O futuro disfarçado em sexo com café pingado



Está então agora alegremente provado pelos eminentes cientistas sociais que atravessamos um simples momento de transição, próprio de quem se arrastou anos a fio numa masmorra húmida e bafienta, sem ver o céu estrelado durante a...

Grande noite do opressor obscurantismo fascista...

A Grande noite do paranóico vulcão revolucionário...

A Grande noite do assexuado espartilho do FMI...

A Grande noite do iluminado orgasmo cavaquista...

A Grande noite do relaxante diálogo guterrista...

e.. Pensávamos entrar agora na Grande noite do fado quando de repente nos enfiam num período de transição. Com franqueza.

Entregámos então os nossos destinos aos grandes pensadores dos movimentos de massas, e eles vão agora estabelecer um “business plan” para que o nosso país rompa definitivamente com as amarras duma sociedade atafulhada em preconceitos, inibições e paradigmas perdidos.



Felizmente fiz-me amigo da miúda que servia os cafés ao senado dos sábios e que estava entretanto reunido. Sempre que ela viesse cá fora desanuviar, eu sacava-lhe as últimas que ela apanhava no gravador que lhe tinha escondido entre as suas “mais que tudo”.

Era ia sair pela primeira vez da sala, e eu estava mesmo ansioso em saber quais as etapas para o nosso definitivo sucesso....



« Ó Tóne ( onde é que eu já ouvi isto... ) tome lá esta coisa que já me está a arranhar. Aquilo é só finórios com palavras da televisão...»

(...)

1ª Fase: O Grande deslumbramento legalista: O sistema colocará na grelha todos os crimes abafados constantemente pelo compadrio e pela incompetência. As instituições serão cristalinas, e os servidores da justiça envergarão as vestes virtuosas do abandono ao bem comum. Os enjeitados da fortuna verão finalmente os seus nomes a designar as ruas. (...)

«Ela entretanto tinha entrado outra vez saracoteando-se. Eu achava-lhe piada. Estava agora a voltar outra vez. Vinha com a lagrimita no olho. Tinha despejado o café em cima dum gordo careca que até a tinha ofendido. Eu confortei-a, mas estava distante, porque queria mesmo era ouvir a gravação...»

(...)

2ª Fase: A grande vaga da informação fidedigna: Toda a mentira será banida dos media. Da vida privada apenas se descortinará o pecadilho no atraso da contribuição para as obras do condomínio. O IRS dos políticos será preenchido pelos contabilistas dos jornais. A autoregulação seria a cereja no topo do bolo (...).



«E lá se tinha ido ela embora para dentro da sala. Ajeitava a saia antes de entrar. Sonhava. Quando voltou trazia um contentamento de varina. Sentiu um dos “senadores” levemente ruborizado e inquieto quando as suas mãos se tinham tocado erraticamente. O pingo de solda da sensualidade tinha caído por ali. Deu-me o gravador com a displicência duma rainha em concubinato...»

(...)

3ª Fase: O grande manjar macrobiótico do Leviathan. O Estado será pessoa de bem. Modelo de racionalidade. Parcimonioso e cumpridor. A Irlanda deixava de ser o modelo. Tínhamos avançado mesmo para a perfeição repescada da utopia social democrata. O erário “superavitava”. Obtínhamos receitas extra com os suecos, que viriam cá estagiar nas nossas repartições públicas, agora embelezadas com Noronhas da Costa (...).



«Quase nem me despedi dela. Foi a correr, chupando os lábios para os fingir carnudos enquanto negligenciava a franja. Mas voltou irritada. O café começava a ficar frio, e ela estava cheia de medo duma fedorenta que se sentava à direita do mais importante. Feiosa mas bem vestida – dizia – e uns collants que já não se usavam, misturados com umas gengivas enormes que arranhavam desprezo pelos mais fracos. Achava que todos tinham medo dela porque aceitavam sem pestanejar o que dizia. Está tudo aí na cassete despachou-me...»

(...)

4ª Fase: A grande Primavera do Estruturalismo. Portugal despede-se do seu vício de ser informal. Tudo estará planeado e regulamentado até ao mais ínfimo pormenor. Na maternidade é atribuído o nº do jazigo. Iniciar-se-ão os testes psicotécnicos na primeira comunhão. Com a declaração de IRS em dia poderemos tirar um bilhete de época para a Ópera no S. Carlos. Depois de se explorar três anos uma barbearia poderá automaticamente abrir-se uma farmácia. Tudo estará delineado (...).



«Treinava o olhar enquanto voltava com os cafés. Os espelhos não mentem, dizia-me sabedora. Mas não sabia nada. Retornou perturbada e inquieta. Eles - dizia - andavam a prometer grandes mexidas no “ivaginário” nacional. Tremia. As últimas notícias que mostravam o homem português um violador agressivo faziam-lhe agora todo o sentido. E olhava ciosa para as suas partes íntimas, como quem adora um sacrário em vésperas de mais uma razia do Islão. O gravador vinha húmido mas não enganava...»

(...)

5ª Fase: A grande libertação das elites. A ciência seria agora o verdadeiro motor da sociedade portuguesa. Células, moléculas, protões, todos se ajoelhariam perante o beneplácito da direcção geral da indústria. Nem mais uma investigação na gaveta. Nem mais um cientista refugiado em Badajoz. Bush chegará a Marte. A bandeira será americana, mas o pau será nosso! (...).



«Quando ela voltou para dentro da sala já levava aquele sorriso matreiro adivinhando sexualidades reprimidas. Só que quando regressou vinha morta de riso. Tinha-se arrumado a confusão total. Já se ouviam palavras que ela julgava só se dizerem lá no bairro dela. Parece que se tinha de adiar tudo porque a última fase era muito controversa. Arranquei-lhe o gravador das mãos, enquanto ela se lambuzava de gozo com a minha sofreguidão....»

(...)

6ª Fase: O grande paraíso da Lusofonia. Portugal o país integrador. Um idioma feito potência. Unidos pelo verbo de Camões e pelo esperma de Gama e Cabral. Refundaríamos a grande barca lusa e navegaríamos pelos oceanos colhendo na nossa rede de fraternidade todos os povos irmãos.



Não seria o quinto dos impérios (desculpem lá o mau jeito...) mas um império da quinta casa.

Ela só lá voltaria agora para limpar os cinzeiros. Destino da tanga. O gajo mais bem parecido pelos vistos nem lhe tinha prestado muita atenção. Ela estava desconfiada. Nenhum homem de bem desdenha uma moça bem parecida e que gosta de servir cafés pingados.

Eu cá era só o rapaz das gravações.

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