Hoje vou catar catapultas



A alma foi aquela parvoíce que alguns gregos armados ao pingarelho quiseram dar a impressão que tinham descoberto, nos intervalos entre umas coçadelas de escravas e uns banhos quentes.

O pessoal foi acabando por se habituar à ideia, e sendo até uma palavra de rima insonsa lá se foi desenrascando nas estrofes de turno, e mesmo sem que alguém a tenha apalpado em condições, não há anatomista sentimental que não lhe endromine uma fisiologia.

E eu claro, também lá me fui afeiçoando ao conceito, e agora o sacana não me larga a peúga. Como além disso detesto bicharada de companhia, acabei por me dedicar a esse fantasma de estimação, que pelo menos não me mija na sala (até hoje...), nem me obriga a ir arejá-la às horas menos próprias (no que diz respeito a rosnar às visitas já não poderei dizer o mesmo...).

Noto até – com gosto - que a sua ligação etimológica às “coisas” do movimento parece-me das mais correctas: a maior parte das vezes a “cabra” não consegue mesmo estar quieta; pois que ela é uma gaja isso não me levanta quaisquer dúvidas. Reparo inclusive que possui uma fortíssima vocação para ser viúva-alegre.

Julgo ser então este o momento do Dicionário não ilustrado desvendar quais são as grandes alavancas da alma, as que a fazem dar mirabolantes saltos, as que a ajudam a assaltar castelos como gente grande: “driving animae catapultas” nas entradas 696 a 704.



Dívida – Alma que não deve, só tem mesmo é que temer. Saborear o facto de não conseguirmos corresponder devidamente aos outros, de lhe sermos devedores, é sinal de alma em banquete.



Ansiedade – Constante troca de aflições (há quem chame bacocamente energias), que aparentemente parece não levar a lado nenhum, mas depois vai-se a ver era o aquecimento mais eficiente.



Opressão – A física básica chegaria para explicar o fenómeno. Apenas acrescento que alma fechada e oprimida, é alma que explodirá desembestada e desabrida. Por isso aconselha-se a ir investindo previamente em depósitos reguladores (colocados nas unhas, por exemplo), ou ir aliviando com umas valvulazitas (situadas no saco lacrimal, por exemplo).



Injustiça – Mais género catalizador, que ajuda algumas almas a ferver mais rápido; não chegam a escaldar porque se transformam antes na lava do vulcão. Só que estas almas estarão sempre dependentes duma encosta de desgraçados por onde se rebolar



Ternura – Químico de tal forma poderoso que simula o amolecimento da alma, mas depois destaca-se por lhe conferir uma firmeza de espantar, e que nunca fica quebradiça, apesar de alguns efeitos de trompe d’oeil inevitáveis.



Silêncio – Terrível estado da natureza que se atraiçoa quando se apregoa. Agora produz muitos encantamentos a quem nunca o viveu a sério. É uma das estéticas profiláticas da moda. Mas há almas que se enganam neste “tratamento”. Tal como na "chalassoterapia".



Agressividade – Levedura que se desenvolve em ambientes de forte deficit de personalidade (isto é o quê ao certo?). Mas há almas que dela precisam, e até acabam por conseguir equilibrar as contas antes duma irreparável derrapagem, e quando já não parecia possível.



Falta – O verdadeiro coalho da alma, que lhe transforma a consistência, a textura, o sabor, e a faz de doce fatiar, e muitas vezes de forte nutrir amanteigado.



Medo – Enzima provocador, que trabalha entre o azedo e o mal fermentado, mas que não deixa de estimular uma espuma com que muitos se acabam a lamber.

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