Nullum est vitium sine patrocinio

Então como é para o Dragão, vou mostrar o meu lado mais delicodoce, aquele lado que, ao ser olhado de esguelha poderá atingir o leitor com raios vindos do Poderíssimo Altíssimo, mas, ao ser observado de frente, poderá transformá-lo em pedrinhas da calçada pois todos temos o direito a sonhar com os poderes da medusa antes de nos cortarem os tom..., vá, a cabeça.

Então o desafio, ai credo um desafio, é: como olhar para a fragilidade, para a fraqueza, a baixeza, o desprezível, a mediocridade humana aos olhos daquilo que o cristianismo iluminou, ou seja, do homem destapado, descoberto, pelo fenómeno historico-literário, mas real, da Redenção, e confrontá-lo com o Deus que Jesus também revelou em simultâneo. Escolherei a rota pelo termo 'fragilidade' porque é mais abrangente, eloquente, e suave, como o português; e tentando não repetir miudezas rudimentares.

1. a fragilidade como condição - O homem tem uma tendência irreprimível para se definir e para ajustar a sua definição à sua existência. No fundo, todos somos existencialistas, uns logo quando nos dói a barriga, outros só mais tarde quando a diarreia começa a pollockar-se na cerâmica. Quem não perceber que é pó, corre o risco de se apaixonar por uma vassoura. Mas, vá lá, Deus não é o Mestre aspirador. Quando foi preciso safar um povo, Moisés foi adoptado por uma princesa Egípcia, mas quando foi preciso fazer uma redenção Deus escolheu para o seu Filho um carpinteiro. É esta a lição, é esta a inspiração; é esta a 'emanação'.

2. a fragilidade como destino - Estando posto de parte o Progresso como variável da Criação, sobraram-nos os seus subprodutos. No entanto, a experiência mostra-nos: fazem-se fortunas com restos. Uma constatação parece-me não ser ilusão de óptica: a vida nunca será um desperdício. O Altíssimo observa e não deixará que nada se perca no caminho. Às vezes tanta fé nisto até irrita. Antes uma mediocridade privada na mão que dois bens comuns a voar. Não desperdicemos a ontologia de Deus com causalidades de vão de escada.

3. a fragilidade como genoma - É oficial: estamos marcados. A Igreja na sua sapiência (alguma esperteza e divina inspiração) aproveitou a instituição dalguns sacramentos para 'dourar a pílula'. Jesus ao deixar-se baptizar por João Baptista parece dizer: A sujidade não é apenas uma impressãozinha na pele, mas também não é preciso um milagre, nem um grande jejum, basta chocalhar um bocadito de água com um bocado de fé. O nosso grande poder afinal está equidistante da banalidade e da grandeza. É este outro dos grandes legados do Cristianismo: a distorção da noção de dimensão. O poder para os pequenos o amor para os grandes. Não há forma de sair disto para quem tem um mínimo de fé, um niquinho vá. Mas a transcendência enfiada à pressão na nossa mamífera fragilidade só pode produzir girafas místicas.

4. a fragilidade como circunstância - uma das provas mais consistentes da existência de um Deus em condições é sabermos que existem filhos da puta em actividade. E mais, que esses filhos da puta nos podem foder o juízo e o coiro. E mais, esses filhos da puta quase nos fazem pensar que Deus foi algo que criámos nas nossas pobres cabecinhas para nos proteger dos filhos da puta e afinal nicles; a dúvida está no mesmo sitio da fé e agarra-se quase da mesma maneira. Onde estava o poder de Deus quando o pescador que havia escolhido para edificar a sua Casa morria crucificado de cabeça para baixo num coliseu. Um poder estava na alma desse homem, outro poder estava no gajo que tinha o polegar virado para baixo. Vivem lado a lado. Mas é essencial que quem põe e dispõe com os polegares nunca pense que tem de se inspirar ou receber legitimações d'Aquele que decora os tectos de capelas.

5. a fragilidade como escolha - Quando temos o prato à frente nem sempre escolhemos comer. Há também mil e uma maneiras de responder ao olhar de Deus; fazer merda é uma delas, virar-lhe as costas outra, seguir como se nada fosse outra, tentar enganá-Lo outra. Mas cada sim traz sempre atrás um não. É esta a nossa real fragilidade. O nosso poder de trazer por casa é o de limitar o nº de nãos por trás de cada sim. O compromisso é a nossa sobrevivência e a nossa morte.

6. a fragilidade como fracasso - A noção de Poder de Deus é essencial para a legitimação da fé, sim, isto não é possível contornar. Uma das últimas frases de Jesus, - já depois de ter voltado do 'reino dos mortos' e dizendo aos apóstolos para porem sebo nas canelas e toca a mexer dali fora - é (em S.Mateus): «Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide ...». Mas isto demonstra (me) também o quê? Que Jesus sabia que os homens precisam do conforto do poder para se realizarem, para estarem confiantes e, naquele caso, para não terem medo de nada. Assim, nunca fracassariam na missão. A fragilidade humana, que já os tinha atraiçoado mesmo à frente de Jesus, não lhes provocaria o quebranto na hora de apregoarem Deus pelo mundo (aliás é aí que radica também uma quase inexplicável força que têm muitos missionários), e tanto inspiraram poderosos como miseráveis. Aquilo que salva e aquilo que corrompe convivem no mesmo porão.

7. a fragilidade como droga - Sermos complacentes com a fragilidade humana é um golpe fatal. Não exigir ao homem uma conduta digna é recolhermos a cabeça e o coração à zona do intestino. A nossa fragilidade pode ser o nosso vício, a nossa justificação, a nossa metadona para nos irmos aguentando. É uma linha muito fina a que separa a boa da má fragilidade, e o poder na cidade dos homens vive das duas; a solução está na frase clássica de Jesus: «quem quiser ser grande entre vós, faça-se o servo de todos». É uma lei de anti-poder. Afinal, olha-se para um Deus Altíssimo e Omnipotente e ele receita-nos: serve os outros. Mas mesmo para servir os outros é preciso ter cuidado com os superávites de inspiração divina.

19 comentários:

Anónimo disse...

A fragilidade como fracasso (ou "a diferença só se for nas maiúsculas"":

"A noção de Poder de Deus é essencial para a legitimação da fé"

"O poder é uma construção estritamente humana. (.../...)
'o poder' é uma coisa do urbanismo da cidade dos homens, na cidade de deus só há aquilo que se pode sintetizar por 'amor', pois a confrontação com Deus impede toda a lógica inerente aos mecanismos de poder."

ass: Hey, you, you without the identification disk, get outa the water

zazie disse...

"Antes uma mediocridade privada na mão que dois bens comuns a voar".
ehehhe

Está muito engraçada a tua defesa. Fica-me outra pergunta.

E então o demo? o grande enganador? o anti-cristo, como é que entra na história mais à Novo que Velho Testamento?

É engraçado que até a iconografia do Deus "architecto do universo", O Ex-machina, passa para a do diabo que controla a matéria terrena e dela conhece os segredos.

aj disse...

hey, nadador,

O Poder de Deus é essencial para a legitimação da fé, e absolutamente desnecessário, irrisório, atrapalhador para o poder na cidade dos homens. Aliás O Poder de Deus é igual ao Amor de Deus , á Ira de Deus , à Misericórdia de Deus , à cabeleira de Deus, aos músculos de Deus, ao Ser de Deus, ó caraças!

(E cuidado, ó meu, agora vais apanhar a casa dos Hallorans, e os gajos são nudistas e não têm filtro nem bomba na piscina)

aj disse...

Zazie,

Ora o demo...eu conservo com unhas e dentes a minha iconofilia infantil (não encontrei nada nem intelectuamente nem sentimentalmente mais limpinho): é um 'anjo mau', esse sim desafiou o Poder ( desprezou o Amor, no fundo) de Deus e exerce um óbvio proselitismo da renegação, aproveitando a fragilidade humana, que conhece como 'ninguém' em todos os seus aspectos, e demosntrando q não se consegue ser mau sozinho.
Não sei se é verdade, mas sendo apenas alegoria consegue enquadrar o mistério do mal duma forma antropologicamente gerível.

Arranjas melhor? :)

zazie disse...

Arranja um séquito de diabretes e pobres diabos. E mais um luciferino que acabou trancado nas entranhas da Terra.
":OP

Agora o Anti-Cristo é todo "segunda vinda" é todo evangélico e, por aí, desconfio que não te safas da beatificação do Poder terreno.

aj disse...

Até o belzebu teve de arranjar a sua new wave :)

zazie disse...

Bota aí o Zeca Baleiro e Heavy Metal do Senhor, que o Dragão acompanha já à guitarra para estrear os pickups.

":OP

aj disse...

no fundo, we are the world we are the children :)

zazie disse...

ahahahahaha

Já se avacalhou uma reflexão tão séria.

":O))))))))

zazie disse...

Estás tramado. O Dragão já topou que misturaste Deus com o Diabo.

Agora vê lá se chove.

aj disse...

Já vi ! eheh vai chover, claro! :)

Anónimo disse...

O opiniondesmaker está a viver uma espécie de "lua de mel com Deus" (Efésios 2:1-10), tem de tudo até Diabo, não vá entrar algum tear na via e não ter com quê!

blanche

aj disse...

enquanto o diabo se vier aqui 'deleitar' pode ser que deixe o resto do pessoal mais aliviado

blanche disse...

Constato alguma usurpação de identidade. Será obra de algum «diabo»?

aj disse...

Não sabia que agora o diabo veste blanche

blanche disse...

Poucos terão retratado a fragilidade humana como Shakespeare, o Mestre, reduzindo à esterilidade tantas e tantas discussões.

Since brass, nor stone, nor earth, nor boundless sea,
But sad mortality o'er-sways their power,
How with this rage shall beauty hold a plea,
Whose action is no stronger than a flower?
O, how shall summer's honey breath hold out
Against the wreckful siege of battering days,
When rocks impregnable are not so stout,
Nor gates of steel so strong, but Time decays?
O fearful meditation! where, alack,
Shall Time's best jewel from Time's chest lie hid?
Or what strong hand can hold his swift foot back?
Or who his spoil of beauty can forbid?
O, none, unless this miracle have might,
That in black ink my love may still shine bright.

w. Shakespeare, «Sonnet 65»

aj disse...

Mas repare Blanche, logo no soneto seguinte (66), o Shakesp diz q apesar de tudo a vida não é desperdício:

«Tired with all these, from these would I be gone /

Save that to die I leave my love alone»

Anónimo disse...

(ena, ganda manif! ou os portugueses são muito dados à espiritualidade ou estes artistas, em vez de trabalhar pª o PIB, trabalham pª a palheta? se o PM soubesse que reduzir vencimentos aumentava a espiritualidade há muito que nos teria tornado uma sucursal do Vaticano, ambrosianos incluídos, pª reduzir a dívida externa :)

A fragilidade é condição da espécie humana, a mais improvável, frágil e indiferenciada das espécies actuais, seja mero acaso ou 'design inteligente' o que a originou - assim dá pª criacionistas, relativistas, evolucionistas,humanistas, falsificacionistas, sportinguistas e até portistas. Aceitar esta evidência simples da Biologia é, de alguma forma, acreditar desde logo na possibilidade do Homem, defeitos, virtudes, alma, acne e cabelos brancos incluídos.

C. (moi même)

aj disse...

C. , a fragilidade é uma coisa que vende muito bem.
Mas a 'fragilidade' aqui foi apenas uma muleta para o guião. Eu cá sinto-me fortíssimo.