Casa pia em terra pífia



Instalada a vertigem comentadora e lacrimejante sobre o estado da nação, e “acomodados” com o diagnóstico parvo da crise das instituições – “agrada” a todos – mais não fazemos que engordar alegre, mas escandalizadamente, à mesa do banquete da asneira (alheia, claro!).

Pois então...

Os vícios privados que têm “acusações” públicas sempre fizeram parte daqueles enredos que engordam editores, comovem leitores, empolgam escrevedores, achincalham honras bem ou mal construídas, e empoleiram mitos.

A perversão, a doença e o crime são alarvidades da nossa condição, que por mais que se queiram moldar se apresentarão sempre em barro desgraçado e falso.

O Estado foi-se enroscando nelas como pôde e geralmente com boas intenções; que valem muito no caso do Estado, porque o que o espera é mesmo o eterno purgatório.

A justiça é uma dessas boas intenções, e de vez em quando, inevitavelmente, um dos fados mais cantados pela voz arrastada dos periscópios de serviço. Enteada de Deuses.

A curiosidade humana serve a vários senhores, e por isso é uma agente dupla que acaba sempre por provocar desgraças em todos os lados da barricada.

Haver vítimas e culpados é a consequência dum registo da nossa “humanalia” que (apesar de não aceitar a ideia de Bertrand Russel de que a vida seria a competição para sermos criminosos em vez de vítimas) é pendular, fortemente dialéctica e – anacrónica e inesperadamente: muito definitiva.

Nós só “compreendemos” a transitoriedade como mera passagem entre definitivos. A física explica.



Mas a bela da verdade é que eu até acho que até temos estado menos mal. Vejamos como têm andado os maus da fita:



Os políticos. Só estavam preparados para a batalha naval em papel quadriculado, e de repente apareceram-lhes outra vez com exercícios em fogo real. Mas a força das suas cumplicidades e das suas tácticas manteve-se intacta, e acabaram por navegar nestas águas como todos: a reboque do diz que disse. Não dão mais que isto. Estão talhados para gerir expediente. Ao menos não provoquem bichas.

Os advogados. Têm demonstrado ser um dos elementos de mais competência neste processo. Asseguram a defesa, ou seja: que todos têm o direito à sua subjectividade, à explicitação das suas atenuantes, quaisquer que elas sejam. A lei é de facto também um instrumento. E todos somos casos especiais, como diria o tão badalado Camus.

A prova. Estamos perante o “inebriante” caldo do direito penal. A justiça aqui só se “deslumbra” perante os factos provados. E o que é isso? Uma convenção, claro. Mas que só se constrói com as nuances de uma circunstância, de uma testemunha, de um depoimento. Não pode ser doutra forma. Mas não dá para ser entendido por todos, ao mesmo tempo, e sob o mesmo ângulo. Está na sua natureza. Picasso explicaria.

Os Juízes. Por mais que tenhamos sonhado diferente, são produto duma sociedade que já apresenta em catálogo os que são “bons” e os que são “maus”. É a “ciência” jurídica que ainda atenua esta fatalidade. Mas nós mantemos a ilusão idílica de que haja sempre alguém que nos entre pelos complexos adentro, e salomónicamente separe por nós o trigo do recalcamento do joio da fobia. Somos uma seara freudiana.

A separação dos poderes. Falsa questão. Débil e esgotada causa. Falacioso alicerce duma sociedade que não se habitua a viver encafuada nuns caboucos cheios de folgas. E ainda para mais desfoca-nos duma questão essencial: a competência técnica e o seu controlo. O capitalismo explica.

A Procuradoria-geral da República. Um dos elementos mais frágeis desta salgalhada toda. Quando numa instituição não se pode mexer num determinado momento por causa disto ou daquilo, então é porque ela está mesmo mal amanhada e precisa de ser reparada. Já não vivemos em tempos onde ser sisudo e pacato inspire confiança. É preciso ter força e estar de peito feito, rodeado de gente competente. E ser ambicioso. “Segredo de justiça” é liderança, competência e organização. O modelo da PGR em Portugal para os “novos tempos” está fanado. Pelo menos copie-se. Às vezes até vem nos filmes.

A comunicação social, a notícia e a investigação jornalística. Confrontar o direito à informação com o direito à privacidade é uma luta inútil. Vivem de lógicas diferentes e só podem encontrar o equilíbrio pela via da... “força”, ou do famoso e traiçoeiro pacto. Acho que a comunicação social tem estado razoavelmente bem (“apenas” incompetente nalguns casos...). Ela tem sempre uma lógica de contra poder. Tem forçosamente de arriscar (excepto as agências noticiosas). Os cidadãos não podem estar a pedir aos iluminados que os defendam dela! Os excessos são a natural “resposta” aos “testas de ferro” duma sociedade que vivia aparvalhada pela ignorância. O Eduardo Lourenço dizia que passámos directamente da 4ª classe para a sociedade da informação; ou seja, o povo tem mesmo é de se aguentar à bronca! Só faltava que os jornalistas agora ainda fossem os sacristães da moral pública. A defesa da privacidade faz-se ou com leis severas ou com concorrência e competência na informação. A notícia é um refrigerante. E as pessoas têm de se ir habituando a bebê-la como tal.



Apoucados sejam os que nos fizeram chegar até aqui pensando no mundo como uma alegoria de direitos, embelezada por lindas parábolas de liberdades. Enxerguemo-nos: somos uma mera quermesse de mexericos.

“Se o teu desejo é como uma cidade fortificada,

com tempo um cerco o fará desmoronar”:
Lê-se com prazer na Rua da Judiaria.

Saibamos viver em campo aberto. Como Mongóis.



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