Apesar de não possuir caderneta profissional de terapeuta
julgo que todos, numa aproximação imperfeita ao Mandamento do Senhor, temos a
obrigação de proporcionar ao próximo um mínimo de condições para que ele
extravase a sua raiva interior e que o faça da forma mais benigna para os que o
rodeiam. Este é o ponto, e é um ponto bonito, na minha maneira de ver.
Um dos locais de eleição para esse transvase de bílis é do
conhecimento de todos: o trânsito. Não irei discorrer sobre o tema em teoria,
ele já está tratado seja por especialistas, seja por curiosos, seja por amantes
da opinião livre em geral e da badalhoquice em particular.
A forma que escolhi para cumprir este mandamento na sua
versão terapêutica foi atrasar-me ligeiramente a arrancar ao sinal verde, proporcionando
assim ao condutor de trás momentos de verdadeiro êxtase de raiva e ódio sobre
mim expelidos de forma concentrada, mas sempre devidamente controlada e confinada no espaço.
A fórmula de escape terapeutico que tenho assistido com mais frequência e que me
parece de resultados mais imediatos é um «anda, caralho», dito apenas com um
ligeiro arregalar de olhos e um levantar das maçãs do rosto que muitas vezes
evidencia duas rugas laterais de belo efeito em caucasianas sem maqulhagem excessiva. Na maioria das
situações este movimento terapêutico atinge-se com um mero atraso-de-arranque
de 1,5 segundos mas já encontrei casos desesperados
de reacção aos 6 décimos de segundo.
Um segundo modelo de intervenção é aquele que tem associado
o formato de impropério simples: «foda-se, arranca!». Dado
o grande potencial de dinamização económica que tem associado, geralmente é
adequado a pessoas com uma intervenção cívica relevante e que se preocupam
realmente com o estado das contas nacionais, deficits e espirais recessivas. Por regra, esta fórmula terapêutica
deve vir acompanhada com aquele movimento de braços que numa primeira fase se
afastam em leque do volante para depois nele aterrarem com veemência recolocando-se em posição de ataque ao semáforo e ao carro da frente (o terapeuta - eu) .
Grandes oscilações de pescoço já não são necessariamente observadas nestas ocasiões, e como se
seguem arranques rápidos a terapia conclui-se sem efeitos secundários. Já
acompanhei pacientes que depois do arranque chegam mesmo a conseguir bufar duas
ou três vezes o que é altamente recomendável desde que não embacie.
Uma outra técnica terapêutica que também aconselho é a que
está associada a sinais de amarelo intermitente. Atrasar o arranque acima dos 2
segundos em bastantes destas situações consegue proporcionar ao nosso cliente do carro
de trás aquele movimento para trás com a cabeça e olhos no zénite e que, com jeitinho e paciência,
conseguimos que ainda esboce um «merda, mexe-te, merda». Se repararmos, este
impropério terapêutico é de enorme potencial pois não só permite a irritação
adicional de ter de dizer desenroladamente 3 émes seguidos, sendo que um deles é um verbo, e
ainda para mais é uma frase capicua, o que nalguns espíritos mais escrupulosos
adiciona bastante valor-de-exasperação.
É evidente que - e os leitores mais atentos e conhecedores
certamente já terão pensado neste reparo - nem sempre a terapia termina nem esgota com o
mero atraso de arranque seguido de impropério de ódio dirigido contra certos-incertos.
É preciso garantir que se segue um alívio e esse alívio tem de ser muitas vezes
concretizado com expressões em surdina como «não tens nada para fazer, cabrão»,
ou «é por causa destes cabrões que isto não anda para a frente», ou mesmo até um «país de conas é o que isto é» (as generalizações em certas sessões terapeuticas podem ser bastante apropriadas). E é nestes
momentos que o terapeuta que todos temos dentro de nós se deve sentir realizado.
Mais realizado que isto só mesmo hoje a seguir ao almoço quando uma miúda bem gira do pescoço cima, ali num semáforo às Amoreiras, depois de lhe ter atrasado um arranque em coisa de mais de 1,45 segundos, lhe consegui sacar um «fode-me assim outra vez, meu amor, fode», com sopradela de franja e tudo. São estas coisas gratificantes que nos ficam. Nem passei factura, que Deus me perdoe.
Mais realizado que isto só mesmo hoje a seguir ao almoço quando uma miúda bem gira do pescoço cima, ali num semáforo às Amoreiras, depois de lhe ter atrasado um arranque em coisa de mais de 1,45 segundos, lhe consegui sacar um «fode-me assim outra vez, meu amor, fode», com sopradela de franja e tudo. São estas coisas gratificantes que nos ficam. Nem passei factura, que Deus me perdoe.
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