A Magna Carta
Marília e Maurício, após
dois anos de namoro oficial marcado por uma oscilação programada entre momentos
de parcimónia hormonal e de exaltação erótica, decidiram aderir a uma fórmula histórica
e sociologicamente testada com relativo sucesso logístico por uma longa série
de gerações de alegados descendentes de Eva e decidiram-se casar em detrimento
de outras soluções antropologicamente válidas como a escravatura sexual ou a
promiscuidade.
Bem e mal alertados por
gente com boas e más experiências dotados de boas e más intenções, decidiram de
mútuo acordo, passe a redundância, estabelecer, conceber, redigir, assinar e
registar uma 'Carta Conjugal' que enquadrasse a sua futura relação matrimoniosa;
seria um documento com óbvios efeitos internos no casal mas também com
relevância para terceiros, sabido hoje que todos os terceiros são incluídos, ao
contrário do que poderia transparecer dalgumas leis da lógica simplificativa.
Foi num dia de chuva
molha-parvos que se dirigiram a um notário ali às Avenidas Novas, curiosamente
especializado em testamentos para toureiros e em divórcios derivados do
exercício de prepotência sexual feminina, a fim de deixarem solenemente
registado o documento que lhes haveria de constitucionalizar os direitos,
liberdades e garantias matrimoniais.
Outro dos capítulos mais
importantes deste documento fundamental era o que dizia respeito às amizades
que extravasassem a mera cordialidade social e profissional convencional. Ficaram definidas as «zonas possíveis para o
contacto físico» com terceiros que não parentes de 1º grau ( foram assim
excluídos todos os pontos que se enquadravam no conceito de 'extremidade',
designadamente falanginhas e falangetas, narizes, orelhas, pilas, joelhos,
mamilos, calcanhares e cotovelos - o rabo considerou-se subentendido) , o grau
de «isolamento permitido» (a pessoa mais próxima em isolamento não poderia
estar a mais de 2 metros
de alcance do olhar) e a duração destes «encontros em isolamento legal» ( meia
hora foi considerado o limite de tempo para temperaturas abaixo dos 18 graus,
mas acima desta temperatura ambiente só eram permitidos encontros em isolamento
com duração abaixo dos 5 minutos); quanto ao local dos encontros em isolamento
legal com terceiros era dada mais abertura (desde que respeitadas as normas
antes referidas) mas fora de qualquer possibilidade estavam locais onde se
constatasse a instalação, de forma temporária ou permanente, de peças de mobiliário
que permitissem o apoio de braços ou pernas ou até o aconchego lombar, e muito
menos adereços com propriedades dissimulatórias, como biombos, cortinados,
mesas de camilha ou cobertores de lã escocesa.
Uma das zonas de
regulamentação essencial é que a consagrava os princípios da igualdade. Marília
e Maurício tinham direito a tratamento igual em situações iguais, isso estava
expresso sem deixar margem para dúvidas. No entanto, não seria possível
escamotear a existência de diferenças estruturais e a sua consequência não poderia
ficar exposta às arbitrariedades das circunstâncias. Assim, se a altura mínima
duma saia de Marília podia ser regulada, o mesmo já não faria sentido para
Maurício que, dessa forma, teve de transigir numa limitação relativa à abertura
das suas camisas, que assim ficou limitada ao segundo botão, qualquer que fosse
a moda vigente. Houve, no entanto, total
liberdade para o branqueamento de dentes, o que acabou por permitir a Marília a
utilização de implantes ou alavancas mamárias, sem que para tal fosse necessário
reunir o Conselho de Concertação Glandular.
Tratava-se dum documento
longo, elaborado com cuidado, sem excessos burkânicos e num equilíbrio balanceado
de precisão e abrangência que, por exemplo, não interferia na imaginação de
cada consorte, que assim poderia perfeitamente estar a pensar no vizinho de
baixo enquanto se banqueteava nos entrecostos do parceiro, da mesma forma que
um rico pode pagar os seus impostos progressivos com boa cara enquanto chama
cabrão aos pobres, mas não poderemos aqui apresentar toda a amplitude ou
alcance desse documento de uma riqueza inquestionável.
No entanto, um importante
elemento adicional terá de ser referido. Nele ficou instituída a existência -
competências e modus operandi - do 'Tribunal
Conjugal', um orgão que deliberaria sobre todas as situações controversas que se
colocassem e que exigissem a sua análise à luz do texto - letra, pontuação e espírito
- da 'Carta Conjugal'.
Esse Tribunal era composto
por 13 membros, a saber: um pater famílias condom-free, um solteirão militante,
um libertino com provas dadas, uma divorciada ressabiada, um encornado
assumido, uma viúva alegre, um ou uma encalhada, uma mal-fodida, um frustrado
não psicótico, uma avozinha especialista em tricot, uma padreca da igreja
evangelista, uma fêmea do modelo sempre-em-prenhe, e um membro dos casais empenhados
de uma paróquia do diocese do Fundão.
O Caso
Raimundo fora um dos
namorados mais esmerados e entusiásticos de Marília e nunca se conformara com o
seu enlace com Maurício. Depois do casamento destes arrastou-se pelas sarjetas
do costume (psiquiatras, bordeis, vodka, amigas conselheiras e feias, amigas
conselheiras e boazonas, pornografia cara e barata, bolo de chocolate e séries
da fox) até que caiu em si , pôs mãos à obra e foi estudar Direito de 'Carta
Conjugal'.
Entretanto a vida de
Marília e Maurício lá ia correndo dentro da tramitação normal, com uma ou outra
ida periódica ao Tribunal Conjugal para esclarecimento de situações concretas
que iam aparecendo, das quais se destacam uma ida de Maurício às putas em Ibiza
enquanto Marília bebia Ponche com um amigo do infantário, uma exigência de
fellatio no aniversário da 1ª comunhão de Marília e a utilização por parte
desta duma máscara de Margaret Tatcher durante uma sessão em posição de
missionário (como retaliação a um preservativo com sabor a sardinha) e que
foram resolvidas com inteligência persuasória e equilíbrio por parte dos
Juízes, o mesmo já não acontecendo numa situação concreta em que Marília quis passar um fim de
semana romântico-a-dois em Veneza, enquanto Maurício queira ia jogar bridge
para Albufeira, tendo acabado os dois, depois duma decisão controversa e de
índole salomónica do Colectivo, a fazer canoagem na barragem da Aguieira.
Já profundo conhecedor de
todos os meandros do Direito da Carta, Raimundo ficou à espera duma
oportunidade para testar a adequabilidade constitucional do comportamento do
casal. A ocasião apresentou-se quando um
belo dia Maurício tentou sacar de Marília uma repetição da kamasutrica posição
retro-quadrípede como compensação de um cunnilingus efectuado depois de uma
copiosa derrota do seu clube de futebol. Marília, já de joelhos amassados, insurgiu-se de imediato com esta fria
contabilidade do parceiro, mas quando, por inércia, já estava quase a consentir
sem exigir a fiscalização preventiva do acto, recebe um sms de Raimundo a
propor-lhe um pequeno almoço na Baixa ao abrigo da regra de excepção consagrada
na 2ª Emenda do 'Acordo Conjugal' designada na gíria constitucional como
'brunch without broche'.
Aí se encontraram,
relembrando velhos tempos de uma frescura irrecuperável e acabou por ser inevitável
o desabafo de Marília. Assim, e entre um croissant misto e uma meia de leite
(Raimundo tinha apenas pedido um pingado), chegaram à conclusão que estavam
reunidas as condições para a fiscalização sucessiva da conjugostitucionalidade
de certas e determinadas práticas reiteradas de Maurício. Raimundo emitiu um
parecer, fazendo inclusivamente referências eruditas às Memórias de Adriano e
às famosas 'punhetas de roth' (como na gíria do Direito da Carta Conjugal é conhecida a possibilidade de denúncia do
contrato matrimonial quando uma das partes utiliza a auto-gratificação
solitária como escape privilegiado da frustração de expectativas), no qual dava
bastantes argumentos ao Tribunal Conjugal para determinar da prática de
repetidos comportamentos anti-conjugostitucionais por parte de Maurício e que
configuravam um inequívoco e irreparável desrespeito pela Lei Fundamental da
Conjugalidade.
Raimundo já esfregava as
mãos e fazia povoar os seus sonhos com noites escaldantes na companhia do
espírito de Marília e das respectivas carnes, quando sai o Acordão com uma
decisão inesperada e, no mínimo, controversa. Este estabelecia que o que devia
prevalecer era o Primado do Amor e da Estabilidade. Desde que o binómio
«lubrificação e intumescência» se mantivesse e desde que em paralelo existissem
meios económicos e biológicos para garantir a reciprocidade de gratificação, o
contrato matrimonial não poderia ser desfeito pela via conjugostitucional.
E foi assim que Raimundo
rapidamente passou de mãos esfregadas a mãos a abanar, e frustrada a
fiscalização sucessiva dedicou-se ao voyeurismo constitucional: mais
ejaculação, menos ejaculação, nada lhe dava mais tesão que colocar Marília em
tentação e Maurício em exasperação.
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