto é apenas uma história não é um tratado de lógica, por isso retomo a ideia, Giorgetto e Simonetta encontraram-se na óbvia ilha da Sardenha. O encontro terá de se dar ao entardecer, num também óbvio entardecer, todos os verdadeiros encontros se dão ao entardecer, as coisas importantes passam-se todas ao entardecer.



Simonetta estava a ler Dostoievski, “O Eterno Marido”, ou o “Duplo” não sei ao certo, mas pensando bem eu devia saber porque sou eu que estou a escrever isto, só que a verdade é que o livro nem lhe estava a encher as medidas, não a fazia sequer esquecer da vaidade que tinha nas suas sardas, mas pelo menos afastava-a um pouco de pensar na atracção que exerceria nos homens se as suas sardas estivessem banhadas pela luminosidade especial dos entardeceres. Giorgetto não andava a fazer nada, os homens que não andam a fazer nada geralmente andam com as mãos nos bolsos, mas Giorgetto não tinha a mãos nos bolsos. Inesperadamente, eu, que fui quem decidiu este pormenor, não consigo perceber o que me fez escolhê-lo assim, sem as mãos nos bolsos, mas vendo bem um homem que se vai encontrar com uma mulher bonita, e eu que ainda não tinha dito que ela era bonita, e com sardas, não pode ter as mãos nos bolsos. Nem numa história como esta cabem homens com as mãos nos bolsos, para isso já basto eu, mas eu estou fora desta história, claro. Giorgetto não trazia nenhum livro consigo, aliás ele não lia muito porque era moreno e tinha medo de empalidecer. Era vago e por isso vagueava. Mas é engraçado, não o preocupava ter de se preencher,  e que pena isto não acrescentar nada à história.



O primeiro e verdadeiro encontro é o dos olhares. É sempre assim, por mais que se queira pensar diferente,  é o olhar que faz o encontro. Pode ser directo, pode ser de esguelha, pode ser furtivo, pode ser demorado, pode ser esquecível, pode ser inesquecível, mas mesmo duas almas gémeas nunca se encontram verdadeiramente fora do olhar que lhes dá guarida. Mas Simonetta e Giorgetto nem sequer eram almas gémeas, aliás isso não existe, que parvoíce. Unia-os uma cara sardenta, um sonho difuso de Giorgetto e, pronto agora vou ter de revelar, é estúpido mas vou ter de revelar, Simonetta já tinha visto uma vez Giorgetto, numa revista, onde Giorgetto se emprestava a anunciar uma marca de gravatas com cornucópias. Simonetta tinha retido aquele pormenor, ficou até a pensar na altura que quando oferecesse uma gravata a um homem, sim ela haveria de ter um homem a quem agradar, seria igual à que Giorgetto trazia na fotografia, uma gravata com cornucópias. Amarela, sim era amarela. Ela haveria de encontrar um homem que encaixasse bem numa gravata amarela com cornucópias; as sardas por acaso até nem foram elemento que lhe ferisse a atenção, reparo eu agora, não sem algum espanto, porque não estou a ver Simonetta a negligenciar uma cara sardenta, só que não era uma cara concorrente, talvez fosse por isso, se é que interessa a razão para uma negligência.


Mas Giorgetto não trazia naquele dia a pose da revista, talvez qualquer coisa dispersa no olhar, mas pouco mais. Levava com ele a memória dalguns sonhos, uns óculos escuros para descargo de consciência, mas trazia-os no bolso, como de costume, e quase nunca os usava, e mostrava vontade de se sentar em cima duns penhascos a olhar para o mar. O típico dum homem mal amado e que, como que para desforra ou castigo, também não sabe amar. Naquele dia Simonetta, a correr atrás do óbvio, e fugindo doutro óbvio qualquer, também largou o livro e quis ir ver o mar para acima dum penhasco. Dois sardentos num entardecer nublado na Sardenha a verem o mar do cimo dum penhasco, pouco mais que o óbvio.


O tal olhar, de que estamos à espera, haveria de aparecer mais tarde ou mais cedo. Vai ser mais cedo, vai ser agora. Aquela luz esquisita, que os fotógrafos tanto gostam, decorou as apresentações, e as memórias dum sonho e duma revista de gravatas fizeram o resto. Mas o quê! Não se beijam! Estão hipnotizados com as sardas que têm em comum. Será isto possível! Giorgetto, então, são apenas umas sardas! Agarra-te a ela, não a deixes adormecer o olhar. Pois, assim. Estava a ver que não. Só faltava teres feito o frete de tirar fotografias com gravatas amarelas de cornucópias e agora não conseguires abraçar a Simonetta. Beija-lhe só as sardas, já sonhadas, como se fossem as tuas feridas. Vá, pronto, agora já podes lavar a tua cara e tirar a tua capa de sardas pintadas. E tu Simonetta, já sabes, podes fazer um homem feliz sem precisares de lhe comprar uma gravata com cornucópias, tens é de saber olhar bem para ele, e ele precisa de se saber olhado, claro, mas um olhar só vale mesmo a pena se estiver um bocadinho molhado. Por isso choraram um bocadinho os dois, pois claro, era óbvio num entardecer nublado na Sardenha, em cima dum penhasco e a olhar para o mar. Até porque não existem almas gémeas, isso é o nome que se dá a almas que um dia se souberam olhar.

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