Para quê um título....



Estava na prisão quando escrevi todos estes textos até agora. Não foram tempos bem passados. O tempo não é algo que se passe bem. E ele também passa bem sem as frases feitas que o afagam. A minha cela até que era jeitosa. Não havia paneleiros no meu corredor, pude assim estar mais tranquilo. Mas eu não dou muito valor ao sexo. Só que comigo não podiam fazer sondagens de opinião porque o meu telefone estava cortado.

É bom ser culpado e castigado. Ao menos esse problema está resolvido. Não recalcamos impunidade. Isso dá-nos alguma paz de consciência. Não estamos em dívida. Pude assim escrever sem ter de me preocupar em acertar. Também o mundo se enganou comigo, paguei com a mesma moeda. As contas sim, essas estão acertadas. Falaram-me daquele rapaz do Kafka, mas eu não me revejo nele. A possibilidade é mesmo a realidade. Fui escrevendo. Distraía-me dos sinais que o corpo ia enviando. Diarreias, dores de costas, aftas e hemorróidas. Não lhes dava a importância que elas pediam, e acabaram por me abandonar. Fiquei bem. Só olhava para as minhas mãos. Feias infelizmente. Mas eu também não precisava do aspecto delas.

Estava preparado para simular raiva. Mas fui oscilando. Os guardas mostraram-se mais complacentes do que o abrupto. Desconcertavam-me. Toda a gente sabe: só a bondade desconcerta. A razão e o conhecimento quanto muito substituem uma chave de fendas por um berbequim. E rir, o que eu gosto de rir. Mas enfada-me o humor elaborado. Prefiro rir das asneiras dos outros presos. Boçalidades. Bem, era condenado. A juíza bem me avisou no tribunal: você veja lá se não se deixa levar. Pensei logo nos coitados dos políticos. Outras celas, outras apalpadelas... Mas fui rapidamente arrastado para a carrinha. Ainda tive tempo de olhar para os meus filhos. Não, isso não posso contar, está-me a doer muito. Merda. Volto ao início.

Eu pensei logo que ia escrever sobre a dignidade da vida purgante. Sobre aquelas coisas importantes. Mas cheguei rapidamente à conclusão de que o importante é mesmo a salvação da nossa alma. Há que viver o egoísmo ontológico como uma suave fatalidade. Coisas de reclusão forçada. Como a escrita. Acaba por nos fechar. Ao contrário do que pensava. A minha cela era mais aberta que as minhas palavras. Coitados dos que se emocionam com as palavras. Só se lhes der dinheiro. Aí ainda vá lá. Felizmente sou rico. Fui comprando as palavras certas. Trocava-as por charutos com um escritor envergonhado. Fora preso pelo uso indevido de dois “cabrões” e um “filho da puta”. Agora encarrilava ave-marias: ninguém deve desconfiar do efeito purificador das penas!

Entregava os textos à minha mulher. Coitada, ainda tinha de os inserir no blog depois de deitar os miúdos. E para nada. Sim, serviram para quê! As torres gémeas já tinham caído, o deficit já andava tremido, o Saramago já nos tinha ameaçado com o novo livro, e a velocidade da luz iria ser outra vez atraiçoada. Não fui a tempo de os avisar que a velocidade é uma convenção, e a luz uma ilusão. Aprendi isso nas frestas da cela. Uma fresta está condenada a ser uma fonte de vida. Nunca digas “cona”, aconselhou-me o escritor. Ele lá sabia, sofreu na pele. Quando pediu ao vento para lhe levar as palavras foi tarde. Já tinha transitado em julgado. Restam-lhe as contas do terço. Também ficou bem. Porque quando se repetem as palavras certas, abrem-se as portas que realmente interessam.

Só tinha colheres. Nada de garfos, nem facas. Fui assim arredondando a mente. Nunca cortava, só afastava as partes que se sentiam incómodas num “todo” que não lhes dava boa cama. Nada inspirei portanto. Ventilei apenas. Sina de encarcerado, e irrelevante.

Fui bufado e apanhado neste crime de ser parvo. «Coitadinho!...». Felizmente não podemos ser acusados do mesmo crime duas vezes. Agora já estou à vontade e aproveito para arriscar com a escrita frívola.

Não ando de cabeça erguida como outros fantoches, mas pelo sim pelo não saí de gola alta: não me apanham mais em crimes de colarinho branco.



....se podemos viver sem ele

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