A Fiscalização Sucessiva


A Magna Carta

Marília e Maurício, após dois anos de namoro oficial marcado por uma oscilação programada entre momentos de parcimónia hormonal e de exaltação erótica, decidiram aderir a uma fórmula histórica e sociologicamente testada com relativo sucesso logístico por uma longa série de gerações de alegados descendentes de Eva e decidiram-se casar em detrimento de outras soluções antropologicamente válidas como a escravatura sexual ou a promiscuidade.

Bem e mal alertados por gente com boas e más experiências dotados de boas e más intenções, decidiram de mútuo acordo, passe a redundância, estabelecer, conceber, redigir, assinar e registar uma 'Carta Conjugal' que enquadrasse a sua futura relação matrimoniosa; seria um documento com óbvios efeitos internos no casal mas também com relevância para terceiros, sabido hoje que todos os terceiros são incluídos, ao contrário do que poderia transparecer dalgumas leis da lógica simplificativa.

Foi num dia de chuva molha-parvos que se dirigiram a um notário ali às Avenidas Novas, curiosamente especializado em testamentos para toureiros e em divórcios derivados do exercício de prepotência sexual feminina, a fim de deixarem solenemente registado o documento que lhes haveria de constitucionalizar os direitos, liberdades e garantias matrimoniais.

 Como enquadramento geral sabe-se que Marília tinha um rico historial de assédio, ou nalguns casos mero encosto exploratório, por parte de homens de bom porte, enquanto Maurício se arrastara com algum sucesso lúdico por ambientes de marginalidade sexual onde se privilegiava uma espécie de blitzkrieg erótico, também conhecido por orgasmo rápido.  

 Apesar deste documento não ter como objectivo a mera calendarização de actos sexuais e peri-sexuais , tanto na sua quantidade como qualidade ( daqueles que dão origem ao célebre e pitoresco : «eu cá fodo às quintas, quem está, está ») seria incontornável que estes fossem minimamente aflorados nesta forma contratual. Contudo, o corpo desta ´Carta Conjugal' afastava-se dum mero acordo pré-nupcial e visava essencialmente estabelecer qual o lugar dos valores fundamentais da mátria conjugal, como sejam o amor, o sexo, o carinho, a esfera íntima , a partilha obrigatória e a facultativa, a reprodução, entre muitos outros, e, não poderia faltar, a definição das circunscrições principais para as fidelidades, os excessos e os plafonds de recusa e rejeição.

 Tentando não causar escândalo nem embaraço na leitura notarial e pública do documento, nos artigos em que se regulamentavam as práticas de sexualidade mais recreativa tentou-se utilizar uma linguagem que, sem deixar de ser objectiva e isenta de ambiguidades, pudesse assinalar alguma motivação poética-cientifica subjacente. Assim, podiam encontrar-se normas que se referiam ao «botão de rosa plantado no ribeiro do Vale da Nádega da mulher», ou à «polpa do grande labial da consorte», como também tudo o que relacionasse a «suprema vaginalidade feminina» com a «sumarenta língua do parceiro», chegando até a referir-se que «a geometria da cópula deverá ser escolhida em regime de permanente alternância». Enfim, todo o articulado tinha de estar ao serviço do sucesso do Acto Único Conjugal que se pretendera regulamentar, sempre sem descurar a tradição historico-jurídica em que estava inserido.

 Uma das salvaguardas importantes da Carta Conjugal foi aquela em que Marília e Maurício assumiram que o serviço sexual subjacente à sua relação era tendencialmente gratuito, ou seja, tudo deveria ser feito de molde a que não houvesse ocasião para cobranças excessivas em nenhum caso, inclusive nas práticas mais arrojadas que fossem permitidas ao parceiro, nem, por isso, nas experiências efectuadas por qualquer deles fora do Serviço Matrimonial de Sexo (SMS), ou seja, nos chamados Sub-sistemas privados de Pulo da Cerca.

Outro dos capítulos mais importantes deste documento fundamental era o que dizia respeito às amizades que extravasassem a mera cordialidade social e profissional convencional.  Ficaram definidas as «zonas possíveis para o contacto físico» com terceiros que não parentes de 1º grau ( foram assim excluídos todos os pontos que se enquadravam no conceito de 'extremidade', designadamente falanginhas e falangetas, narizes, orelhas, pilas, joelhos, mamilos, calcanhares e cotovelos - o rabo considerou-se subentendido) , o grau de «isolamento permitido» (a pessoa mais próxima em isolamento não poderia estar a mais de 2 metros de alcance do olhar) e a duração destes «encontros em isolamento legal» ( meia hora foi considerado o limite de tempo para temperaturas abaixo dos 18 graus, mas acima desta temperatura ambiente só eram permitidos encontros em isolamento com duração abaixo dos 5 minutos); quanto ao local dos encontros em isolamento legal com terceiros era dada mais abertura (desde que respeitadas as normas antes referidas) mas fora de qualquer possibilidade estavam locais onde se constatasse a instalação, de forma temporária ou permanente, de peças de mobiliário que permitissem o apoio de braços ou pernas ou até o aconchego lombar, e muito menos adereços com propriedades dissimulatórias, como biombos, cortinados, mesas de camilha ou cobertores de lã escocesa.

Uma das zonas de regulamentação essencial é que a consagrava os princípios da igualdade. Marília e Maurício tinham direito a tratamento igual em situações iguais, isso estava expresso sem deixar margem para dúvidas. No entanto, não seria possível escamotear a existência de diferenças estruturais e a sua consequência não poderia ficar exposta às arbitrariedades das circunstâncias. Assim, se a altura mínima duma saia de Marília podia ser regulada, o mesmo já não faria sentido para Maurício que, dessa forma, teve de transigir numa limitação relativa à abertura das suas camisas, que assim ficou limitada ao segundo botão, qualquer que fosse a moda vigente.  Houve, no entanto, total liberdade para o branqueamento de dentes, o que acabou por permitir a Marília a utilização de implantes ou alavancas mamárias, sem que para tal fosse necessário reunir o Conselho de Concertação Glandular.

Tratava-se dum documento longo, elaborado com cuidado, sem excessos burkânicos e num equilíbrio balanceado de precisão e abrangência que, por exemplo, não interferia na imaginação de cada consorte, que assim poderia perfeitamente estar a pensar no vizinho de baixo enquanto se banqueteava nos entrecostos do parceiro, da mesma forma que um rico pode pagar os seus impostos progressivos com boa cara enquanto chama cabrão aos pobres, mas não poderemos aqui apresentar toda a amplitude ou alcance desse documento de uma riqueza inquestionável.

No entanto, um importante elemento adicional terá de ser referido. Nele ficou instituída a existência - competências e modus operandi - do 'Tribunal Conjugal', um orgão que deliberaria sobre todas as situações controversas que se colocassem e que exigissem a sua análise à luz do texto - letra, pontuação e espírito  - da 'Carta Conjugal'.

Esse Tribunal era composto por 13 membros, a saber: um pater famílias condom-free, um solteirão militante, um libertino com provas dadas, uma divorciada ressabiada, um encornado assumido, uma viúva alegre, um ou uma encalhada, uma mal-fodida, um frustrado não psicótico, uma avozinha especialista em tricot, uma padreca da igreja evangelista, uma fêmea do modelo sempre-em-prenhe, e um membro dos casais empenhados de uma paróquia do diocese do Fundão.

O Caso

Raimundo fora um dos namorados mais esmerados e entusiásticos de Marília e nunca se conformara com o seu enlace com Maurício. Depois do casamento destes arrastou-se pelas sarjetas do costume (psiquiatras, bordeis, vodka, amigas conselheiras e feias, amigas conselheiras e boazonas, pornografia cara e barata, bolo de chocolate e séries da fox) até que caiu em si , pôs mãos à obra e foi estudar Direito de 'Carta Conjugal'.

Entretanto a vida de Marília e Maurício lá ia correndo dentro da tramitação normal, com uma ou outra ida periódica ao Tribunal Conjugal para esclarecimento de situações concretas que iam aparecendo, das quais se destacam uma ida de Maurício às putas em Ibiza enquanto Marília bebia Ponche com um amigo do infantário, uma exigência de fellatio no aniversário da 1ª comunhão de Marília e a utilização por parte desta duma máscara de Margaret Tatcher durante uma sessão em posição de missionário (como retaliação a um preservativo com sabor a sardinha) e que foram resolvidas com inteligência persuasória e equilíbrio por parte dos Juízes, o mesmo já não acontecendo numa situação  concreta em que Marília quis passar um fim de semana romântico-a-dois em Veneza, enquanto Maurício queira ia jogar bridge para Albufeira, tendo acabado os dois, depois duma decisão controversa e de índole salomónica do Colectivo, a fazer canoagem na barragem da Aguieira.

Já profundo conhecedor de todos os meandros do Direito da Carta, Raimundo ficou à espera duma oportunidade para testar a adequabilidade constitucional do comportamento do casal.  A ocasião apresentou-se quando um belo dia Maurício tentou sacar de Marília uma repetição da kamasutrica posição retro-quadrípede como compensação de um cunnilingus efectuado depois de uma copiosa derrota do seu clube de futebol. Marília, já de joelhos amassados,  insurgiu-se de imediato com esta fria contabilidade do parceiro, mas quando, por inércia, já estava quase a consentir sem exigir a fiscalização preventiva do acto, recebe um sms de Raimundo a propor-lhe um pequeno almoço na Baixa ao abrigo da regra de excepção consagrada na 2ª Emenda do 'Acordo Conjugal' designada na gíria constitucional como 'brunch without broche'.

Aí se encontraram, relembrando velhos tempos de uma frescura irrecuperável e acabou por ser inevitável o desabafo de Marília. Assim, e entre um croissant misto e uma meia de leite (Raimundo tinha apenas pedido um pingado), chegaram à conclusão que estavam reunidas as condições para a fiscalização sucessiva da conjugostitucionalidade de certas e determinadas práticas reiteradas de Maurício. Raimundo emitiu um parecer, fazendo inclusivamente referências eruditas às Memórias de Adriano e às famosas 'punhetas de roth' (como na gíria do Direito da Carta Conjugal  é conhecida a possibilidade de denúncia do contrato matrimonial quando uma das partes utiliza a auto-gratificação solitária como escape privilegiado da frustração de expectativas), no qual dava bastantes argumentos ao Tribunal Conjugal para determinar da prática de repetidos comportamentos anti-conjugostitucionais por parte de Maurício e que configuravam um inequívoco e irreparável desrespeito pela Lei Fundamental da Conjugalidade.

Raimundo já esfregava as mãos e fazia povoar os seus sonhos com noites escaldantes na companhia do espírito de Marília e das respectivas carnes, quando sai o Acordão com uma decisão inesperada e, no mínimo, controversa. Este estabelecia que o que devia prevalecer era o Primado do Amor e da Estabilidade. Desde que o binómio «lubrificação e intumescência» se mantivesse e desde que em paralelo existissem meios económicos e biológicos para garantir a reciprocidade de gratificação, o contrato matrimonial não poderia ser desfeito pela via conjugostitucional.

E foi assim que Raimundo rapidamente passou de mãos esfregadas a mãos a abanar, e frustrada a fiscalização sucessiva dedicou-se ao voyeurismo constitucional: mais ejaculação, menos ejaculação, nada lhe dava mais tesão que colocar Marília em tentação e Maurício em exasperação.

Sem comentários: