Ambiente típico de meia casa: uns a acabar e outros a começar. Uma das coisa que L. nunca soube é que eu gosto de misturar o salgado com o doce, ali, mano a mano, chocalhando papilas. Hoje ela estava, como se costuma dizer: alheada de tudo; escondida entre duas constelações. Andava pelas mesas maquinalmente, como uma vitrina de sobremesas, aparando necessidades, fomentando caprichos, alimentando ilusões de carne e de peixe, sei lá, cumprimentou-me como se fosse apenas mais um, se bem que todos somos apenas mais um, mesmo que todos, algum dia, esperemos ser o-um-mais de alguém. Hoje pedi filetes de polvo. O polvo é um animal de despedidas, muitos braços para dizer adeus. Sabia que iria estar mais uma temporada sem a ver. Ela também sabia. Às vezes parece que sabe tudo, chiça. Nos últimos dias senti que este meu regresso tinha sido uma desilusão para ela. Todos os dias eram imprevisíveis, todos os dias se desenrolavam sentimentos diferentes, não havia continuidade, não havia a tranquilidade duma causa de mão dada com a consequência. Não chegou a haver ciúme, não chegou a haver desencantamento, se calhar nem sequer tinha havido saudade, e apenas uma curiosidade com um bom disfarce. Desta vez vou enviar-lhe este meu diário pelo correio, como se fosse uma encomenda de pasta fresca, depois logo se vê; pode ser que assim lhe ponha o coração a bater mais, ou então que o queime com mais cuidado, como quem grelha peixes espalmados. Numa escala de cinco pôr o coração a bater mais é nível dois, as pernas a tremer é nível três, e suores frios é nível quatro. Sonharem connosco é nível quatro e meio.
Sol na eira, chuva no nabal. Todos o desejamos. Tinha uma novidade no menu para te sugerir: um caril verde tailandês, feito por uma amiga que viera de longe em visita. Suavemente picante, o doce do leite de coco a controlar a irreverência salgada do molho de ostras, o toque ácido do sumo de lima a apelar aos sentidos. Todos. E no entanto... Gostarias de uma tal fusão de sabores, materializada de forma delicada mas sensual no teu prato, que tanto desejava oferecer-te neste dia? Serias capaz de reconhecer toda a dimensão da dádiva contida numa proposta tão simples como a linha de uma ementa do dia? "Filetes de polvo, pois bem. Com arroz branco ou de tomate?", só. Não era o momento para te dizer as palavras que faltavam, há um tempo para tudo, diz o Génesis, há um tudo para cada tempo, disseste-me no passado. E sobre o nada, o que dirás? Que "a questão principal é a do sentido / não das frases: dos factos"? (*) Tarte de amêndoa e tangerina, agridoce. E o "riso / cada vez mais é um modo / de acabar, talvez as coisas / já sejam só palavras, tudo / existiu na mente, e acreditámos / que ela estava / também, fora de nós dando existência / aos que eram pensamento"? (*) A sua conta, Doutor. "Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras." (**) E até sempre. "Conheço o sal que resta em minhas mãos / como nas praias o perfume fica / quando a maré desceu e se retrai. [...] A todo o sal conheço que é só teu, / ou é de mim em ti, ou é de ti em mim, / um cristalino pó de amantes enlaçados". (***)
L.
(*) Gastão Cruz, in 'Escarpas' (**) Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum' (***) Jorge de Sena, in 'Antologia Poética'
5 comentários:
Clap clap clap! para ambos ;)
E Já agora tb uma salva de palmas para o sr Tiburcio, o dono do restaurante :)
grande litania gastro-amorosa...espero que não venha por aí nenhum jejum...
"e sobre o nada q dirás?" pois é, pois é...
bjs
bem, esse «grande litania» soa-me a 'grande seca' eheh
um beijo, com Tudo de bom para si :)
que nada! há por aqui "muito sumo". :)
obrigada, (sabendo que "Tudo" é muita coisa)vai chegando para os gastos. ;)
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