Num assomo de piedosa solidariedade Samuel tornara-se um
filantropo e, como se isso não bastasse, começou a ver em cada sofredor uma
alma gémea. Passada a fase dos bichos destinados à estimação e que encontrava
pouco estimados, virou-se para as pessoas, mesmo depois de ter sido avisado sobre o vírus
da ingratidão que atravessava um surto epidémico. Não me movo pela recompensa,
dizia Samuel, quase traindo a herança que Darwin deixou depois de tanto
enjoar em mar alto. A minha lei é a do mais fraco, chegava a acrescentar nos
dias fustigados pelo desvario melancólico.
Foi Carlinha, uma moça incompreensivelmente rotulada de mal-amada
que lhe serviu de debute na arte de bem estimar. Carlinha sofria de recusa-lombar,
um padecimento amoroso que faz as mulheres olharem desconfiadas para os homens
e, em simultâneo, disporem o corpo numa curvatura elíptica com um dos focos a
situar-se ali 2 cm acima do osso da bacia. Não era uma daquelas poses que deixasse
margem para quaisquer dúvidas: Carlinha não estava para ali virada. E assim
chegou aos metafóricos braços de Samuel.
Encontraram-se a primeira vez em Serralves, muito antes
sequer de por lá passar a brisa de Pacheco (com ficou conhecido o ventinho frio
e desinteressado do fim de tarde), e entre duas torradas na esplanada, Carlinha entregou os
preconceitos à sagrada providência, colocando à disposição de Samuel os enigmas
mais profundos da sua razão de existir.
Ora como todos já devíamos saber, é insondável o mistério da
existência, não se lhe conhece razão válida que não seja o capricho dum Ser obcecado
pela bricolage e pelas adivinhas. E quando
se junta o amor às prerrogativas do Criador dá-se um epistosalto só ao alcance
daqueles que acreditam no que não vêem; Samuel era um desses, e ainda
requintava, ou seja: só acreditava e tricotava no que não via.
E a alma de Carlinha-sofrida, quase saída dum remake
a la dostoievski mas sem velha usurária, parecia desenhada com aquela tinta
invisível que Samuel decifrava como se fosse um ferro de engomar com pernas.
Assentava tudo num caderninho, como aqueles novos escritores urbanos, e depois
meditava à noite, entre duas omeletas de queijo e especiarias. No dia seguinte
encontravam-se outra vez e através de palavras mágicas Carlinha via a sua vida
passar do caderno para a caneca de cerveja que Samuel já tinha pedido com
antecedência e zelo. Na realidade aquilo que a torrada ajudara a revelar o tremoço
terminaria por esclarecer. No fundo, Samuel tinha descoberto, e bem guardado o
segredo, que a alma humana era um órgão simples como um salgadinho: um
salgadinho nunca gosta de estar sozinho no prato. Carlinha só queria ser
enganada & engalanada com uma explicação-com-mistério, e sentir-se adorada como um menino
jesus sem herodes. O óbvio é uma propriedade exclusivamente masculina.
2 comentários:
O óbvio é uma propriedade exclusivamente masculina...hummm, eu cá desconfiava.
já se foram as festas, mas é sempre tempo de deixar votos de tudo de bom (e o mais que houver. e um beijinho
Obrigado e Bom ano, Maria!
beijinho
Enviar um comentário