Na falta podem ser sugus

Dostoievski é um daqueles escritores que todos temos direito a ter um próprio: ‘o nosso dostoievski’; mesmo que nem o tivéssemos lido (hoje existe uma forma consagrada de conhecimento que é o ‘ter ouvido falar de’) demos-lhe direito a entrar nos nossos melhores pesadelos. E os nossos piores pesadelos são os que aparecem num sono de tarde, de siesta: um homem levanta-se, motivado exclusivamente pelos desígnios dum inconsciente em formato bomba injectora, por sorte não dá de frente com nenhum ser humano com relações de sangue ou de registo civil e que tenha adquirido o direito de lhe pedir explicações sobre o seu estado psicomotor, e vai directo à prateleira sacar dos Irmãos Karamanzov, como se procurasse queijo manchego. É fodido ser movido em causa próxima pelos sonhos, pois nesses casos nem se distingue bem o papel impresso do leite fermentado. Felizmente o livro já estava muito sublinhado pela raiva adolescente, e Ivan dizia a Aliocha no início do ‘grande inquisidor’ que ‘estás tão mimado pelo realismo moderno que já não aturas nada que seja fantástico’. Suspiro – beliscão – copo d’água – mijadela – olhar para o espelho – sussurro de fodasse – chupar uma bola de neve, sempre por esta ordem, e volta-se ao normal; ou seja, volta-se ao estado em que já não se suporta o realismo; mesmo o clássico. Mas nunca esquecer o docinho da bola de neve.

4 comentários:

Anónimo disse...

Meu insone amigo, a sorte do seu papagaio é não lhe dar para ler Boris Pasternak. Ou lá se iam as pipas.

C.

Anónimo disse...

querida C, não é costume entrarem-me pelos sonhos romancistas de qualidade duvidosa ou escrita floreadorística. Tenho no entanto de confessar que no rescaldo duma colonoscopia já se me insinuou o henry james, mas sem suficiente força para me fazer levantar; da cama, registe-se.

Anónimo disse...

Alguma musa trágica, longínqua daisy miller de copas E espartilhadas em bata branca, dando-lhe a volta do parafuso? Ou uma fera na selva capaz de fazer de um peregrino apaixonado uma figura no tapete? Ou apenas uma discreta secretária que, nas horas italianas se banha em semicúpios na fonte sagrada? Ou na esperança de, por um maço de cartas, vir a encarnar o anti-herói do retrato de uma senhora e na próxima vez virmos a contar com elevação sua?

C.

Anónimo disse...

oh, mas com tamanha prosa dormirei sobre qualquer tapete, e sonharei peregrinamente como parafuso em santuário de rosca moída.

por minha cúpia, minha grande semicúpia, contritamente, jamais falharei uma onirica elevação que seja.