O astracã de Valongo


Licínia, sem que Carlos soubesse, vivia à boca da mina. Levava as suas lãs, passava o tempo a imaginar torcidos especiais mas não chegava a tocar nas agulhas. Carlos tinha-lhe aparecido num sonho vestido com uma capa de linho azul e com um ar como que atormentado pelo frio. Foi incapaz de resistir, pediu uma licença sem vencimento, abasteceu-se da melhor lã num armazém em Valongo e alugou um quarto numa pensão em Valpaços. Olhava para os novelos como se fossem avatares duma qualquer graça, autênticos sacramentais com pêlo. Acariciava o rosto com aquela lã de benzedura e imaginava-se dentro da mina a aquecer Carlos e a servir-lhe o tungsténio numa bandeja de mica polida. Haveriam de saber combinar a rigidez com a suavidade foi a sua interpretação do sonho. Um dia, encheu-se de coragem e foi falar com o encarregado perguntando-lhe por Carlos. Ah, o Búzio, esse sacana anda sempre a polir as paredes da mina, julga que vai sair alguma sereia do freático. A menina se lhe vai fazer um cachecol tenha cuidado senão ele ainda se enforca nele. Licínia ficou com o ar a fazer bolhinhas na traqueia e caiu de joelhos na porta da mina. Um dos novelos rebolou até parar numa bota encarniçada. Sim, como os filmes. Carlos agarrou na lã, levou-a à testa, esfregou o suor e de seguida pegou em Licínia como numa cena de pietá invertida. Agora sim, estavam prontos para voltar a jales.

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