Chuva em Novembro

Quando os conterrâneos da Maité Proença traduziram por 'ordem implicada' a Implicate Order que o físico David Bohm trouxera para a praça pública no início dos anos 80, Deus nosso Senhor, levemente abespinhado, decidiu finalmente pôr o planeta sob escuta; mandou uma dupla de anjos montar um tenda na parte de trás do Hubble para ninguém topar e vai de instalar antenas multidireccionais viradas para todas as aulas de física do universo, churrascarias de carne incluídas. Quando Deus nosso Senhor decidiu que a suportar esta merda subatómica toda iria estar uma mistura de tudo e de nada nunca pensou nas traduções brasileiras, e isso estava agora a mostrar-se uma certa imprudência face à capacidade da língua portuguesa tropicalizada em libertar toda a teoria quântica e em transformar o vazio desconhecido numa espécie de cúmplice da grande barrela universal em expansão, descobrindo assim a careca conspirativa do Criador.

É hoje absolutamente certo que Deus não tinha especial pachorra para cálculos e mandou dois anjos que tinham ganho um concurso de ideias, e que possuíam experiência em roleta, desenvolverem uma espécie de gelatina transparente e pegajosa onde toda a energia iria desovar em forma de partículas que baloiçam qual pedacinhos de fruta cristalizada. Umas acabam por se chatear e vão passar umas temporadas no bolo rei, enquanto outras se afeiçoam ao mundo do vácuo gelatinoso e passam o tempo na palheta umas com as outras dizendo mal dos iogurtes com pedaços e fazendo olhinhos para formulas matemáticas com aspecto de bordado de lingerie.

A primeira grande dúvida que se colocou ao Altíssimo foi se haveria de compor uma banda sonora para acompanhar os saltos de vácuo gelatinoso, mas depois de ter antecipado o som dos discos dos animal colective decidiu que a música só deveria aparecer uns milénios mais tarde, quando o chimpanzé já tivesse resolvido os problemas relacionados com o polegar oponível. Assim, o realmente primeiro problema físico da criação foi efectivamente quando Deus teve de fazer com que um electrão aos saltos de trampolim pela angélica e invisível gelatina não produzisse o mais piqueno ruído, sabendo-se de antemão a dificuldade pois por detrás dum grande electrão está sempre uma grande protona; a zumbir-lhe.

Um mundo de fundo gelatinoso e silencioso a fazer de cama elástica a umas merdas cristalizadas aos pulos, e sem prestar contas se não a um casal de anjos mafiosos, foi então como isto se processou na sua base, e assim se manteve desconhecido até gajos como o Nils Bohr terem desencantado o bailado quântico à pala dumas lentes embaciadas num microscópio, e imbuídos duma poeira cósmica chamada curiosidade científica, uma espécie de sarna mas que faz menos comichão. Por causa das tosses, neste momento muitos deles amassam pão de centeio num purgatório gerido pelo pingo doce.

Quando Deus começou a topar que estava quase a ser descoberta a tramóia chamou os dois anjos, de seus nomes Soromenho e Polidoro, e disse-lhes: quero isto abafado. «Lancem a confusão, façam crer por uns tempos que eu não existo e que a gelatina é apenas uma espécie de fruta cristalizada mais líquida, e se for preciso tratem de ter uns jornalistas por conta, preciso de sossego para voltar a repensar esta coisa, vou voltar a estar atento àquela cegada da economia, julgo terem avançado mais nas teorias do caos do que propriamente os físicos».

Soromenho e Polidoro, os dois anjos responsáveis pela gelatina quântica, que viviam em união mística sem registo civil, e até tinham conseguido autorização de Deus para adoptar uma ninhada inteira do cometa Halley, arregaçaram as asas e puseram-se ao caminho, tendo-lhes sido especialmente recomendado para não se esquecerem que Deus para além de ser o electricista-chefe também é amor, a forma suprema de energia, já se sabe. Depois de recolhidas as escutas obtidas na ré do Hubble, Soro & Poli diagnosticaram que no planeta terra se vivia um caso típico de 'esclerose da causalidade', ou seja, obcecados com uma 'história repleta de pelourinhos e guilhotinas' (ouvi esta frase ontem na televisão e gostei tanto que não resisti), os homens escondem-se numa mistura pendular de indiferença e de escândalo. De irascibilidade e quessefodismo. Deus teria de agir rápido.

Encontraram Deus embrenhado em fórmulas de matemática duvidosa, mantinha-se a sua mania de tudo fazer para que d'alguma forma pudesse ser percebido, testado, gostava de milagres mas acabavam por lhe dar uma alguma azia - coisa que mesmo que quisesse explicar ninguém acreditava. Estava ligeiramente arrependido por não ter posto música no salto de trampolim dos electrões na gelatina invisível, pois a música tinha-se revelado um óptimo ambientador, e inclusive poderia ter tranquilizado as mentes mais desconfiadas ou espevitado os mais crédulos, mas fazê-lo agora daria um certo aspecto ilusionista à coisa e havia pergaminhos metafísicos a defender. Se bem que Deus, como o retiveram os grandes homens de Estado, nunca receara o ridículo.

Mostrar mais, tapar mais, mistério, revelação, era afinal esse o dilema que Soromenho & Polidoro tinham colocado em cima da mesa de Deus. Uma dúvida apenas para deuses ou coristas, registe-se.

Fora descoberta a possibilidade duma 'ordem implicada' na grande tramóia da Criação. Não era implícita era implicada. Uma gelatina cúmplice com o Criador, onde estava gravada a verdadeira atracção universal, por onde tinham de passar periodicamente os constituintes básicos do ser para ora se refrescarem, ora receberem indicações de viagem, ora se abastecerem de energia. Era uma estação de serviço com loja de conveniência. No núcleo do átomo vivia-se, pois, um mais que corriqueiro ambiente de amanuência sob o aspecto duma sofisticada réplica de cosmologia em formato liliputiano. Estava encontrada a chave: continuar alimentar a grande aventura da ciência com novas qualidades de gelatina quântica, novos sabores, novos aromas, novas texturas. Soromenho e Polidoro tinham uma nova missão depois da distracção evolucionista de que os biólogos progenetas se tinham tentado aproveitar para construir os seus planos de reforma.

O mundo emprenhado pela consciência e apalpado pela inconsciência sabia agora que a desconfiança não chegava para o conhecimento, que o conhecimento não chegava para o bem estar , que o bem estar não chegava para a felicidade e que a felicidade era afinal uma mera construção do excesso de confiança. A pegajosidade quântica da gelatina garantiria sempre a eficácia do eterno retorno. Soromenho e Polidoro desmontaram então o aparato da ilharga do Hubble e compraram acções da Prisa. Ao sétimo dia Deus em vez de ter descansado deveria ter acendido a televisão antes de tirar as suas conclusões mais definitivas.

Ficaram apenas por explicar os pormenores da escolha de Soromenho e Polidoro para toda esta dinâmica da criação do, soit disant, mundo físico. Deus vivia momentos de fastio, tinha havido a rebelião de Lucifer e assim, mas a coisa amainara. Lembrou-se então de lançar um concurso de ideias à sua corte de anjos para poder escolher o melhor substrato para a Criação. A ideia da base quântica de gelatina da dupla Soro & Poli sobressaiu sobre a de Gabriel (que ainda assim recebeu uma menção honrosa pela sua ideia da onda cósmica, e por isso foi premiado uns milénios depois com a Anunciação) e também sobre a do anjo Inácio que tinha sugerido uma complicada combinação de gases (mas que mesmo assim ainda teve o seu momento de glória no Big Bang, que acabou por ficar conhecido na gíria angélica como a cólica-do-inácio). Deus tinha ficado seduzido pela combinação entre movimento e invisibilidade que a solução de Soromenho e Polidoro consubstanciava e deu-lhes carta verde, tendo entrado pessoalmente no processo apenas quando os gases produzidos pela cólica-de-inácio já se mostrassem minimamente respiráveis. O Natal ficou então aprazado para Dezembro.

4 comentários:

maria disse...

parece que o Policarpo entrou à sorrelfa...ou o Polidoro tem alguma agenda escondida?

maria disse...

ademais, desconfio que o Polidoro anda a tramar o Soromenho. No fundo, no fundo não passa dum "Pólidor" isto é latim, caso não tenha reparado.

aj disse...

de facto o primeiro nome escolhido foi policarpo, mas depois mudei e em homenagem ao antigo ciclista francês (Poulidor)ficou polidoro. Mas, pelos vistos, um ainda me m'escapou.
nada mais q isto, sou mto básico :)

maria disse...

giro, giro foi que estava a gozar comigo própria por não saber escrever com itálico e dei uma calinada com o politóre. o rei vai mesmo nu. e nem sabe andar de bicicleta. ;)