Depois de VPValente ter iniciado ontem o processo de recuperação hipnótica e mediática de PSLopes (que ao lado de Menezes até parece Churchill) e que se pode perfeitamente tornar no seu 2º 'fenómeno Clara Pinto Correia', penso que o único tema que poderá prender meio leitor a este tasco será mesmo:
Como se faz um poema de amor
1. Se tivesse de enunciar apenas uma regra, o que os pouparia aos inúmeros dislates que isto promete, diria simplesmente: usem a redondilha menor se estiverem numa fase de engate e só arranquem para a redondilha maior quando a coisa já estiver mais sustentada. Ao pegarem na redondilha aconselho, contudo, a não acentuarem demasiado as sílabas que já tenham sido bem soletradas por outros, porque já vi muita rima ficar completamente fonetiquizada por quebra de expectativas.
2. A introdução do movimento na temática do poema é talvez o momento mais crítico e, por isso, devemos abordá-lo desde já e eliminá-lo da nossa inquietação. Tomo como exemplo esta redondilha maior do bom do David Mourão Ferreira:
‘É varina, usa chinela.
Tem movimentos de gata.
Na canastra, a caravela.
No coração a fragata’
Aqui o poeta deixou-se levar pelas potencialidades musicais da fusão entre uma boa rima e a metaforização da lota, e não foi de modas, usou a regra mais difícil de cumprir: juntou o popularucho ao peri-erótico passando pelo epopeísmo dos descobrimentos, e chegou ao primeiro grande patamar de sucesso do bom poema de amor: fazer ao homem tudo imaginar e à mulher o rabo abanar. Note-se ainda o cuidado de não abandalhamento, evitando a todo o custo um final de rima utilizando o clássico roedor no género feminino, o que arrastaria este belo poema para o tipo o’neil cesarinyado, que como se calculará, pouco mais garantiu que uma ou outra coreografia iconográfica de auto comprazimento (1)
3. Antes de passar para a obrigatória fase das imagens de estilo devemos queimar já a etapa da rima per se, porque a rima está para o poema de amor como os enchidos para o cozido: dão fama à cozinheira, sabor, cheiro e, de bónus, enchem o prato. Num approach mais clássico, mas superficial, seríamos levados a escolher a ‘rima emparelhada’ pois tem sido este o suporte comum da fecundação criativa desde que se inaugurou a luz artificial nas Grutas de Altamira. O emparelhamento garante a conservação do gene lírico do princípio ao fim, e principalmente, a despesa romântica está mais controlada. Mas, e serei já conclusivo no que à rima concerne, o tipo ‘interpolado’ é aquele que me dá garantias do melhor equilíbrio entre a segurança do ritmo e a alegria da imprevisibilidade. Dou como exemplo este clássico de Sebastião da Gama, escrito num daqueles breves momentos em que teve as duas mãos livres, ali entre duas urzes num penhasco da Arrábida:
‘A verdade era bela
Mas doía nos olhos
Mas doía nos lábios
Mas doía no peito
Dos que davam por ela’.
Ora, está bom de ver, muitas outras mais ou menos sofisticadas combinações seriam aqui possíveis, e eu inclusivamente teria garantido um bom passeio a ver golfinhos com a, por exemplo, para ser original, menina Soraia, com a seguinte variante:
‘A verdade era tão bela
Mas dei um jeito nas costas,
prendeu-se-me um tendão
e acabei bem esbodegado
Depois de me ter montado nela
Reparem que ‘montar na verdade’ é, antes de mais, um relativismo epistémico, como diria o nosso badalado e tolerante D. Murcho, e depois de galopar com ela (a verdade, note-se), garanto, ninguém mais se contentará em estrofar em tercetos quando pode ter uma quintilha.
4. E serviu esta última indicação de mote para abordarmos, ainda que de relance, a questão do agrupamento de versos. E aqui aglutino a análise na minha particular predilecção pelos vilancetes, essa arte maior, uma espécie de geometria descritiva da poética, por onde tudo passa e tudo se referencia. Atentemos num dos mais clássicos:
O 'mote':
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
A 'Glosa':
Como se faz um poema de amor
1. Se tivesse de enunciar apenas uma regra, o que os pouparia aos inúmeros dislates que isto promete, diria simplesmente: usem a redondilha menor se estiverem numa fase de engate e só arranquem para a redondilha maior quando a coisa já estiver mais sustentada. Ao pegarem na redondilha aconselho, contudo, a não acentuarem demasiado as sílabas que já tenham sido bem soletradas por outros, porque já vi muita rima ficar completamente fonetiquizada por quebra de expectativas.
2. A introdução do movimento na temática do poema é talvez o momento mais crítico e, por isso, devemos abordá-lo desde já e eliminá-lo da nossa inquietação. Tomo como exemplo esta redondilha maior do bom do David Mourão Ferreira:
‘É varina, usa chinela.
Tem movimentos de gata.
Na canastra, a caravela.
No coração a fragata’
Aqui o poeta deixou-se levar pelas potencialidades musicais da fusão entre uma boa rima e a metaforização da lota, e não foi de modas, usou a regra mais difícil de cumprir: juntou o popularucho ao peri-erótico passando pelo epopeísmo dos descobrimentos, e chegou ao primeiro grande patamar de sucesso do bom poema de amor: fazer ao homem tudo imaginar e à mulher o rabo abanar. Note-se ainda o cuidado de não abandalhamento, evitando a todo o custo um final de rima utilizando o clássico roedor no género feminino, o que arrastaria este belo poema para o tipo o’neil cesarinyado, que como se calculará, pouco mais garantiu que uma ou outra coreografia iconográfica de auto comprazimento (1)
3. Antes de passar para a obrigatória fase das imagens de estilo devemos queimar já a etapa da rima per se, porque a rima está para o poema de amor como os enchidos para o cozido: dão fama à cozinheira, sabor, cheiro e, de bónus, enchem o prato. Num approach mais clássico, mas superficial, seríamos levados a escolher a ‘rima emparelhada’ pois tem sido este o suporte comum da fecundação criativa desde que se inaugurou a luz artificial nas Grutas de Altamira. O emparelhamento garante a conservação do gene lírico do princípio ao fim, e principalmente, a despesa romântica está mais controlada. Mas, e serei já conclusivo no que à rima concerne, o tipo ‘interpolado’ é aquele que me dá garantias do melhor equilíbrio entre a segurança do ritmo e a alegria da imprevisibilidade. Dou como exemplo este clássico de Sebastião da Gama, escrito num daqueles breves momentos em que teve as duas mãos livres, ali entre duas urzes num penhasco da Arrábida:
‘A verdade era bela
Mas doía nos olhos
Mas doía nos lábios
Mas doía no peito
Dos que davam por ela’.
Ora, está bom de ver, muitas outras mais ou menos sofisticadas combinações seriam aqui possíveis, e eu inclusivamente teria garantido um bom passeio a ver golfinhos com a, por exemplo, para ser original, menina Soraia, com a seguinte variante:
‘A verdade era tão bela
Mas dei um jeito nas costas,
prendeu-se-me um tendão
e acabei bem esbodegado
Depois de me ter montado nela
Reparem que ‘montar na verdade’ é, antes de mais, um relativismo epistémico, como diria o nosso badalado e tolerante D. Murcho, e depois de galopar com ela (a verdade, note-se), garanto, ninguém mais se contentará em estrofar em tercetos quando pode ter uma quintilha.
4. E serviu esta última indicação de mote para abordarmos, ainda que de relance, a questão do agrupamento de versos. E aqui aglutino a análise na minha particular predilecção pelos vilancetes, essa arte maior, uma espécie de geometria descritiva da poética, por onde tudo passa e tudo se referencia. Atentemos num dos mais clássicos:
O 'mote':
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
A 'Glosa':
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.
Sendo a ideia principal, e que remata as estrofes, a de que segurança não é formosura, ( me perdoem as autosuficientes) para além de que os sapatos, ao contrário do que as mulheres pensam, só atrapalham na hora de encantar – tirando a excepção da gata borralheira – penso que não deveremos deixar passar em claro algumas paradigmáticas fragilidades da lírica camoneana. Assim, realçaria, o absurdo do ‘saínho de chamelote’ quando ali pedia uma óbvia ‘mini-saia de couro’, que podia perfeitamente rimar com um ‘no baixo-regaço o tesouro’. Diria ainda que o ‘Tão linda que o mundo espanta/Chove nela graça tanta’ parece-me de alguma ingenuidade, e um ‘tão linda que o mundo espanta’ pedia bastante mais um ‘ se esfregares bem ele arranca’. Mas enfim, posso estar a enveredar pela lírica mais libidinosa, que nem era a minha intenção. No fundo, a conclusão que se pode daqui retirar é que o vilancete abre belíssimas perspectivas de compasso e gradação de expectativas, mas não se pode ficar pelas cócegas nas rendinhas da lingerie e tem forçosamente que rasgar algum tecido, podendo, inclusive, deixar uma ou outra nódoa aureolar. Como autênticos prémios literários.
5. Finalmente falemos das figuras de estilo e do seu papel no perfeito poema de amor. E, desde já, tenho de confessar uma declaração de interesses: tenho um fraquinho por epanadiploses e quiasmos. No fundo, trata-se da paixão por repetições e cruzamentos, que atingem o seu clímax na fusão, a que eu chamaria a epanadiplose quiásmica ( que se trata bem com Voltaren ®, adianto) e da qual, atalhando, forneço um exemplo a talho de foice aqui lavrado apenas a título didático:
Esperas ansiosamente por mim, esperas?
E por mim, assim morrerias, por mim?
Morreríamos selvagens, como morrem as feras?
Selvagens, sim, selvagens no meio do capim.
Capim eleito, suave leito do nosso momento
Arranhou-me no rabo
Irritou-me nas virilhas
Fodeu-me os joelhos
Mais valia ter sido no parque de estacionamento.
Mas como selvagens, sim, selvagens no meio do capim
Penso que aqui fica demonstrado o potencial do cruzamento epanadiplósico nos poemas de amor, que, a par da rima interpolada, e daquele jeito vilancetizado, delimitam o essencial do cânone, e permitem acabar a tardinha com umas boas amêijoas, que é, no fundo, para o que aqui estamos, depois de termos abafado a redondilha, claro.
(1) desculpa, Bruno, pá, [felizmente para ti que nem lês esta merda] mas depois da tua frase, pecar e rezar ladainhas são quase a mesma coisa que subir o bom jesus de braga a chupar bolas de neve.
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.
Sendo a ideia principal, e que remata as estrofes, a de que segurança não é formosura, ( me perdoem as autosuficientes) para além de que os sapatos, ao contrário do que as mulheres pensam, só atrapalham na hora de encantar – tirando a excepção da gata borralheira – penso que não deveremos deixar passar em claro algumas paradigmáticas fragilidades da lírica camoneana. Assim, realçaria, o absurdo do ‘saínho de chamelote’ quando ali pedia uma óbvia ‘mini-saia de couro’, que podia perfeitamente rimar com um ‘no baixo-regaço o tesouro’. Diria ainda que o ‘Tão linda que o mundo espanta/Chove nela graça tanta’ parece-me de alguma ingenuidade, e um ‘tão linda que o mundo espanta’ pedia bastante mais um ‘ se esfregares bem ele arranca’. Mas enfim, posso estar a enveredar pela lírica mais libidinosa, que nem era a minha intenção. No fundo, a conclusão que se pode daqui retirar é que o vilancete abre belíssimas perspectivas de compasso e gradação de expectativas, mas não se pode ficar pelas cócegas nas rendinhas da lingerie e tem forçosamente que rasgar algum tecido, podendo, inclusive, deixar uma ou outra nódoa aureolar. Como autênticos prémios literários.
5. Finalmente falemos das figuras de estilo e do seu papel no perfeito poema de amor. E, desde já, tenho de confessar uma declaração de interesses: tenho um fraquinho por epanadiploses e quiasmos. No fundo, trata-se da paixão por repetições e cruzamentos, que atingem o seu clímax na fusão, a que eu chamaria a epanadiplose quiásmica ( que se trata bem com Voltaren ®, adianto) e da qual, atalhando, forneço um exemplo a talho de foice aqui lavrado apenas a título didático:
Esperas ansiosamente por mim, esperas?
E por mim, assim morrerias, por mim?
Morreríamos selvagens, como morrem as feras?
Selvagens, sim, selvagens no meio do capim.
Capim eleito, suave leito do nosso momento
Arranhou-me no rabo
Irritou-me nas virilhas
Fodeu-me os joelhos
Mais valia ter sido no parque de estacionamento.
Mas como selvagens, sim, selvagens no meio do capim
Penso que aqui fica demonstrado o potencial do cruzamento epanadiplósico nos poemas de amor, que, a par da rima interpolada, e daquele jeito vilancetizado, delimitam o essencial do cânone, e permitem acabar a tardinha com umas boas amêijoas, que é, no fundo, para o que aqui estamos, depois de termos abafado a redondilha, claro.
(1) desculpa, Bruno, pá, [felizmente para ti que nem lês esta merda] mas depois da tua frase, pecar e rezar ladainhas são quase a mesma coisa que subir o bom jesus de braga a chupar bolas de neve.
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