Efeito Estufa



Carlos estava apanhado pelo clima. Não havia como esconder, Carlos tinha o seu estado de espírito de tal forma definido pelo vento, a humidade e o Sol que toda a sua vida se orientava em função dos caprichos da deusa da meteorologia.  Se Pavlov o conhecesse ter-se-ia poupado muita baba de cão.
Júlia era uma moça que gostava de Carlos, e até já brincava dizendo que também namorava com o anticiclone dos Açores, numa bigamia oficial e assumida. Brincava mas a coisa estava por um fio pois ninguém suporta eternamente ter como companhia um bicho mais previsível que um deputado da oposição.
A cimeira do Clima foi assim acompanhada pelo casal Carlos & Júlia com um interesse especial, quase erótico, porque o nível de emissões entrava na sofisticada equação do nível e intensidade de cópulas ou intimidades afins que poderiam produzir em conjunto. Era, como agora se diz, um indicador avançado de fodas.
Cada hesitação, cada declaração, cada ameaça de abandono, cada chantagem diplomática, eram analisadas por Carlos como se estivesse a observar uma ressonância magnética aos tomates, tal era o determinismo do clima no seu espermatusiasmo.
Júlia viveu então momentos de grande ansiedade, temendo que as suas hormonas acabassem num frasco do museu de história natural, entre dois ovos secos de avestruz e uma toalha turca feita com pintelho de elefante.
Felizmente, Leonel Lopes, o vizinho de Júlia, era um jardineiro reformado e, com a perspicácia acumulada de quem ouvia a confissão de gladíolos e estrelícias, já se tinha apercebido do drama pessoal da vizinha e tal não lhe era indiferente, tanto mais que o choro dela já estava a interferir com os seus bonsai de figueira que inesperadamente começavam a criar formas inauditas e até levemente obscenas não obedecendo a nenhum tipo de poda.
E foi assim que Leonel, num dia decorado por chuva miudinha e traiçoeira com franjas de nortada, levou o casalinho a ver os seus ulmeiros bebés numa estufa que explorava ali para o lado da Penha de França. Como quem não quer a coisa deixou-os lá sozinhos e foi tomar um gin junto à casa dos bicos. Carlos apresentava-se naquele estado que geralmente se apelida de ‘impossível’ e que leva as mulheres a pendularem entre o ‘hoje estou com muita peninha dele’ ou ‘vai mas é ter com a tua mãezinha’. Júlia estava bastante mais inclinada em mostrar-lhe o caminho para casa da progenitora.
Mas eis que após 5 minutos de contemplação, naquele ambiente climatizado em que a humidade cheira a sexo vegetal e o calor exala o perfume que faz a clorofila pôr os cornos ao oxigénio, Carlos e Júlia entreolham-se que nem um Laurent Fabius para uma Segolene Royal e juram sobre uma carreira de vazos de tomilho que viverão ali para sempre, com energia limpa por trás e aquecimento global pela frente; assim o plástico aguente.

musgo sem presépio



Num assomo de piedosa solidariedade Samuel tornara-se um filantropo e, como se isso não bastasse, começou a ver em cada sofredor uma alma gémea. Passada a fase dos bichos destinados à estimação e que encontrava pouco estimados, virou-se para as pessoas, mesmo depois de ter sido avisado sobre o vírus da ingratidão que atravessava um surto epidémico. Não me movo pela recompensa, dizia Samuel, quase traindo a herança que Darwin deixou depois de tanto enjoar em mar alto. A minha lei é a do mais fraco, chegava a acrescentar nos dias fustigados pelo desvario melancólico.
Foi Carlinha, uma moça incompreensivelmente rotulada de mal-amada que lhe serviu de debute na arte de bem estimar. Carlinha sofria de recusa-lombar, um padecimento amoroso que faz as mulheres olharem desconfiadas para os homens e, em simultâneo, disporem o corpo numa curvatura elíptica com um dos focos a situar-se ali 2 cm acima do osso da bacia. Não era uma daquelas poses que deixasse margem para quaisquer dúvidas: Carlinha não estava para ali virada. E assim chegou aos metafóricos braços de Samuel.
Encontraram-se a primeira vez em Serralves, muito antes sequer de por lá passar a brisa de Pacheco (com ficou conhecido o ventinho frio e desinteressado do fim de tarde), e entre duas torradas na esplanada, Carlinha entregou os preconceitos à sagrada providência, colocando à disposição de Samuel os enigmas mais profundos da sua razão de existir.
Ora como todos já devíamos saber, é insondável o mistério da existência, não se lhe conhece razão válida que não seja o capricho dum Ser obcecado pela bricolage e pelas adivinhas. E quando se junta o amor às prerrogativas do Criador dá-se um epistosalto só ao alcance daqueles que acreditam no que não vêem; Samuel era um desses, e ainda requintava, ou seja: só acreditava e tricotava no que não via.
E a alma de Carlinha-sofrida, quase saída dum remake a la dostoievski mas sem velha usurária, parecia desenhada com aquela tinta invisível que Samuel decifrava como se fosse um ferro de engomar com pernas. Assentava tudo num caderninho, como aqueles novos escritores urbanos, e depois meditava à noite, entre duas omeletas de queijo e especiarias. No dia seguinte encontravam-se outra vez e através de palavras mágicas Carlinha via a sua vida passar do caderno para a caneca de cerveja que Samuel já tinha pedido com antecedência e zelo. Na realidade aquilo que a torrada ajudara a revelar o tremoço terminaria por esclarecer. No fundo, Samuel tinha descoberto, e bem guardado o segredo, que a alma humana era um órgão simples como um salgadinho: um salgadinho nunca gosta de estar sozinho no prato. Carlinha só queria ser enganada & engalanada com uma explicação-com-mistério, e sentir-se adorada como um menino jesus sem herodes. O óbvio é uma propriedade exclusivamente masculina.

O amor em tempos de acordos



Para os devidos efeitos. Dar-nos-emos sempre bem nos dias úteis pares e aos fins-de-semana discutiremos as miudezas que não interferem directamente com os temas religiosos ou hormonais. O amor é subentendido, assim ficou indizível e claro desde o início; quando for facilitador, por mim tudo bem põe-se no tablier, se atrapalhar fica da bagageira. Fixemos então o comportamento dos dias ímpares. Reclamações aos dias 15 e se coincidir com a lua nova temos direito a insulto sem pré-aviso. É o tal poder libertador do insulto, e se estiver previsto nem magoa nem nada, a técnica tem essa coisa boa da amoralidade que nem sequer desmoraliza. Nos dias de nºs primos podemos testar o sexo alternativo, aquele tipo de sexo em tempos de cólera nos quais tudo é de vida ou de morte. Nesses dias não nos falamos, um sisudo erótico, se houver algo para dizer será por mail ou whatsapp; sms, não, isso é coisa de excitação doentia, de namoradinhos com coleira, e mútuas estimações não estão no nosso âmbito. Saberemos odiar-nos decentemente nos dias 13, indo logo directos aos passados menos nobres, aos danos irreparáveis, às palavras mal medidas, às ausências sem explicação, por esta ordem. A irritação com método é remédio. O dia mais importante é o nove, o dia dos caprichos, mês sim-mês não cada um exige o que quiser ao outro sem qualquer possibilidade de negação. O único limite é o estabelecido por escrito pela santa madre igreja no capítulo das palavras passe do inferno. A meio do mês poderemos brincar aos amores não correspondidos, duas cápsulas de lírica uma colher de tragédia. Se a lua cheia calhar em dia ímpar torná-lo-emos par e será dedicado a dizermos ostensiva e orgulhosamente bem um do outro, como se fosse uma récita de virtudes, um galanteio desinteressado, uma boa-criação sentimentalmente assistida. E nos múltiplos de 10 faremos recapitulações: o melhor beijo, a melhor foda, o melhor queijo, o melhor whisky com soda. E nos dias terminados por três exorcizaremos os receios do amor, um de cada vês: que o amor não exista, que o amor se vá embora, que o amor nos cegue. Nos dias aqui não previstos , controlar-nos-emos com olhar vítreo e a vida seguirá o seu livre arbítrio.  E tudo isto será facultativamente obrigatório sob pena de cairmos na tentação de adoptarmos um peixinho.