Manual breve de costura (excerto)

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2. Coser baínhas, pregar botões, meter fechos.

2.1. Coser bainhas – acto de alguma arrogância porque pretende definir e fixar o tamanho de algo ou de alguém, e que para além disso negligencia o facto de todos precisarmos uns dias de andar a arrastar um pouco mais, mas noutros temos é de arregaçar bem para não nos encharcarmos. É por isso que algumas calças de mulher têm aquele efeito delicioso da racha na bainha que permite, enfim… que permite…

2.2. Pregar botões – um botão mal pregado é esteticamente deselegante, mas muito mais grave e absolutamente frustrante é um botão que não se desaperte no momento certo. No fundo, o essencial é controlar o tamanho certo da casa e não tanto o aperto do botão; no entanto, um bom decote pode fazer milagres desde que a santa esteja bem segura no altar, claro.

2.3. Meter fechos (nota 1) – - Pois o fecho de correr é algo de natureza bastante espiritual, não sei se se sabia.

Temos em primeiro lugar…

2.3.1. o mecanismo: baseado num esquema de encaixe e desencaixe sem exigir nenhuma lubrificação especial, lembra que toda a clausura é filha dum enamoramento e toda a abertura é mãe dum encantamento. Todo o mecanismo é um bom princípio para libertar o misticismo.

2.3.2. O movimento ascendente e descendente: é outro dos seus elementos constituintes; sem este movimento não há éclair, tal como não há oração sem jaculatória, nem castigo sem palmatória, nem saudade sem memória.

2.3.3. a sonoridade: a zippadela melódica pode não ser o motor dum porshe, mas ao ser feita com aquele arrastamento quase próximo da riffadela duma viola… ai credo até a letra se me enrola.

2.3.4. a pega: tal como todo o espírito compenetrado precisa de ter algum sítio por onde se lhe pegue, sob pena de ficar eternamente suspenso e pela ansiedade vencido, a meio caminho entre o entalado e o escondido

E finalmente…

2.3.5. a transcendência – o que está para lá do fecho é sempre o mais importante, é onde está o fogo inaugural, e é esta a sua característica religiosa e sacramental ; o fecho eclair é sempre um elemento de ligação entre o desejo e a graça, entre o caçador e a caça, entre a picareta e o mineiro, é um valha-me deus a servir de porteiro – mas morto de riso - na antecâmara do paraíso.

(nota 1) o dito ‘éclair’ e não a um outro qualquer ferrolho agressivo e inibidor

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João Atílio (s.d.)

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