Verdes anos



Carlos Miguel primeiro decidiu tornar-se vegetariano. Não foi por qualquer aversão à carne, nem sequer por qualquer paixão pelas plantas, ou até pelas flores, nada disso, quanto muito alguma estima pelos arbustos naquela parte que vem depois do ar. Tratou-se antes de negar ao corpo algo que lhe fosse familiar, fazê-lo passar pela mesma ausência por que passava a alma. Carlos Miguel, fosse por ser feio, fosse por ser tímido, fosse por ser burro, não conseguia, não tinha conseguido, ser o enche-almas de nenhuma mulher, não conseguia gemelar com nenhuma fêmea. E assim o seu espirito, naquilo que lhe era exigido de competências de sedução foi mirrando até não passar duma anémona-de-filósofos.
Ora se a alma não se satisfazia, Carlos Miguel não podia deixar o corpo andar por aí a provocar-lhe inveja entre bitoques e espetadas de novilho. No vegetal estaria a vingança.
Raivas Verdes Salteadas, Babeles de folhas em forma de Saladas, Sopas saídas de naturezas mortas, tartes para coletes à prova de bala, foram passadas a pente fino todas as capelinhas da via-sacra legumeira. Várias correntes teóricas foram testadas, e inclusive o metabolismo religioso teve de ser chamado nos momentos mais críticos.
Mas ao 7º dia o corpo sucumbiu. Foram feitas as exéquias com uns pimentos morrones, uma coisa digna mas rápida, e Carlos Miguel decidiu punir o seu corpo com flagelações mais dignas, e onde não corresse o risco de encontrar gafanhotos sem praga equivalente.
Com o corpo devidamente humilhado Carlos Miguel voltou a olhar para a sua alma com um ar mais confiante, desafiante mesmo: agora partiria tudo do zero.
No fundo, punir o corpo abriu os olhos à alma e Carlos Miguel começou a irradiar um poder de sedução que deixava boquiaberto o galã mais veterano. Mas a certa altura as mulheres começaram a cair-lhe nos braços que nem golfinhos de selfies, de tal forma que o corpo de Carlos Miguel começou a ter uma certa nostalgia dos tempos em que o brócolo era o Rei da sua vida.
E eis então que um sabre de luz lhe entrou pelo bolbo raquidiano adentro e Carlos Miguel conseguiu fazer a síntese que lhe faltava nesta dialéctica em que a sua vida se tinha transformado: seria vegetariano de corpo e carnívoro de alma.
Fulminava de dia com o olhar arrebatador do seu espírito ganadeiro, mas depois comia uma sopinha de espinafres antes de se deitar.

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