Carlos e Licínia
concluíram, depois do levantar da neblina, que afinal lhes bastava o amor e uma
mina. Para esventrar o coração nada melhor que a escuridão. Juntos foram em
romaria a Moncorvo, queriam ficar marcados pelo ferro. Mas a brasa que se lhes apresentou
não estava suficientemente quente, as marcas podiam ficar com o aspecto duma
tatuagem, e eles queriam uma união mais bovina, queriam sentir na coiro um
ardor que depois se estendesse às miudezas, quem só ama com o coração e
despreza o rim, a bexiga ou mesmo a vesícula corre o risco de ganhar cálculos
em todos os órgãos moles. E não há nada pior que um amor calculista. Moncorvo
estava às moscas, a mina não mostrava condições para ser explorada, mas mesmo
assim eles desceram até uma profundidade que lhes garantisse um mínimo de
dignidade. Nunca olharam um para o outro, nunca trocaram uma palavra, tinham
receio das represálias dos sentidos mais básicos, e ainda pensavam que o
deleite amoroso era asensorial. O grande problema da escuridão é que não
fornece sombras, e sem contrastes não há possibilidade de moer consciências em
condições. Sem tormentos a consciência liberaliza-se, transforma os dilemas em
jogos de interesses e enterra-se na falácia do equilíbrio. Por uma daquelas
felicidades que só se dão em séculos de translações de planetas, Carlos e
Licínia não tinham nada em comum e quando roçavam pelas paredes da mina produzia-se
apenas uma frescura que lhes cortava a pele como uma tangente de gelo. Cada vez
se sentiam mais unidos por aquela combinação de estranheza e inquietação que
ora faz santos ora faz carrascos. O Ouro e o Tungsténio já tinham ficado longe
e o ferro parecia possuir aquele magnetismo básico que os limpava de todas as
suas energias de destruidores de emoções. Deitaram-se em cima da pouca lã que
já se mostrava tricotada e pensaram apenas no dia em que o sol os viesse
resgatar. Já não precisavam sequer de ver sombras projectadas na parede da
mina, bastar-lhes-ia a certeza de saberem que quando a lua nova dá biblicamente
a outra face aparece esplendorosa uma lua cheia.
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