‘A vida não é argumento’ [8/9]

A minha falsificação mais arrojada foi mesmo quando produzi uma ‘suposta’ sequela do ‘Pickpocket’ de Bresson. Seria, no fundo foi, um ‘Pickpocket II - la rédemption’, filmado no metro de Paris, num formato próximo do documentário e, por isso mesmo, com uma plausibilidade bressoniana mais controversa, ou seja, o enredo era comandado pela vertigem da circunstância e não por uma subliminar predestinação. No entanto, o encaixe financeiro que se me afigurava possível motivou-me de forma irreversível: soubera que um coleccionador belga de filmes raros e minimalistas pretendia criar uma espécie de museu da cera do cinema e, constou-me, precisava duma relíquia mediática. Eu sentia-me a pessoa certa, aparecendo-lhe com um Bresson em registo quase de hidden camera. Bresson, iria eu revelar em primeira mão, teria realizado esse filme sem ninguém saber, apenas ele com a sua câmara, - quase como num confessionário – e pensava ter destruído a fita quando, no auge de uma dor de dentes, a enterrou atrás duma sebe no bosque de Bolonha. O meu tio-avô tinha então descoberto tal preciosidade quando num fim de tarde aí se passeava a, claro, andar de bicicleta, lubrificando as artroses. O filme apresentava, pelo menos, duas sequências que poderiam perfeitamente ter-se tornado clássicas, não fora o inesperado pudor bressoniano: uma, com a duração de 12 minutos, em que uma moça come um pacote de batata frita apenas com uma mão, entre a estação de Montparnasse e a Gare du Nord, enquanto com a outra mão alivia a bolsa duma velhota em 20.000 francos, chegando inclusivamente a oferecer-lhe uma batata frita e até a largar uma genuína lágrima quando ela lhe mostrou a fotografia duma neta tuberculosa, e uma outra cena, absolutamente antológica, em que um carteirista, na estação de Invalides, rouba uma pasta a um funcionário dos correios, que, ao dar-se conta disso, rompe num riso convulsivo, quase patético. Bresson, desculpem, eu, vou atrás do carteirista sem ele se dar conta disso, e filmo-o durante 12 minutos (Bresson andaria fixado em planos de 12 minutos) a revolver o conteúdo da pasta e a descobrir que apenas continha frascos de mijo para as análises da próstata. O carteirista frustrado, na cena seguinte, visita a avó num lar de idosos para os lados da gare de Lyon, e chora convulsivamente arrependido (12 min) ao seu lado, sussurrando repetidamente: «le pissat m’a remi», enquanto a velhota crochetava umas bases para copos. Enfim, convenhamos que era impossível resistir a um obra desta, e ainda para mais envelhecida, que nem carvalho de pipa, nas entranhas da terra benzida da cidade luz. O belga, de seu nome Julien Flamini, já falecido de coronária entupida, nem queria acreditar no que eu lhe apresentava: um tesouro bressoniano de 48 minutos, revelando em directo as catacumbas do pecado e da redenção por entre os carris da linha férrea. Foi das falsificações que inesperadamente mais me rendeu, mas, como ainda vivia uma fase de libertinagem e outras luxúrias avulsas, tudo se derreteu numa voragem de secreções. Um falsificador que queira uma carreira longa deve ter um sistema glandular preguiçoso ou, pelo menos, conservador.

2 comentários:

zazie disse...

ehehe

aj disse...

Olha quem se dignou passar por aqui:
A sra D. Zazie! :)