O povo sufragante parece que se move por motivos secretos, num ritual abafado e obscuro. Hoje o Novo dicionário não ilustrado mostra o que de facto faz mover o povo, quem lhe serve de acólito ao juízo, quem lhe emprenha o discernimento. Uma dúzia de entraduchas entre o nº569 e o 580, ziguezagueando sobre o que faz levar as pessoas a decidir da sua vida.



Ideais – Cozinhado mal amanhado de conjunções verbais que no desrespeito pelo sujeito glorificam o predicado. As vírgulas acabam por atrapalhar muito porque obrigam a pausas para pensar. (tal como aqui no dicionário)



Sexto sentido – Quinta-essência do ocultismo fenomenologista, vagamente encontrado entre o olfacto e o cheiro, a meio caminho do odor, e que pode virar expectoração com o tempo



“Eu tenho um dedinho que adivinha” – Na falta de orifícios bem lubrificados, os apêndices manipulares acabam por se ver com funções para as quais não estavam preparados. Cuspir na pontinha pode ajudar quando a unha está a produzir demasiada electricidade estática.



O vizinho – Quando a verdade mora ao lado é sempre possível que possa vir acompanhada dum raminho de salsa em bónus



Um palavreado doce e amanteigado – Abanico que se revela mortal quando produz um formigueiro na nuca, mas que é mero adoçante quando só acompanha o café e afasta as moscas de turno.



Mitos – Rapaziada que construiu a sua imagem dentro duma salada virtual de sucessos, temperada pelo azeite dos media e pelo vinagre dos ódios de estimação. A cebola da vaidade garante a flatulência opcional.



Para onde se está virado – A noção de espaço é um drama da nossa condição, mas poucos serão os que gostam de dar o lombo e suas extremidades ao inimigo. A perspectiva é uma descoberta do baixo renascimento e pode perfeitamente estar ultrapassada. Picasso explica o resto.



Sexo – Quando os ardores humidificam as partes baixas, a evaporação entra-se-nos pelos miolos, e enquanto não espirramos parece que à nossa volta só há gás de nervos a indicar-nos o caminho.



O dinheiro – Quando o vento da fortuna é a brisa mais acolhedora, só temos de nos acautelar para não entrar areia nem para os olhos, nem para as virilhas. É que senão ainda o estoiramos todo com pingos e pomadinhas.



O medo – Designação erudita do vulgar cagaço. Causa rimas de belo efeito, e preenche o vazio dos inquéritos de rua fora da época do natal.



Ódio – Quando uma víscera se arvora em matéria-prima do cogitário, não há talha dourada que disfarce a rusticidade da sacristia, nem paramento que alivie os horrores da liturgia.



O patrão – Malvado que possui a verdade, mas que se faz pagar por ela antecipadamente e raramente tem troco. Segui-lo acaba por ser a garantia duma semana à inglesa, muitas vezes duma vida à francesa, e – agora mais raramente – dum padrinho à espanhola.

Sem comentários: