Spreads de barro
Eis que, sem tema, o sarcástico e virulento cronista se aproximava da folha nua, apenas sabendo que tinha de arruinar a reputação de alguém. Ninguém tinha direito ao bom nome, isso era coisa para gente de personalidade fraca e mentes suburbanas, que precisam da imagem para agradar ao patrão, ou para foder a patroa, e assim ele tratava de elevar alguns eleitos a esse altar ‘dos de quem dizem mal’. Hoje sentia necessidade de um delito sexual, poderia mesmo ter de incluir um filho fora do casamento, seria bem disfarçado, claro, apareceria como uma hipocrisia de costumes, um conflito de mensagens, mas seria um rombo definitivo no casco. O cliente tinha-lhe de facto pedido: «faz-me a folha, estou farto de que me digam que sou perfeito de mais para ser verdade, quero os meus vícios autenticados, quero chafurdar na minha própria lama».
Pela primeira vez hesitou, pensou se não seria suficiente apenas um pequeno delito fiscal, uma vendedora de sexo ocasional em forma de retenção na fonte alternativa, mas o pedido tinha sido expresso e claro: «quero sentir aquele horrível sussurrar calunioso nas minhas costas». Estava sem escolha, e como não tinha esse dom especial para doirar pílulas, começou por enquadrar o tema num arredondamento irregular de taxas.
Ele teria pegado numa taxa de juro ainda novinha e vinda das berças, acrescentara-lhe um spread discreto com mangas a três quartos, e tinha-a posto a render como bibelot num certificado de aforro de 3 casas assoalhadas ali para os lados da praça do chile. Ela afeiçoou-se ao bem bom, mas sabia viver sem dar muito nas vistas; pagava em capitalização composta com majorações extra de três em três meses, e ia lendo revistas sobre ejaculação precoce e como tirar vantagem de posições minoritárias. Para taxa de juro até foi ficando benzinho com a idade, ia conseguindo manter-se discreta, fez apenas uma amizade superficial com umas call girls, mas nada que a comprometesse ao ponto de se tornar refém duma obrigação convertível. Até que um dia se enganou na contagem dos dias e veio-lhe um prémio de reembolso inesperado. Mas geriu bem a coisa e não houve degradação do capital investido; dedicou-se de corpo e alma aos cuidados do pequeno project finance e apostou numa nova maturidade. A vida prosseguia, o spread ia dando, uma ou outra abébia à autoridade reguladora chegava para a manter entretida e mesmo satisfeita, tudo parecia correr bem e como explicação mantinha-se suficiente a clássica: és filha dum banco central que nunca te deixará ficar mal. Mas a partir de certa altura a consciência começou a pesar, juntaram-se os rebates com os descargos, e havia que lhe contar a verdade: não filha, tu serás uma taxa fina, nunca mais precisarás de arredondamentos às escondidas, e terás um spread com estudos, de boas famílias, que tomará conta de ti às claras, por amor, e nunca te trocará por uma euribor qualquer.
Mas o texto pareceu-lhe demasiado parabólico; nem toda a gente iria perceber o crime, alguns até se desvaneceriam com a candura lírica, outros pensariam ainda que se tratava dum epitáfio metafórico ao Friedman – o tipo que tinha inventado o arredondamento da própria massa monetária – e não faltaria quem, movido pela curiosidade, ainda fosse incomodar a moça com propostas de spreads alternativos, pois ela ainda estava muito bem conservada para a idade.
Não estava nos seus dias, o fúria do acinte tinha-se deixado vencer pela fábula, e já não conseguia descobrir caminhos para que o castigo implacável da má fama pudesse avançar a seu bel prazer. O cliente queixou-se, «assim nem à putas dizem que fui», viu a fama de matador a desvanecer-se, perdeu uma encomenda quase certinha dum secretário de estado que queria ir para a administração duma empresa de seguros e acabou a escrever romances históricos sobre a defesa do consumidor e os emolumentos nas conservatórias. Um dia descobriu-se que tinha vivido com uma taxa bonificada sem que ninguém soubesse.
Eis que, sem tema, o sarcástico e virulento cronista se aproximava da folha nua, apenas sabendo que tinha de arruinar a reputação de alguém. Ninguém tinha direito ao bom nome, isso era coisa para gente de personalidade fraca e mentes suburbanas, que precisam da imagem para agradar ao patrão, ou para foder a patroa, e assim ele tratava de elevar alguns eleitos a esse altar ‘dos de quem dizem mal’. Hoje sentia necessidade de um delito sexual, poderia mesmo ter de incluir um filho fora do casamento, seria bem disfarçado, claro, apareceria como uma hipocrisia de costumes, um conflito de mensagens, mas seria um rombo definitivo no casco. O cliente tinha-lhe de facto pedido: «faz-me a folha, estou farto de que me digam que sou perfeito de mais para ser verdade, quero os meus vícios autenticados, quero chafurdar na minha própria lama».
Pela primeira vez hesitou, pensou se não seria suficiente apenas um pequeno delito fiscal, uma vendedora de sexo ocasional em forma de retenção na fonte alternativa, mas o pedido tinha sido expresso e claro: «quero sentir aquele horrível sussurrar calunioso nas minhas costas». Estava sem escolha, e como não tinha esse dom especial para doirar pílulas, começou por enquadrar o tema num arredondamento irregular de taxas.
Ele teria pegado numa taxa de juro ainda novinha e vinda das berças, acrescentara-lhe um spread discreto com mangas a três quartos, e tinha-a posto a render como bibelot num certificado de aforro de 3 casas assoalhadas ali para os lados da praça do chile. Ela afeiçoou-se ao bem bom, mas sabia viver sem dar muito nas vistas; pagava em capitalização composta com majorações extra de três em três meses, e ia lendo revistas sobre ejaculação precoce e como tirar vantagem de posições minoritárias. Para taxa de juro até foi ficando benzinho com a idade, ia conseguindo manter-se discreta, fez apenas uma amizade superficial com umas call girls, mas nada que a comprometesse ao ponto de se tornar refém duma obrigação convertível. Até que um dia se enganou na contagem dos dias e veio-lhe um prémio de reembolso inesperado. Mas geriu bem a coisa e não houve degradação do capital investido; dedicou-se de corpo e alma aos cuidados do pequeno project finance e apostou numa nova maturidade. A vida prosseguia, o spread ia dando, uma ou outra abébia à autoridade reguladora chegava para a manter entretida e mesmo satisfeita, tudo parecia correr bem e como explicação mantinha-se suficiente a clássica: és filha dum banco central que nunca te deixará ficar mal. Mas a partir de certa altura a consciência começou a pesar, juntaram-se os rebates com os descargos, e havia que lhe contar a verdade: não filha, tu serás uma taxa fina, nunca mais precisarás de arredondamentos às escondidas, e terás um spread com estudos, de boas famílias, que tomará conta de ti às claras, por amor, e nunca te trocará por uma euribor qualquer.
Mas o texto pareceu-lhe demasiado parabólico; nem toda a gente iria perceber o crime, alguns até se desvaneceriam com a candura lírica, outros pensariam ainda que se tratava dum epitáfio metafórico ao Friedman – o tipo que tinha inventado o arredondamento da própria massa monetária – e não faltaria quem, movido pela curiosidade, ainda fosse incomodar a moça com propostas de spreads alternativos, pois ela ainda estava muito bem conservada para a idade.
Não estava nos seus dias, o fúria do acinte tinha-se deixado vencer pela fábula, e já não conseguia descobrir caminhos para que o castigo implacável da má fama pudesse avançar a seu bel prazer. O cliente queixou-se, «assim nem à putas dizem que fui», viu a fama de matador a desvanecer-se, perdeu uma encomenda quase certinha dum secretário de estado que queria ir para a administração duma empresa de seguros e acabou a escrever romances históricos sobre a defesa do consumidor e os emolumentos nas conservatórias. Um dia descobriu-se que tinha vivido com uma taxa bonificada sem que ninguém soubesse.
Sem comentários:
Enviar um comentário