Conto que não inclui colchão ortopédico


Tinham combinado preparar a velhice a escrever cartas de amor à porta de um lar de idosos. Sentavam-se no banco dum jardim defronte, olhavam um para o outro, trocavam um sorriso cúmplice e começavam a escrever. Ele era levemente repetitivo, ela era suavemente lacónica. De cinco em cinco minutos trocavam os dizeres para contabilizar sorrisos amarelos. Ele adorava as palavras explícitas, ela repelia-as; ela adorava as subliminaridades, ele as sobreposições de ideias; «mas se calhar somos mais parecidos do que pensamos» disse ela, sacudindo o mesmo cabelo pelo qual ele se tinha apaixonado anos antes – mesmo sem lhe tocar, mesmo sem nunca o ter visto. «escrevo para te amar mais e melhor» dizia ele, brincando às fitas métricas com os dedos; «é o melhor que fazes com os dedos?» ironizava-lhe ela; «testa-mos» respondia ele, ensaiando o trejeito dos pianistas; «viemos aqui com o propósito de preparar a velhice, e não para dar espectáculo» corrige ela, pondo a saia em posição de combate. «coitados, a misericórdia não lhes dá dinheiro para irem ao cinema» dizia ele, que, no fundo – informa-se o leitor inexistente – era um doce de homem. «Para a próxima trazemos uma banquinha e vendemos umas farturas nos intervalos da lírica» propôs ela, que tinha andado a treinar ironia fina numa carta curta em que o agape fazia de farinha e o eros de fada madrinha. «Acho que eles dariam metade da reforma por um cancan seguido dum número de álgebra anatómica» insinuou-se ele, na esperança de que das graçolas pudesse resultar ao menos uma fatia de fruto proibido. «sinto-te com pouco mais capacidade do que umas palavritas encarreiradas entre o belo efeito e a rima fatela» rematou ela, já com vontade de ir apanhar ar e ver homens a sério. « se encontrares alguém que te ame melhor acho que nem deves olhar para trás» arriscou ele a meio caminho entre a insegurança e a vitimização; «os amores não são para se comparar, são para se desfrutar e retribuir a gosto», responde ela em modo tiro e queda, naquele estilo que, se ainda não lhe tinha provocado uma úlcera, pelo menos já lhe tinha calcinado metade da parede do esófago. «quando formos velhos o que te tornará mais aconchegadas as noites serão as memórias das palavras que te disse e do calor desta minha mão incapaz, vais ver» deixou-lhe ele – já em versão de gladiador fracassado de sentimentos – para o resto do serão. Os velhotes do lar entretanto fecharam as persianas; eles olharam para as mãos, elas para as franjas, e assinaram uma petição à misericórdia para que aquelas tardes se repetissem muitas e muitas vezes; e fornecessem um divã decente aos artistas.

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