Os momentos da verdade



Quando alguém me diz que «perdi o ritmo e agora está a custar-me recomeçar», eu só me apetece dizer que «para desculpa até nem está mal». Quem encara a vida como um relógio de corda, está mesmo a pedir que se lhe desenrosque o mecanismo todo de vez em quando, pensava eu cá comigo, mas já um bocadinho à rasca, porque como não escrevia há uns dias neste mata-borrão, cheguei a suspeitar que tinha mesmo de me socorrer da CIAtica do Bush ou da Ana Gomes aos beijos com o Ali Alatas para voltar a olear a engrenagem.



Eis então que me lembro daquele balanço clássico que as grandes multinacionais do consumo fazem com as suas “imagens ético-corporativas”: entre o 1º momento da verdade - a escolha, e o 2º momento da verdade - a utilização; imediatamente associo que as “rotinas” do consumo nos ensinam muito sobre a nossa condição.



Consumir está demasiado ligado ao jogo da subtileza do vício, à ambiguidade da vaidade, e à “ruindade” da necessidade, mas também nos aproxima da espontaneidade amoral própria de Deus, a quem (tal como dizia Montaigne) chamamos bom e forte mas não chamamos virtuoso. Deus não “pensa”, e felizmente para Ele, não balança entre a “escolha” e a “utilização”. Deixou-nos pois o consumo para abrilhantar (ou será aligeirar) a nossa condição de eternos “dependentes da liberdade” e da “posse & uso”.

Os despojamentos anti-consumistas cheiram-me sempre a teorias mal amanhadas (ou incompetência elegíaca), mas o mero «consumir é bom, pronto» também não resolve a questão. Quem acaba por nos safar a charada são mesmo os insondáveis poderes mágicos do marketing que nos reduzem à condição de meros manipulados e portanto inimputáveis. Seres que procuram eternamente ser aliviados.



E como ao homem lhe está impedido ser indigno de si próprio, mesmo que nos queiram convencer do contrário, o mal e o bem devem ser olhados e tratados como as técnicas para vender um shampoo: primeiro fazer com que se escolha o que julgamos precisar, depois fazer com que não nos desiludamos com o uso imediato, e depois gostarmos de nos afeiçoar ao cheiro com que ficamos. A nossa vida pode ser uma mera questão de bom gosto.



E eu mais valia mesmo ter falado do Bush e da Ana Gomes. São bastante mais consumíveis. Falhei neste outro momento da verdade. E nem fui espontâneo, como os deuses.

Sem comentários: