No dia anterior o almoço tinha terminado numa duna. Só
deserto aplainado pelo vento, sem trilhos. Assim hoje entrei no restaurante em
total concentração. Como só um homem se sabe concentrar: meio caçador meio
presa. Era um rally nas dunas; ora se há altura em que não devemos andar de
cabeça erguida é quando existe a possibilidade de capotarmos, mas o orgulho,
entre várias outras performances, torna-nos estúpidos. Sentei-me de tal modo
que me podiam confundir com um catavento no cimo duma igreja. Como se não
bastasse pedi ovas grelhadas, um clássico do restaurante mas que sempre me fez imaginar
na cozinha a inseminarem pescadas in vitro. A proveta do peixe assado é o
pirex. L. estava toda entretida com um grupo de comensais, olhou para sim e fez
aquele olhar que equivale a um até-já-sem-pressa. Por mais irritante que tenha
de confessar é um olhar francamente atraente, seja ele feito numa fila de
supermercado seja feito em cima dum colchão. Já estava a dominar uns
profiteroles quando L. veio ter comigo. Ontem quase não me disseste nada, disse
ela, não percebi se a provocar-me se apenas a treinar os glúteos da conversa de
circunstância. Tudo o que eu te diga não vale nada por isso tanto dá, foi a minha
resposta quase obrigatória. Olha, e que tal tens comido por aqui, disse ela
inesperadamente colada à realidade. Mas eu quero lá saber da realidade, porra!
E ela sabe isso! Ela sabe que não me interessa nada a realidade. A realidade é
apenas aquilo que impede a ilusão de se dissipar no ar. Ela sabe que a
realidade é apenas uma embalagem. Ela sabe. Por que raio insistiu ela nesta
merda. O restaurante é uma fachada do nosso amor. Para quê esta merda. Uns lavam
dinheiro à escondida, nós lavamos corações. O café estava inesperadamente doce
mas sem aquele toque meloso que estraga tudo. Já estava no táxi e ainda me sabia
bem lamber o céu da boca, assim até dá gosto engolir em seco.
Almoços Grátis. série 4 [4]
Talvez tenha sido a vez que entrei mais hesitante no
restaurante. Sentia que iria apenas demonstrar inferioridade, dependência,
submissão. Todas aquelas marcas que receamos e que geralmente fazem o diabo
tomar conta dos acontecimentos. Para além disso qualquer homem sabe, de cultura
e técnica sólida, que não conquista nenhuma mulher com manobras de aproximação.
Sem dar bem conta de nada já estava sentado a comer creme de cenoura. Saboroso
como se fosse um veneno dócil na mão duma feiticeira. A cenoura acalma-me,
põe-me nos braços da minha mãe, transporta-me para aquele reino de felicidade
estúpida que não sabemos explicar. Era o momento certo para a L. aparecer
porque eu seria irremediavelmente sincero. E assim me apareceu ela à mesa. Mais
gordito, hem? Como aproximação não foi má: não mata, aleija sem sangrar,
rasteira sem fazer cair, abre espaço para uma resposta não comprometedora,
permite um sorriso estúpido mas que parece apenas surpresa, não exige nenhum
coração aos saltos, o corpo pode ficar inerte, e não surge aquela vertigem de
fugir que geralmente todos tememos. Bem, só agora à posteriori é que consigo
fazer estas considerações, na altura, ora na altura, eu tenho sempre uma saída,
qualquer coisa com piada. O maior mito moderno é que as mulheres gostam de
tipos com piada. Só se for para os levarem para as sapatarias. A minha memória
esmagou o que se passou a seguir como quem desfaz beatas ao passeio.
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Almoços Grátis. série 4 [3]
E ao terceiro dia a brincar aos mártires no restaurante, a
minha intuição dizia que desta vez é que seria. O restaurante estava cheio e
tive de esperar a minha vez. Foi um teste à tática de observado passivo. Um dos
empregados mais antigos passou por mim e disse-me: senta-se já na mesa do
costume. Ora se há coisa que nunca tive foi mesas-do-costume. Detesto
combinações do costume, e L. sabe isso, era uma afronta típica. Iria provocar
um desencontro e não queria ficar como a má da fita. Num espaço pequeno,
fechado, confinado, é difícil usar o expediente do telemóvel esquecido, mas uma
mulher quando despreza gosta de fazer de boazinha. O substantivo incompreendido
quando é declinado no feminino tem outro requinte. Já sentado foi-me oferecido
um amuse bouche com recado: petinga de escabeche. Não lhes toquei, quis ver a
reacção. Nenhuma. Conclui que já estava a jogar o campeonato do desprezo. L.
ainda nem sequer tinha aparecido, nenhum empregado tinha feito qualquer alusão
a pratos especiais, eu nem sequer já servia para fazer de arlequim. Era um
indigente, alguém a quem suportavam pelos serviços prestados no passado à
Senhora. Uma refeição social de inserção, um faz-te à vida em forma de
escalopes de vitela. A mulher quando muda de homem torna-se uma máquina demolidora
de humilhação. Pedi mousse de chocolate antes de tocar no que quer que fosse.
Comi-a saboreando o doce como se fossem as batatas marcianas do Matt Damon e
saí de queixo empinado para ser atropelado com estilo.
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