Terras sem nome



Fui à sessão dos anónimos anónimos. Ia arrepender-me de certeza. A seca do costume. Uns fantasiavam num fetichismo parolo, outros arvoravam-se em ilustres desconhecidos, outros apenas se encolhiam calibrados pela timidez. Ninguém olhava de frente. Mal sabiam eles que eram todos feios de perfil. Bem, alguns encantavam. A quem? Às miúdas da recepção. As que guardavam as fichas de inscrição. Ah...e aquele que se desfazia numa verborreia irrelevante. Era o que estava sempre a mudar de nome. Disse que já tinha chegado a usar o verdadeiro. Era a sua glória. Foi expulso. Não se podia admitir um anónimo que gozasse com o anonimato. Saiu com o rabo entre as pernas. Gaguejava. Quando usava o nome próprio gaguejava. O anonimato era o seu cantar. Ninguém ficou com pena dele. Os anónimos não têm pena de ninguém. Mudaram logo se assunto.

«Um dia ainda hão-se saber quem eu sou» - dizia o gordo. Falaram depois algumas sexualidades mal amanhadas. Andavam arrogantes por estes dias. Mas já não faziam tanto furor. Avançávamos para a segunda ronda. Alguns não tinham querido falar. Tinham medo, ao que parece. Ou «refugiavam-se no medo», cochichava a minha vizinha anónima do lado. As mulheres são terríveis. Não podem ver ninguém a sofrer.

«Um dia ainda hão-se saber quem eu sou» - dizia o gordo. Outros queriam falar sempre no fim. Queriam aparentar ser os diferentes. E havia sempre quem lhes desse atenção. Eram os anónimos estratégicos. À espreita dum bom negócio no anonimato. Ah.. claro, e apareciam uns de que ninguém gostava. Eram apenas uns cabrões. Só que também tinham direito a falar. Tinham as quotas em dia.

«Um dia ainda hão-se saber quem eu sou» - dizia o gordo. Mas começava agora o da conversa mole. Que dizia só ser anónimo para não estar tão condicionado, e poder ser adorado sem limitações. Enjoava. O outro não aguentou. Era um dos mais veteranos. Tinha ficado sem memória-de-si depois de um acidente. Atirou a cadeira para o chão e foi-se embora: «metam a vossa identidade no cu». Ela - a outra - ficou a chorar. Amava-o. Tinha-se feito anónima só para estar ao pé dele. «Agora é que vão saber quem eu sou» - levantou-se o gordo, que afinal não era gordo. Abre o casaco, mostra as bombas enroladas à pança. Arrependi-me de lá estar.

O juízo final deve ser por ordem alfabética. Eu cá sou António.

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