[1] O cristianismo, apesar dalguma má fama paramentária e dogmática, é grande responsável pelos maiores tesouros do bom relativismo da humanidade. O património que transportamos está irreversivelmente marcado pelos valores do perdão, da misericórdia, da graça, da magnanimidade, da glória e do desprezo dos deuses, tornando assim possível a surpreendente coabitação do bem e do mal que acaba por definir e sintetizar toda a história da presença humanóide neste calhau redondo e azul à beira Sol plantado.
Apesar deste toque de midas do cristianismo, que – e independentemente dos agustinianismos mais ou menos mitigados – transforma toda a realidade numa oportunidade de salvação, de desfrute, e de glorificação de Deus, mesclando justos e pecadores que nem broa com bacalhau, Jesus deixou um rasto de deliciosas, deslumbrantes, e muitas vezes inesperadas, separações absolutas de águas.
[2] O novo Testamento está pois recheado de relatos onde, num Magistério impregnado de escândalo e oscilante senso, Jesus se chega à frente para escolher uma via, definir um caminho certo, chamar os bois pelos nomes sem pedir licença às vacas sagradas. E a chave não poucas vezes foi uma novidade absoluta para a humanidade.
(a) Para começar um dos exemplos mais marcantes, e ‘evangelicamente mediáticos’: a cena da mulher adúltera (Jo VIII); uma das verdadeiramente exaltantes sublimações da justiça pelo perdão, com a introdução dum clássico dos clássicos da alma humana: «quem de vós esteja sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra!», e o consequente encostar às boxes da dupla, não menos mediática, de ‘escribas & fariseus’, guardiães da lei e dos bons costumes.
(b) Outra das cenas curiosas é aquela em que Jesus, na casa de Marta e Maria, (Lc. X) duas manas, verdadeiras guest stars evangélicas, (cortei-me a chamar-lhes Ungido girls ) perante o encabristamento da primeira ( uma genuína capricórnia, certamente) ao ver-se a fazer todo o trabalhito de casa enquanto a maninha estava no paleio com o Redentor, este responde, sem espinhas: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte». Ao arrepio de todo o bom senso, (‘Ó Maria, filha, vai lá agora dar uma mãozinha à tua irmã, enquanto eu acabo o Martini’) Jesus exprime a ideia totalitária de que a adoração a Deus é um valor em si mesmo que coloca tudo o resto num papel secundário. De facto, uma ideia difícil de incorporar, e ainda mais hoje, em dias de racionalismo e aproveitamento doentio do tempo, da vida, do megapixel e do megabit.
(c) A parábola do filho pródigo (Lc XV) tinha de ser aqui de paragem obrigatória. Apesar de totalmente incorporada no nosso imaginário, e inúmeras vezes até vivida por muitos, ela não deixa de introduzir de forma paradigmática e revolucionária o fenómeno libertador do arrependimento, algo que ficou demasiado colado ao modus operandi religioso mas que é constituinte fundamental da construção da personalidade. No entanto, arrependimento sem perdão, é como pãozinho quente da Ereira sem manteiga, só serve para cheirar, fazer hummm, e aquecer as mãos. Daí que o Cristianismo ao valorizar esta espécie de submundo da alma – que foi feita para andar fresca e viçosa a praticar desportivamente o bem e a democracia, já se sabe – veio colocar a fasquia da felicidade tão no rés-do-chão que tornou-se preciso rastejar, e se calhar arranharmo-nos um bocadinho para lá chegar.
(e) O caso de Zaqueu é que é verdadeiramente djimaiss! (Lc XIX). Trata-se dum chefe dos publicanos de Jericó, pessoal muitíssimo bem visto e acarinhado pela judiaria por cobrar impostos para o império, e que por ser de pequena estatura se teve de esfalfar para que dessem conta dele quando passavam. Jesus, quando por fim o viu, disse: «desce depressa, pois tenho de ficar em tua casa», o que deixou perplexo e indignado o pessoal que não percebia o súbito e particular interesse naquele malandro espoliador. E é e então aqui que é decifrado o segredo para que o camelo passe pelo buraco da agulha: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, devolver-lhe-ei quatro vezes» (alô, Rendeiros de Portugal, são chamados à cabine de som); estamos perante uma lição suprema de relativismo, de empenho e de absoluta conversão, - tudo bem misturado naquele empadão que, no fundo, é cada cristão – que continua com a parábola das minas (também contada na casa de Zaqueu) e onde é enunciado o terrível: «a todo aquele que tem, dar-se-lhe-á, mas àquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado», Já a figueira amaldiçoada ia levar o mesmo tratamento de choque; chama-se a isto não brincar em serviço. Fodasse, quem me dera ser budista.
(f) Mas a cena da pecadora em casa do frio e formal Simão (Lc. VII) já alivia um bocado mais o stress. Uma gajita que devia aparecer em todas as boas revistas da especialidade lembra-se de mudar de vida e não é de modas, arranca um autêntico arrependimento de 1ª divisão, regando com o seu pranto os pés de Jesus, secando-os com os seus cabelos, - sem o patrocínio de nenhuma marca de champôs, registe-se – e sacando do Redentor uma das suas mais gloriosas mensagens: «aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama», deixando o resto dos convivas com os croquetes entalados na traqueia. Todo o Dostoievski e todo o Shakespeare estão nestas oito palavritas (tirando o nariz empinado da mme MacBeth, claro)
(g) Já quando Jesus se vê obrigado a voltar atrás perante a insistência duma gentia Cananeia, (Mt XV) (anunciando para além disso aquela verdade universal de que quando uma gaja dá para chata, é chata mesmo e o melhor é satisfazê-la rapidamente) que tem a supina lata de lhe arremessar com a teatral chantagem emocional - secção auto-humilhação: «mas os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos», estamos perante a valorização dum arrependimento com fogo de artifício, uma espécie de ‘Maria do Céu Guerra dos arrependimentos’, demonstrando isso mesmo: na fórmula do bem e do mal só uma variável tem lugar cativo: o perdão.
[3] O perdão. O tal elixir que não existe dessa forma no gélido budismo, nem no rígido judaísmo (onde instituía que se devia perdoar 3 vezes), nem nos classissismos, ora no mais épico (Homero exalta o prazer de se rir dos inimigos), ora no mais filosófico ( Sócrates fala da cobardia de escravo quando não nos vingamos das injúrias), e que é revolucionário na mensagem Cristã, desde a ovelha tresmalhada que vale mais que um rebanho inteiro, até ao bom ladrão que é salvo ao tocar o gong. Lá está: arrependimento, misericórdia, graça, magnanimidade; o que transforma uma quimera numa história com sentido é essa grande falsa alienadora: a religião com um Deus sempre presente; e que deve ser procurada como quem procura o tal tesouro que nos trouxe o Único que pode dizer: «sei donde venho e para onde vou’.
[4] A grande indiferença religiosa do tempos modernos baseia-se essencialmente em algo muito simples: a ignorância. Quem sabe o toque de taninos do Esporão Reserva de 2003 mas nunca leu a cena das bodas de Caná, só merecia levar com o termómetro do enólogo pelo olho do cu acima. Quem escolhe, parte e reparte, os bons e os maus mas nunca leu e pensou na história da viúva que em vez de ‘dar o que lhe sobejava, privou-se do necessário, e deu tudo o que tinha’, mais valia dedicar-se a fazer branqueamento de dentes para ter um bom sorriso no dia do juízo final.
[5] & closing. Para concluir este tornedó direi apenas que a chamada mensagem cristã desfaz radicalmente alguns dos nós górdios da criação. Infelizmente sem fé tudo é analisado à luz da experiência limitada do dia a dia, das mal digeridas memórias recentes, das demasiado mastigadas memórias arcaicas, do soundbyte e da moda. A fé manipula-nos, claro, há sempre uma entrega na fé, há sempre a esperança de estarmos a elevar a nossa condição a um estado de privilegiada protecção. Contudo, a eliminação do elemento religioso na compreeensão do mundo só nos pode levar a fenómenos passageiros de consolo de consciência ou acomodamento lombar. Deus, ao homem traz horizonte, mas não traz tranquilidade.
Apesar deste toque de midas do cristianismo, que – e independentemente dos agustinianismos mais ou menos mitigados – transforma toda a realidade numa oportunidade de salvação, de desfrute, e de glorificação de Deus, mesclando justos e pecadores que nem broa com bacalhau, Jesus deixou um rasto de deliciosas, deslumbrantes, e muitas vezes inesperadas, separações absolutas de águas.
[2] O novo Testamento está pois recheado de relatos onde, num Magistério impregnado de escândalo e oscilante senso, Jesus se chega à frente para escolher uma via, definir um caminho certo, chamar os bois pelos nomes sem pedir licença às vacas sagradas. E a chave não poucas vezes foi uma novidade absoluta para a humanidade.
(a) Para começar um dos exemplos mais marcantes, e ‘evangelicamente mediáticos’: a cena da mulher adúltera (Jo VIII); uma das verdadeiramente exaltantes sublimações da justiça pelo perdão, com a introdução dum clássico dos clássicos da alma humana: «quem de vós esteja sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra!», e o consequente encostar às boxes da dupla, não menos mediática, de ‘escribas & fariseus’, guardiães da lei e dos bons costumes.
(b) Outra das cenas curiosas é aquela em que Jesus, na casa de Marta e Maria, (Lc. X) duas manas, verdadeiras guest stars evangélicas, (cortei-me a chamar-lhes Ungido girls ) perante o encabristamento da primeira ( uma genuína capricórnia, certamente) ao ver-se a fazer todo o trabalhito de casa enquanto a maninha estava no paleio com o Redentor, este responde, sem espinhas: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte». Ao arrepio de todo o bom senso, (‘Ó Maria, filha, vai lá agora dar uma mãozinha à tua irmã, enquanto eu acabo o Martini’) Jesus exprime a ideia totalitária de que a adoração a Deus é um valor em si mesmo que coloca tudo o resto num papel secundário. De facto, uma ideia difícil de incorporar, e ainda mais hoje, em dias de racionalismo e aproveitamento doentio do tempo, da vida, do megapixel e do megabit.
(c) A parábola do filho pródigo (Lc XV) tinha de ser aqui de paragem obrigatória. Apesar de totalmente incorporada no nosso imaginário, e inúmeras vezes até vivida por muitos, ela não deixa de introduzir de forma paradigmática e revolucionária o fenómeno libertador do arrependimento, algo que ficou demasiado colado ao modus operandi religioso mas que é constituinte fundamental da construção da personalidade. No entanto, arrependimento sem perdão, é como pãozinho quente da Ereira sem manteiga, só serve para cheirar, fazer hummm, e aquecer as mãos. Daí que o Cristianismo ao valorizar esta espécie de submundo da alma – que foi feita para andar fresca e viçosa a praticar desportivamente o bem e a democracia, já se sabe – veio colocar a fasquia da felicidade tão no rés-do-chão que tornou-se preciso rastejar, e se calhar arranharmo-nos um bocadinho para lá chegar.
(e) O caso de Zaqueu é que é verdadeiramente djimaiss! (Lc XIX). Trata-se dum chefe dos publicanos de Jericó, pessoal muitíssimo bem visto e acarinhado pela judiaria por cobrar impostos para o império, e que por ser de pequena estatura se teve de esfalfar para que dessem conta dele quando passavam. Jesus, quando por fim o viu, disse: «desce depressa, pois tenho de ficar em tua casa», o que deixou perplexo e indignado o pessoal que não percebia o súbito e particular interesse naquele malandro espoliador. E é e então aqui que é decifrado o segredo para que o camelo passe pelo buraco da agulha: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, devolver-lhe-ei quatro vezes» (alô, Rendeiros de Portugal, são chamados à cabine de som); estamos perante uma lição suprema de relativismo, de empenho e de absoluta conversão, - tudo bem misturado naquele empadão que, no fundo, é cada cristão – que continua com a parábola das minas (também contada na casa de Zaqueu) e onde é enunciado o terrível: «a todo aquele que tem, dar-se-lhe-á, mas àquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado», Já a figueira amaldiçoada ia levar o mesmo tratamento de choque; chama-se a isto não brincar em serviço. Fodasse, quem me dera ser budista.
(f) Mas a cena da pecadora em casa do frio e formal Simão (Lc. VII) já alivia um bocado mais o stress. Uma gajita que devia aparecer em todas as boas revistas da especialidade lembra-se de mudar de vida e não é de modas, arranca um autêntico arrependimento de 1ª divisão, regando com o seu pranto os pés de Jesus, secando-os com os seus cabelos, - sem o patrocínio de nenhuma marca de champôs, registe-se – e sacando do Redentor uma das suas mais gloriosas mensagens: «aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama», deixando o resto dos convivas com os croquetes entalados na traqueia. Todo o Dostoievski e todo o Shakespeare estão nestas oito palavritas (tirando o nariz empinado da mme MacBeth, claro)
(g) Já quando Jesus se vê obrigado a voltar atrás perante a insistência duma gentia Cananeia, (Mt XV) (anunciando para além disso aquela verdade universal de que quando uma gaja dá para chata, é chata mesmo e o melhor é satisfazê-la rapidamente) que tem a supina lata de lhe arremessar com a teatral chantagem emocional - secção auto-humilhação: «mas os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos», estamos perante a valorização dum arrependimento com fogo de artifício, uma espécie de ‘Maria do Céu Guerra dos arrependimentos’, demonstrando isso mesmo: na fórmula do bem e do mal só uma variável tem lugar cativo: o perdão.
[3] O perdão. O tal elixir que não existe dessa forma no gélido budismo, nem no rígido judaísmo (onde instituía que se devia perdoar 3 vezes), nem nos classissismos, ora no mais épico (Homero exalta o prazer de se rir dos inimigos), ora no mais filosófico ( Sócrates fala da cobardia de escravo quando não nos vingamos das injúrias), e que é revolucionário na mensagem Cristã, desde a ovelha tresmalhada que vale mais que um rebanho inteiro, até ao bom ladrão que é salvo ao tocar o gong. Lá está: arrependimento, misericórdia, graça, magnanimidade; o que transforma uma quimera numa história com sentido é essa grande falsa alienadora: a religião com um Deus sempre presente; e que deve ser procurada como quem procura o tal tesouro que nos trouxe o Único que pode dizer: «sei donde venho e para onde vou’.
[4] A grande indiferença religiosa do tempos modernos baseia-se essencialmente em algo muito simples: a ignorância. Quem sabe o toque de taninos do Esporão Reserva de 2003 mas nunca leu a cena das bodas de Caná, só merecia levar com o termómetro do enólogo pelo olho do cu acima. Quem escolhe, parte e reparte, os bons e os maus mas nunca leu e pensou na história da viúva que em vez de ‘dar o que lhe sobejava, privou-se do necessário, e deu tudo o que tinha’, mais valia dedicar-se a fazer branqueamento de dentes para ter um bom sorriso no dia do juízo final.
[5] & closing. Para concluir este tornedó direi apenas que a chamada mensagem cristã desfaz radicalmente alguns dos nós górdios da criação. Infelizmente sem fé tudo é analisado à luz da experiência limitada do dia a dia, das mal digeridas memórias recentes, das demasiado mastigadas memórias arcaicas, do soundbyte e da moda. A fé manipula-nos, claro, há sempre uma entrega na fé, há sempre a esperança de estarmos a elevar a nossa condição a um estado de privilegiada protecção. Contudo, a eliminação do elemento religioso na compreeensão do mundo só nos pode levar a fenómenos passageiros de consolo de consciência ou acomodamento lombar. Deus, ao homem traz horizonte, mas não traz tranquilidade.
6 comentários:
gostei do "horizonte". e de mais esta epístola antonina.
eh lá, só na última frase me safei, hem!? :)
e bom ano novo!
muito bom.
caríssimo, é a crise. temos de ser poupadinhos. :)
e bom ano novo para si, também. sempre.
Um hedonista supostamente pre-converso sorriria de ... MEDO! diante desta frase brutalmente bela: "Deus, ao homem traz horizonte, mas não traz tranquilidade". Bom ano, Desfazedor! Quentinho! já que tranquilo só ... depois. Ou não.
... e já agora ... com dinheiro também! Vá! quentinho + tranquilidade e ... esqueçamos, 'prontos!' a tranquilidade!
Enviar um comentário