Uma papelaria apenas chamada desejo
O meu sonho é ser empregado de balcão. Estar ali, numa papelaria, à espera das freguesas, a olhá-las de alto a baixo, a ir arriscando nuns piropos sem manha, chamando-lhes marquesas, e a enchê-las dos rubores da vergonha, mas daquelas vergonhas sem tristezas. Numa rua muito movimentada. E o nome seria “ Sexo, lda”. Com um reclame de luzes cintilantes, provocantes e arroxeadas. Mas era só uma mera papelaria. As pessoas entravam com a curiosidade ao léu, e ali estava eu, de barba escanhoada e seráfica, pronto para lhes aviar uma esferográfica, inebriá-las com uns envelopes perfumados e grátis, derretê-las com o erotismo dum afia lápis, e fazê-las apaixonarem-se pelo papel cavalinho. Pois o meu sonho é ser empregado de balcão, nem vizinho, nem ladrão, nem amante, nem cabrão.
Estaria tudo num asseio fresco e barato, e eu com uma solicitude a roçar a nobreza de trato, com os clientes derretidos na minha atenção contagiante, e o material de papelaria ali elegante, refastelado numas prateleiras sem gaveta, e em forma de esguio friso de opereta.
Que belo é o material de papelaria, e que feliz eu seria. Ali ao balcão, com a freguesia na mão, só querendo deslumbrar a clientela, sacando-lhe uns sorrisos de janela, e dizendo umas graçolas, diluindo desabafos nuns blocos de argolas. Que contente eu estaria só ali ao balcão, apenas barbeado e bem disposto, apenas rodeado de bom gosto. Nem sonhando, nem fazendo sonhar, apenas vendendo papel d’agradar. Seria uma papelaria de alterne. Uma loja que nem ilusões vendia, comigo ali ao balcão, eu que apenas sorria, e nem sequer lhes afagava a mão. Tocar na clientela, isso não! Que flagelo! Aqueles jeitinhos saloios de aconchega cotovelo, aqueles abracinhos de enlace mal parido, manápulas de amolecer ombro ferido; jamais, jamais tocar em quem se quer bem aviar. Confiava apenas no som ambiente, na música que acalma o mundo, naquela que não mente, que só pedia um respirar fundo. Eu ficava ao balcão, claro. Não gosto de incomodar. Nem mesmo de aldrabar. Apenas gosto de vender os rios pelo preço do mar. E o que eu adoro ver desaguar. Tocando ao de leve no meu balcão, e passando sorrisos de mão em mão. O meu desejo é ser o senhor da papelaria. A vender papel, quem diria. Aos clientes de passagem, testando-lhes a piadagem, para depois manter os que são certos sempre de olhos abertos. Ele está tudo calculado. Serei pois rico e serei amado. O que eu nunca serei é aldrabão. Se vierem reclamar, nunca direi que foi falta de comunicação. Um freguês é um amigo, ou vai para o céu comigo, ou ferverá desgraça num bule feito de reles argamassa. Porque o que eu quero é estar ao balcão, na minha papelaria, olhando para o chão e vendo como o céu se reflectia, sem cegar, mas com harmonia, dando lugar à bizarria, que é desejar ser apenas dono duma papelaria. Que se chamaria sexo, que coisa mais sem nexo.
A Dra Girassol vai-me mandar internar de certezinha.
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