Leio os evangelhos diariamente há carradas de anos e sempre que pego nessa leitura tenho a mistura de três sensações: a) sensação epifânica : porra nunca tinha lido isto; b) sensação indianajónica: é hoje que eu vou descobrir o que nunca foi descoberto; c) sensação bulímica : fosgasse, não retive nadinha. A Bíblia é, por um lado, um livro de boa (ilusória) economia, quero eu dizer: com poucos recursos de leitura consegue devolver um conjunto robusto e diversificado de retribuições, mas, por outro lado, de má economia: pode devolver mais incógnitas e mais complexas do que aquelas que investimos. Os católicos tentam resolver de várias formas este aparente desequilíbrio, mas a mais corrente e experimentada é com uma boa almoçarada seguida duma sesta (também surtia efeito com foda) bem dada.
Acabei de cumprir apenas a primeira metade da receita (e está tudo aos gritos cá em casa devido a um problema de logística doméstica do qual eu já devidamente e em muito boa hora me auto-absolvi) e lembrei-me disto por causa do excerto do evangelho de S. Mateus que é lido hoje nas missas. Contém uma das passagens (vem quase logo a seguir ao hiper - mas não sobre - valorizado sermão da montanha) mais chispêtê-ó de todo a mensajário cristão: como resposta ao 'olho por olho dente por dentre' judeu é apresentado o 'dar a outra face' que parece vir diafanamente de rigorosamente lado nenhum. Nunca ninguém viverá o suficiente para perceber esta merda, e por mais poesia que lhe jorrem por cima, carregaremos o fardo como mulas distraídas. Penetrando no mais intimo da alma humana mesmo sem recorrer (ainda) à iluminação trágica, Jesus acabava de arrasar - antes de terem nascido - com todas as estruturas do psicologismo moderno, pedindo-nos aquilo que nem sequer se podia saber que existia, e acenando com impossíveis ao mesmo ritmo dos sorrisos nos anúncios do pingo doce. A proximidade com a fé católica põe-nos constantemente as mãos à beira do fogo. Deus sempre teve imensa lata - pode chamar-se 'o absurdo da fé' - e todos estamos destinados a flausinar pela vida com as sensações mal disfarçadas de imperfeição (nos melhores dias) e de grandes merdosos (nos restantes) . Felizmente, como o título esclarece, nem sequer vivemos uma vez. É a chamada abébia da eternidade.
O titulo é um aforismo de Karl Kraus, (um tipo que irá estar muito na moda) em Sprüche und Widerspruche, pág 177, ed Suhrkamp
A imagem é de Jheronimus Bosch, (sempre na moda) De Kruisdraging, do msk de Gent
3 comentários:
Conto, mas não é para exibir-me (talvez só um pouquinho ;) vi - não pude evitar a "sensação epifânica"; no laboratório do Museu do Prado, parte do tríptico "Jardim das Delícias", de Jheronimus Bosch. Vê-lo já é perfeito, encontrá-lo assim, fragilzinho sendo tratado, como que cochilando: foi demais!
Isso posto, o Sr também é outro tipo "sempre na moda".
bejoca
;)
E
"L'imagination est la folle du logis." Malebranche in "De la recherche de la verité", Livres IV-VI, Ed. Vrin :)
C. (moi même)
como fusão poderíamos dizer q 'a imaginação é o jardim das delícias de laboratório' :)
(tanto o bosch como o malebranche já não podem reclamar muito...)
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